Da seleção natural à
seleção cultural - Chris Stringer "The Observer"
CHRIS STRINGER - The Observer
FOLHA DE SÃO PAULO
tradução CLARA ALLAIN
Da seleção natural à
seleção cultural
Nossa espécie substituiu
ou se misturou a outros humanos modernos?
RESUMO
Após anos de especulações,
pesquisas com DNA de fósseis levaram à fusão de
duas teorias sobre o berço e a evolução do homem
-a substituição de outras espécies e a hibridização-
num só modelo explicativo, confirmando que, às nossas
origens africanas, soma-se a aquisição de características
por miscigenação.
AS ORIGENS da nossa
espécie vêm sendo fonte de fascínio há milênios
e são responsáveis pela imensa gama de mitos da criação
registrados em diferentes culturas. Lineu (1707-78), o grande classificador
das coisas vivas, nos deu nosso nome biológico, Homo sapiens
("homem sábio"), e não há dúvida
de que nosso crânio arredondado nos diferencia, assim como o queixo
e a arcada supraorbital pequenos. Mas também somos notáveis
por nossa linguagem, arte e tecnologia complexa.
A questão é: onde essas características se desenvolveram?
Que lugar a humanidade pode considerar como sua terra natal? No que
diz respeito a nossos primeiros ancestrais, a resposta geralmente aceita
é a África. Foi lá que nossos primeiros ancestrais,
semelhantes a macacos, começaram a fazer seus lares na savana.
No entanto, ainda se discute ferrenhamente se foi lá que nossa
espécie nasceu.
AGENDAS RACISTAS
Quarenta anos atrás, ninguém acreditava que a origem do
homem moderno pudesse ser a África. Em alguns casos, essa ideia
se baseava em agendas racistas decadentes. Por exemplo, em 1962, o antropólogo
americano Carleton Coon afirmou: "Se a África foi o berço
da humanidade, não passou de um jardim de infância como
qualquer outro. A Europa e a Ásia foram nossas principais escolas."
Parte da confusão se devia à ausência de precisão
ao datar evidências fósseis e arqueológicas. Nos
anos que se seguiram, contudo, tive o privilégio de ajudar a
acumular dados -fósseis, cronológicos, arqueológicos
e genéticos- que mostram que nossa espécie teve, de fato,
origem africana recente.
No entanto, como mostram as últimas evidências, essa origem
foi complexa; em meu novo livro, "The Origin of Our Species"
(a origem de nossa espécie), procuro deixar claro o que significa
ser humano e assim modificar percepções sobre nossas origens.
NEANDERTAIS
Aos dez anos de idade, eu já era fascinado pelos humanos antigos
chamados neandertais. Aos 23, em 1971, estudante em Londres, saía
para fazer uma viagem de pesquisa de quatro meses por museus e institutos
em dez países europeus, para colher dados sobre o formato do
crânio de neandertais e seus sucessores de aparência moderna
na Europa, os homens de Cro-Magnon.
Meu objetivo era testar a teoria, então popular, segundo a qual
os neandertais e gente parecida com eles em regiões do mundo
antigo teriam sido os ancestrais dos habitantes das mesmas regiões
nos dias de hoje.
Eu dispunha de uma subvenção modesta, de modo que fui
no meu carro velho, dormio nele, acampei ou me hospedei em albergues
da juventude; na Bélgica, cheguei a passar uma noite num abrigo
para sem-tetos. Sobrevivi a confrontos em regiões de fronteira
e a dois assaltos, mas, ao final da viagem de 8.000 quilômetros,
tinha reunido um dos maiores conjuntos de dados sobre medidas do crânio
de neandertais e de homens modernos.
Nos três anos seguintes, acrescentei dados de outras amostras,
antigas e modernas, e os resultados foram claros: os neandertais tinham
desenvolvido características especiais próprias e não
pareciam ser ancestrais do homem de Cro-Magnon ou de qualquer população
moderna.
A questão era: onde nossa espécie surgiu? Em 1974, eu
não fui capaz de responder à pergunta, mas assumir o cargo
de pesquisador no Museu de História Natural significava que eu
podia prosseguir na busca.
ÁFRICA
A pesquisa trouxe pistas à tona, e, na década seguinte,
o meu trabalho -e o de alguns poucos pesquisadores- focalizou a África
como berço mais provável de nossa espécie. Permanecemos
como uma minoria isolada até 1987, quando foi publicado o artigo
"Mitochondrial DNA and the Human Evolution" (o DNA mitocondrial
e a evolução humana), de Rebecca Cann, Mark Stoneking
e Allan Wilson.
O texto levou pela primeira vez as origens do homem moderno para as
primeiras páginas de jornais do mundo inteiro, pois mostrava
que uma parte minúscula e peculiar de nosso genoma, herdada unicamente
de mãe para filha, deriva de uma ancestral humana de há
cerca de 200 mil anos. Essa mulher ficou conhecida como a Eva Mitocondrial.
Seguiu-se um furor, à medida que antropólogos debatiam
as implicações na evolução humana.
Depois disso, a teoria dita "out of Africa" (saídos
da África) -ou, como prefiro chamá-la, o modelo da "origem
africana recente" para explicar nossas origens- realmente decolou.
Minha versão propunha o seguinte pano de fundo. A espécie
antiga Homo erectus sobreviveu na Ásia oriental e na Indonésia,
mas, na Europa e na África, evoluiu e transformou-se no Homo
heidelbergensis (a espécie deve seu nome a um maxilar de 600
mil anos, encontrado na Alemanha em 1907).
DIVISÃO
Então, por volta de 400 mil anos atrás, o H. heidelbergensis
sofreu uma divisão evolutiva: ao norte do Mediterrâneo,
evoluiu para os neandertais, e ao sul do Mediterrâneo, na África,
transformou-se em nós, humanos modernos.
Por fim, há cerca de 60 mil anos, o Homo sapiens começou
a deixar a África, e, há 40 mil anos, já com as
vantagens de comportamentos e ferramentas mais complexos, se espalhou
pela Ásia e pela Europa, onde tomamos o lugar dos neandertais
e dos demais povos arcaicos que viviam fora da África. Em outras
palavras: por baixo da pele, somos todos africanos.
Nem todos os cientistas concordaram, porém. Um grupo continuou
a defender a tese da evolução multirregional, numa versão
atualizada de ideias dos anos 1930. Ela previa profundas linhagens paralelas
de evolução em cada região habitada da África,
da Europa, da Ásia e da Australásia, partindo de variantes
locais do H. erectus até as populações que hoje
vivem nas mesmas regiões.
Essas linhagens não divergiram ao longo do tempo, pois foram
unidas pela miscigenação no mundo antigo, de modo que
as características modernas pudessem evoluir, se disseminar e
se acumular ao lado de diferenças regionais de longo prazo, como
o formato do rosto e o tamanho do nariz.
Um modelo diferente, o da assimilação, levava em conta
os novos dados fósseis e genéticos e atribuiu à
África um papel-chave na evolução de características
modernas. Esse modelo, porém, previa que tais características
se disseminassem a partir da África de forma muito mais gradual
do que o meu.
Os neandertais e os povos arcaicos como eles teriam sido assimilados
através de miscigenação ampla. Assim, o surgimento
evolutivo dos traços modernos teria sido um processo de fusão,
em vez de uma substituição rápida.
APERFEIÇOAMENTOS
Quem, então, estava certo? Nos anos 1990, continuou a acumulação
de dados, tanto de populações humanas recentes como de
fósseis neandertais, que davam respaldo ao modelo da origem africana
recente. Enormes aperfeiçoamentos na recuperação
e análise de DNA antigo trouxeram ainda mais informações,
algumas delas bastante surpreendentes.
Fragmentos de fósseis da Croácia renderam um genoma neandertal
quase inteiro, fornecendo informações férteis que
prometem trazer revelações sobre a biologia dos neandertais
-da cor dos olhos e do tipo de cabelo ao formato do crânio e às
funções cerebrais.
Esses resultados mais recentes têm, em grande medida, confirmado
a separação de nossa linhagem, há cerca de 350
mil anos. Mas, quando o novo genoma neandertal foi comparado em detalhe
com o de humanos modernos de diferentes continentes, os resultados apontaram
uma variação intrigante de nossa história evolutiva:
genomas de gente da Europa, China e Nova Guiné eram um pouco
mais próximos da sequência neandertal do que os dos africanos.
Portanto, se você é europeu, asiático ou da Nova
Guiné, é possível que tenha 2,5% de DNA neandertal
em sua composição genética.
MISCIGENAÇÃO
A explicação mais provável para essa descoberta
é que os ancestrais dos europeus, asiáticos e atuais habitantes
da Nova Guiné tenham se miscigenado com neandertais (ou, pelo
menos, com uma população que possuía um componente
de genes neandertais) no norte da África, na Arábia ou
no Oriente Médio quando saíram da África, há
cerca de 60 mil anos.
Esse êxodo antigo pode ter envolvido apenas alguns milhares de
pessoas, de modo que bastaria a absorção de alguns poucos
neandertais num grupo de H. sapiens para que o efeito genético
-fortemente ampliado quando a população de humanos modernos
explodiu- fosse perceptível dezenas de milhares de anos mais
tarde.
O avanço na reconstrução de um genoma neandertal
foi espelhado na Ásia, num trabalho igualmente notável,
sobre o grupo humano que ficou conhecido como "denisovanos".
O fóssil de um osso de dedo, provavelmente de 40 mil anos de
idade, encontrado na caverna Denisova, na Sibéria, ao lado de
um enorme dente molar, não pôde ser atribuído a
uma espécie humana em particular, apesar de também ter
tido boa parte de seu genoma reconstruído.
Isso trouxe à tona um ramo asiático até então
não reconhecido da linhagem neandertal, mas novamente com uma
variação. Aqueles denisovanos eram relacionados a um grupo
de humanos vivos: os melanésios do Sudeste Asiático (e
provavelmente também a seus vizinhos australianos).
Esses grupos carregam cerca de 5% do DNA denisovano, de outro evento
de miscigenação que deve ter acontecido quando seus ancestrais
passaram pelo sul da Ásia, há mais de 40 mil anos.
Como fica o meu modelo das origens africanas recentes diante de toda
esta complexidade e das evidências de miscigenação
com os neandertais e os denisovanos? Foi desmentido, em favor do modelo
multirregional, como afirmaram alguns?
PÊNDULO
Penso que não. Como vimos, em 1970, nenhum cientista pensava
que a África fosse o lugar de origem evolutiva dos humanos modernos;
a região era vista como atrasada e um tanto irrelevante, e o
pêndulo da opinião científica balançava fortemente
em direção aos modelos de ancestralidade não africana
e neandertal.
Vinte anos depois, o pêndulo estava começando a se mover
em favor de nossas origens africanas, à medida que as evidências
fósseis começavam a ser reforçadas pelos sinais
claros do DNA mitocondrial. O pêndulo se moveu ainda mais com
o crescente surgimento de dados fósseis, arqueológicos
e genéticos na década de 1990.
Hoje, a chegada de volumes enormes de dados de DNA, incluindo os genomas
neandertal e denisovano, sustou e até mesmo reverteu o movimento
pendular, distanciando-o da substituição absoluta. Em
lugar disso, estamos olhando para um modelo misto de hibridização
e substituição, ou de "substituição
com vazamentos". É essa dinâmica que torna tão
fascinante o estudo da evolução humana. Ciência
não é questão de estar certo ou errado, mas de
uma aproximação gradual da verdade do mundo natural.
O quadro maior é que ainda somos predominantemente (mais de 90%
de nossa origem genética ancestral) de origem africana. Mas existe
uma razão especial para fazer essa observação?
Globalmente falando, a proeminência da África na história
de nossas origens não envolve um padrão evolutivo especial,
mas se deve às grandes áreas habitáveis do continente,
que ofereciam mais oportunidades para variações morfológicas
e comportamentais, e para que inovações genéticas
e comportamentais se desenvolvessem e se conservassem.
A "modernidade" não foi um pacote que teve origem em
um tempo, um lugar e uma população africanos, mas sim
um composto cujos elementos surgiram em tempos e lugares diferentes
e que, então, se aglutinaram gradualmente até assumir
a forma que reconhecemos hoje.
SELEÇÃO CULTURAL
Meus estudos me levaram a reconhecer mais, na evolução
humana recente, as forças da demografia (a necessidade de grandes
populações e redes sociais progredirem), do movimento
aleatório e da contingência (eventos do acaso) e da seleção
cultural do que a seleção natural que considerei anteriormente.
Parece que o "progresso" cultural foi intermitente durante
boa parte de nossa evolução, até que os grupos
humanos se tornaram grandes, passaram a ter indivíduos de vida
longa e a contar com redes sociais amplas, fatores que ajudaram a maximizar
as chances de inovações sobreviverem e se acumularem.
Lineu disse, a respeito do Homo sapiens, "conhece-te a ti mesmo".
Conhecermo-nos significa reconhecer que tornar-se moderno é o
caminho que enxergamos quando olhamos para trás, para nossa história
evolutiva. Essa história nos parece especial, é claro,
porque a ela devemos nossa existência.
Aquela imagem de espécies humanas (em geral, indivíduos
do sexo masculino, que vão se tornando cada vez menos peludos
e de pele cada vez mais clara) marchando decididamente pela página,
ilustraram nossa evolução em muitos artigos populares,
mas reforçaram incorretamente a visão de que a evolução
não passou de um progresso que desembocou em nós, seu
ápice e sua realização final.
Nada poderia estar mais distante da verdade. Houve muitos outros caminhos
que poderiam ter sido trilhados; muitos deles teriam levado a um mundo
sem humanos, outros à extinção dos humanos, e outros
ainda a uma versão diferente da "modernidade". Podemos
habitar apenas uma versão do ser humano -a única que sobrevive
hoje-, mas o que é fascinante é que a paleoantropologia
nos mostra os outros caminhos para que nos tornássemos humanos,
seus êxitos e seu eventual término, fosse ele em decorrência
de fracassos ou de puro e simples azar.
Às vezes, a diferença entre fracasso e sucesso na evolução
é estreita. É certo que hoje vivemos numa situação
de precariedade extrema, enfrentando um planeta superpovoado e a perspectiva
de mudanças climáticas globais numa escala que os humanos
jamais experimentaram. Esperemos que nossa espécie esteja à
altura do desafio.
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il0307201105.htm