Ainda jovem
eu assistia a uma palestra de um espírita famoso na capital
mineira, cujo nome omitirei, e me recordo de uma afirmação
forte que ele fez, e que arrancou interjeições e outras
reações emocionais da plateia:
- Eu não vou dizer que o
espiritismo é uma verdade! (Silêncio retórico)
O espiritismo é A Verdade!
Aquilo ficou na minha mente. Enquanto as pessoas acolhiam com entusiasmo
a frase de efeito, eu fiquei em silêncio com o meu mineirês
interno, perguntando:
- Uai! será?
Hoje penso que o fundador do espiritismo
não faria esse tipo de observação. Quando Kardec
começou a estudar os fenômenos espirituais e se propôs
a desenvolver um corpo de doutrina baseado nos diálogos com
os espíritos, ele definiu o espiritismo da seguinte forma:
“O Espiritismo
é uma Ciência que trata da natureza,
da origem e do destino dos Espíritos, bem como
de suas relações com o mundo corpóreo.”[1]
Isso significa que ele delimitou
um objeto de estudo do espiritismo. Por mais ampla que possa ser
a abrangência deste objeto, Kardec não “invade”
as outras áreas de competência das demais ciências.
Nós, espíritas, continuamos valorizando o saber médico
e o psicológico para o tratamento do câncer, por exemplo,
embora saibamos a partir da própria medicina que a espiritualidade
pode auxiliar a terapêutica médico-psicológica.
O espiritismo não invade, ou pelo menos não deveria
invadir o domínio da física, embora físicos
já tenham estudado temas mediúnicos e formulado hipóteses
para a explicação de fenômenos espirituais de
efeitos físicos. Chamá-lo de "A Verdade"
significa excluir da condição de conhecimento tudo
o que não é espiritismo. Em termos lógicos:
O espiritismo é a verdade.
(premissa maior)
Medicina (ou astronomia, ou química...) não é
o espiritismo. (premissa menor)
Logo: medicina (ou astronomia, ou química...) não
é a verdade. (conclusão)
De volta ao argumento inicial, o
espiritismo não pode ser verdade absoluta, porque há
uma realidade a ser estudada muito mais ampla que a “realidade
espiritual”. Ainda que exista uma conexão entre a “realidade
espiritual” e a natureza ou “realidade material”,
escapa ao espiritismo o conhecimento da natureza em-si. Todos sabemos
que ao estudar mais profundamente a matéria, sem hipóteses
explicativas transcendentais, o conhecimento aumentou, o que significa
dizer que se conhece muito mais sobre a natureza hoje, que há
cem ou duzentos anos. A natureza em-si é do domínio
de outras áreas do conhecimento, algumas delas muito complexas,
ao ponto de demandarem anos e anos de estudo para se poder falar
com alguma autoridade sobre algum de seus pontos.
O que não modificaria no
espiritismo? Para Allan Kardec, qualquer afirmação
que compõe o corpo de doutrina poderia ser modificada[4].
O que tem acontecido, com o passar dos anos, é que os princípios
fundamentais do espiritismo continuam válidos, embora na
própria obra de Kardec tenhamos percebido que houve evolução
na compreensão de algumas teorias secundárias, como
já foi apresentado por Pimentel[5],
em seu trabalho sobre a metodologia do espiritismo.
Não vejo demérito
à doutrina espírita em concebê-la como um conhecimento
sobre os Espíritos e o mundo espiritual, baseado em observação
e nas informações obtidas a partir da mediunidade,
com o emprego da razão e dos métodos experimentais.
Quando se insiste que a doutrina
é “a verdade”, nós a transformamos em
uma espécie de teologia revelada por um ser absoluto (Deus),
ou por seres muito superiores a nós, que não nos cabe
questionar, e perdemos o caráter de conhecimento construído
a partir da razão e da observação e experimentação
de fenômenos, que todos sabemos ser falível. Do ponto
de vista gnosiológico, reduzimos o espiritismo em um tipo
de conhecimento como o catolicismo, o judaísmo, o islamismo
ou o budismo. Com isso, perdemos o seu caráter científico
e filosófico, tão caro a Allan Kardec.
Finalizando, o espiritismo não
é a verdade, mas a busca criteriosa da verdade em assuntos
relacionados aos Espíritos e à vida espiritual.
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[1] Kardec, Allan. O que é
o espiritismo. 5 ed francesa e posteriores. Preâmbulo.
[2] Kardec, Allan. A gênese, os milagres e as predições
segundo o espiritismo. 4ª ou 5ª ed. francesas, cap. 1,
§55.
[3] Fatos seriam eventos da natureza percebidas pelos sentidos humanos,
principalmente pela observação, ampliados ou não
por instrumentos. Fenômenos, a partir de Kant, são
intuições das pessoas “captadas segundo a intuição
e das categorias inatas do intelecto”.
[4] Um último caráter da revelação
espírita, a ressaltar das condições mesmas
em que ela se produz, é que, apoiando-se em fatos, tem que
ser, e não pode deixar de ser, essencialmente progressiva,
como todas as ciências de observação. Kardec,
Allan. Caráter da revelação espírita.
In: A Gênese, os milagres e as predições
segundo o espiritismo. (4ª ou 5ª edições
francesas), cap. 1, item 55.
[5] Pimentel, Marcelo Gulão. O método de Allan Kardec
para investigação dos fenômenos mediúnicos
(1854-1869). Dissertação de mestrado. UFJF. Juiz de
Fora, Programa de Pós-Graduação em Saúde
Brasileira, 2014.