Estávamos discutindo o
tema da transição , ao mesmo tempo falado e polêmico,
em um grande centro espírita de Belo Horizonte, e retomamos
os conceitos centrais do gênero apocalíptico, para
argumentar em favor da existência de uma mentalidade apocalíptica
existente em nossa cultura brasileira e cristã ocidental.
Os textos em que Kardec trata
dos discursos apocalípticos de Jesus, geralmente conhecidos
como o Sermão Profético, estão nos dois últimos
capítulos do livro A Gênese. Para entendê-los,
é necessário ler o capítulo 16, que trata
da teoria da presciência.
Nesse capítulo em específico,
Kardec não entende as predições como uma
visão antecipada e detalhada dos fatos futuros, uma espécie
de antevisão do que acontecerá. O vidente ou profeta
não vê através do tempo segundo essa teoria.
Allan Kardec faz uma imagem, de um homem que se encontra sobre
uma montanha e é capaz de ver o caminho pelo qual um viajante
irá trilhar. Ele é capaz de ver o que vem à
frente, mas não é capaz de precisar exatamente quando
o viajante chegará lá, porque o ritmo da caminhada
depende do último. Dessa forma o fundador do espiritismo
articula as ideias de livre arbítrio individual e presciência.
“... os detalhes e o modo
de execução se encontram subordinados às
circunstâncias e ao livre arbítrio dos homens, podem
ser eventuais os caminhos e os meios” (cap. 16, item 14).
E para que não fique obscuro,
Kardec exemplifica:
“É assim ... que
os Espíritos podem, pelo conjunto das circunstâncias,
prever que uma guerra se acha mais ou menos próxima, que
é inevitável, sem, contudo, poderem predizer o dia
em que começará, nem os incidentes pormenorizados
que possam ser modificados pela vontade dos homens.” (cap.
16, item 14)
E ao desenvolver essa questão,
Kardec ainda reafirma:
“Por isso os Espíritos
verdadeiramente sensatos nunca predizem coisa alguma para épocas
determinadas, limitando-se a prevenir-nos do seguimento das coisas
que nos seja útil conhecer.” (cap. 16, item 16)
Ao empregar o raciocínio
da teoria da presciência para explicar a previsão
de Jesus sobre a destruição do segundo templo de
Jerusalém, se vê que possivelmente ele conhecia como
agiam os romanos e como reagiam os judeus. Ele conhecia as histórias
de resistência como a dos Macabeus contra a helenização
do povo judeu por Epifanes Antíoco no século 2 a.
C., mais que ninguém ele conhecia a esperança do
surgimento de um messias guerreiro que salvaria o povo judeu da
dominação romana, e também sabia que os romanos
não perdoavam insurreições, destruindo, matando
e repovoando os territórios com sua própria gente,
geralmente militares que participaram das campanhas.
- Em verdade vos digo que não
ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derrubada
. (Mateus 24:2)

Como seria o segundo templo de Jerusalém
Disse Jesus sobre o Templo, talvez
se referindo à civilização judaica nas terras
da palestina.
Um participante da palestra reagiu.
- Isso não! Ele disse.
Jesus sabia tudo!
Saber tudo, ou onisciência,
seria uma qualidade de Deus, consequência de sua eternidade,
segundo Fénelon, que julgamos, a partir do pensamento espírita,
tratar-se de um ser distinto de Jesus e de todos os demais Espíritos.
O opositor tem razão em nos questionar nossa capacidade
de saber o que se passa ou não na mente de Jesus de Nazaré,
mas se a teoria da presciência exposta em A Gênese,
estiver correta, seria algo semelhante ao exposto que teria acontecido.
A divinização de
Jesus é algo que dificilmente aconteceu na Judeia, tão
ciosa de seu Deus Único. Possivelmente ocorreu na exposição
do cristianismo à cultura romana, na qual a multiplicidade
de deuses foi uma das formas encontradas para a consolidação
do seu pacto civilizatório, e mesmo Jesus esteve próximo
de ser aceito como Deus pelo senado romano.
- Eu fico com a minha ideia e
você fica com a sua! Ele afirmou após uma tentativa
de argumentação da minha parte. Só um reparo,
não se trata da minha ideia, mas da teoria da presciência
desenvolvida por Allan Kardec. No mais, ele ficará mesmo
com sua ideia, graças à democracia e o laicismo
do Estado brasileiro, que protege as crenças institucionalizadas
e, ainda mais as crenças pessoais. Todavia, um exame rápido
nos permite concluir que sua crença pessoal não
é coerente com o pensamento espírita.
Estudar o espiritismo é
aceitar a possibilidade de romper com o nosso passado atávico
cultural e rever ideias à luz da razão e da evidência
empírica.
Referências:
FÉNELON. Tratado da existência e
dos atributos de Deus: provas da existência de Deus. S.d.,
Salus, 2015. [Tradução de Roberto Leal Ferreira
e comercialização sob a forma de e-book pela Amazon.com.br]
KARDEC, Allan. A gênese, os milagres e
as predições segundo o espiritismo. Brasília,
FEB, 2018. [Tradução da primeira edição
francesa por Evandro Noleto Bezerra]