No século que passou, muitos teóricos ergueram sua
pena para escrever conta a religião, considerando-a um
“instrumento de controle social” e muitas vezes “ópio
do povo” por impedir as pessoas de desejarem uma melhora
de condições de vida e preservarem valores que legitimavam
dominação e sofrimento. Análise coerente,
porém parcial, reduziu a religião a um grupo de
interesses e reduziu a experiência religiosa, a uma forma
de histeria coletiva. Esta posição é o resultado
de pelo menos dois séculos de críticas que filósofos
e cientistas dirigiram contra idéias religiosas equivocadas,
sustentadas com base na autoridade da revelação.
Divulgada aos quatro ventos esta posição, muitas
pessoas jogaram fora “a água suja com a criança”
e passaram a viver em função da sobrevivência
de cada dia, encarceradas no presente e nos desejos imediatistas
cultivados pela mídia e pela indústria de consumo.
O quadro tem se agravado a ponto de o próprio homem ser
considerado objeto de consumo de seu igual, fragilizando-se a
estrutura de vínculos afetivos tão valorizada pelo
pensamento cristão e religioso em geral. Nesta nova lógica,
o casamento é reduzido ao conúbio sexual passageiro,
enquanto há desejo, as relações profissionais
são conformadas apenas pelo interesse puro, as decisões
são efetuadas apenas com base em resultados, sem o devido
fundamento ético que imporia barreiras a ações
de conseqüências nefastas para a comunidade.
Há quem se tenha deixado habituar pelo ritual, pelo costume,
deixando-se levar preguiçosamente aos eventos dos templos
das mais diversas designações religiosas, ocupando
espaço físico sem participar interiormente do fenômeno
religioso. Apesar de presentes no culto, a religião continua
à margem de seu mundo íntimo. Fanáticos,
alguns, colocam-se à parte das mudanças no planeta,
das conquistas científico-tecnológicas e das mudanças
do comportamento social para defenderem, barulhentos, alguns valores
tribais hebreus distantes da realidade social atual, ou técnicas
orientais descontextualizadas e estereotipadas. Desacostumados
ao diálogo e à reflexão, abordam os desavisados
buscando convertê-los à sua forma de pensar com golpes
verbais e apelos melodramáticos. Máquinas de falar
e argumentar não estão prontos para transmitir às
pessoas a sua volta uma experiência religiosa pela qual
não passaram, embora possam sensibilizá-las com
uma experiência emocional tão intensa quanto vazia.
A religião, entretanto, permanece além dos abusos
dos religiosos. Força vigorosa no íntimo das pessoas,
veículo da fé, torna-se um dos agentes estruturadores
da personalidade. Ponte de união entre o homem e o além-do-homem
é um sentido íntimo que insere a pessoa no universo
à sua volta de forma a preservar sua integridade e harmonia
interiores, permitindo uma reflexão ética sobre
sua prática não apenas racional mas sensível
à condição humana e às aspirações
de um mundo mais justo. Jung, psicólogo suíço,
descreveu com detalhes em um paciente seu com a aversão
à religião como elemento importante para o entendimento
do sofrimento psíquico que houvera construído em
sua vida. Outros casos clínicos podem ser lidos no livro
“Psicologia e Religião”, publicado pela Editora
Vozes. A religião, portanto, não é vista
sob a perspectiva do dogma injustificado ou da fé que não
suporta o raciocínio e a evidência, mas sob a ótica
da religiosidade, íntima ao homem, mas vivida de forma
coletiva, social.
Defende-se aqui, então, este outro lado da religião,
força viva, que estrutura, sustenta, alimenta esta que
está presente em todos os credos embora só se perceba
num reduzido número de praticantes. Esta que não
se imiscui com o credo político mas que impulsiona o homem
em direção ao outro homem, exigindo interiormente
participação nas transformações sociais.
Esta que faz o homem olhar para dentro de si e perceber-se vivo,
vibrante, em transformação. Esta que faz cientistas
sonharem com a Ciência, artistas com a arte. A que permite
o religioso escolher sua religião e vivê-la intensamente,
sem precisar tirar os pés do chão.