
Em uma das palestras que fiz recentemente, surgiu
uma questão interessante sobre o status epistemológico
do espiritismo. Não dava para desenvolver a questão
nas condições em que nos encontrávamos, então
deixei para tratar aqui, no Espiritismo Comentado.
Meu interlocutor via, de um lado as ciências (entendidas
como as ciências naturais) e de outro a filosofia (com suas
subáreas tradicionais, menos a psicologia). Ele argumentava
que o espiritismo devia tender, portanto, para a filosofia, que
possivelmente teria um poder explicativo melhor.
Contudo, na universidade contemporânea, entre a filosofia
e as ciências naturais encontram-se as ciências humanas
e sociais. São áreas de conhecimento desenvolvidas
geralmente a partir do século XIX, que estudam o homem, sua
cultura, suas organizações e sociedade.
No princípio, as ciências humanas tentaram empregar
métodos das ciências naturais para esses estudos, como
se pode ver em Durkheim (ciências sociais), os autores estruturalistas
e funcionalistas (psicologia), entre outros. Como os avanços
fossem modestos e contraditórios, diferentemente da física,
por exemplo, logo se viu que o objeto de estudo desses cientistas
era capaz de se modificar, o que ele fazia através da linguagem.
Por esse motivo, as ciências humanas avançaram (para
alguns cientistas não), e englobaram métodos de estudo
de base hermenêutica e fenomenológica, que consideram
a apreensão do significado da linguagem humana e suas consequências,
entre outras contribuições que hoje se costuma chamar
de métodos qualitativos, e que vão além da
observação. Autores com De Bruyne, denominam essa
abordagem como abordagem da compreensão (que envolve uma
busca rigorosa do significado do que fala o sujeito e suas implicações),
em oposição à abordagem da explicação,
das ciências naturais (que envolvem, leis, descritas matematicamente,
de forma exata ou probabilística, explicando eventos que
seguem a regularidade matemática encontrada).
Allan Kardec desde o princípio de seus estudos, percebeu
que o método das ciências naturais era insuficiente
para obter respostas para as questões investigativas que
tinha a propor para as “inteligências desencarnadas”.
Ele manteve o indutivismo das ciências naturais, mas percebeu
que como os espíritos tinham diferentes capacidades de descrever
o mundo em que viviam, era necessário classificá-los,
o que fez com a escala espírita, para estudar apenas os relatos
dos espíritos superiores.
Outra coisa que ele fez, muito semelhante à pesquisa fenomenológica,
que só foi estabelecida anos depois, foi buscar na narrativa
dos espíritos superiores, aquilo que lhes era comum. Ele
denominou seu método, na introdução de O Evangelho
Segundo o Espiritismo, de “controle universal do ensino dos
espíritos”. Com isso, ele buscava conteúdos
semelhantes através de médiuns diferentes, de preferência
os que desconheciam as contribuições dadas pelos demais,
como forma de controle da interferência do médium na
comunicação. Em fenomenologia, isso se chama “redução
fenomenológica”. Outro ponto do método de Kardec
era evitar ideias pré-concebidas e ater-se aos conteúdos
colhidos. Em fenomenologia isso se chama “suspensão
de juízo”.
O mestre francês sempre analisava o conteúdo do que
lhe era dito de forma compreensiva (o que significa o que o espírito
disse? Está de acordo com os demais espíritos superiores?
Faz sentido?) e utilizava a razão como forma de análise
e comparação.
Em um artigo já publicado, desenvolvemos mais esse ponto
de vista. Está no livro “O espiritismo, as ciências
e a filosofia”, publicado pela parceria CCDPE-ECM e LIHPE,
e é intitulado “Espiritismo e métodos de pesquisa
em ciências hermenêuticas e fenomenológicas”.

Se aceita essa argumentação, entendemos que do ponto
de vista metodológico e epistemológico, há
conhecimentos no corpo da doutrina espírita que se desenvolveram
com base na observação e experimentação
(ciências naturais), há outros conhecimentos que são
fruto da argumentação racional (filosofia), mas boas
parte do corpo doutrinário repousa em uma análise
fenomenológica daquilo que os espíritos disseram aos
estudiosos do século XIX e que foi analisado por Allan Kardec
(métodos qualitativos de ciências humanas). Boa parte
da ética espírita tem uma dupla origem como conhecimento:
os relatos da vida após a morte e das consequências
das ações em vida (análise fenomenológica
de Kardec), e a análise da ética cristã como
referência ética para a humanidade (o que constitui
parte do aspecto religioso do espiritismo, considerando-se, contudo,
que Kardec busca uma fé raciocinada, ou seja, com contribuições
dos métodos filosóficos, e não apenas uma “fé
cega”)