Abrão Slavutzky é psicanalista
e médico psiquiatra com formação em Buenos Aires.
Graduou-se em medicina em 1971, na Fundação Católica
de Medicina do Rio Grande do Sul. Desde 2001, é colaborador
do jornal Zero Hora e de diversas revistas. Entre outros, é
um dos autores e organizadores de Seria trágico... se não
fosse cômico – humor e psicanálise (Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005), Quem pensas tu que eu
sou? (São Leopoldo: Unisinos, 2009) e Psicanálise e
cultura (Rio de Janeiro: Vozes, 1983). Alguns dos livros que organizou
são O dever da memória – o levante do gueto de
Varsóvia (Porto Alegre: AGE, 2003) e A paixão de ser
– depoimentos e ensaios sobre a identidade judaica (Porto Alegre:
Artes e Ofícios, 1998).
Entrevista concedida a Márcia Junges
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
IHU On-Line – Que relações podem
ser estabelecidas entre a fé, o processo de perdão e
a superação do mal?
Abrão Slavutsky – O perdão não
é diretamente um tema psicanalítico, a não ser
pelas suas relações com a melancolia, o supereu, a culpa,
a questão do nome do Pai, entre outros. Seria conveniente pensar,
primeiramente, o perdão a si próprio quanto a falhas
e fracassos que todos temos. Retomarei essa questão mais adiante
bem como a interessante etimologia da palavra perdão. Agora,
vamos à pergunta sobre algumas relações entre
perdão, fé e o mal.
O perdão de Deus aos homens, ou a capacidade de perdoar ao
outro, é essencial na fé. O famoso Pai-Nosso, talvez
a oração mais importante do cristianismo, que teria
sido ensinada pelo próprio Jesus Cristo, considera o perdão
como um meio de estabelecer a relação entre Deus e os
homens. “Perdoa nossas ofensas como nós perdoamos aos
que nos ofendem”. Já no Velho Testamento, o tema do perdão
está presente em Levítico, 16, quando Moisés
determina um dia especial para a purificação dos pecados,
conhecido como Yom Kippur, Dia do Perdão.
Por sua vez, a questão essencial do mal é pensada pela
religião como uma questão externa. A serpente induz
Eva ao mal e ao pecado e segue, por exemplo, na bela parábola
do joio e do trigo do Novo Testamento. O mal como vindo do inimigo,
do exterior, quando, na verdade, o mal é externo e interno,
integra a condição humana. Enfim, as palavras perdão,
fé e mal se relacionam com a religião, a justiça,
e com o conjunto da sociedade. Porque o perdão é derivado
da justiça divina ou humana, mas perdão nunca exclui
a justiça. Por outro lado, a justiça que não
considera a possibilidade do perdão é injusta e má.
IHU On-Line – Qual é a maior dificuldade
em perdoar?
Abrão Slavutsky – Não sei se
seria uma só dificuldade. Na verdade, são várias.
A primeira é o ódio para com quem cometeu uma maldade.
Superar a agressividade gerada pela maldade, por um ato injusto, não
é muito fácil. Perdoar implica suportar não só
a falha do outro, mas a de cada um, pois todos nós falhamos.
Há perdões mais fáceis de se dar, especialmente
com o passar do tempo; já outros podem ser impossíveis.
É, no entanto, sempre um desafio. Um exemplo clínico:
perdoar entendendo as falhas, os erros de nossos pais na educação,
é indispensável para se reconciliar com eles e, em especial,
consigo mesmo. Finalmente, perdoar é suportar a ferida narcisista
que implica aceitar que todos os seres humanos são, às
vezes, piores do que admitimos, mas não se pode esquecer que,
às vezes, também somos bem melhores.
IHU On-Line – Como podemos compreender a importância
do perdão para a transcendência do ressentimento?
Abrão Slavutsky – O ressentimento é
sofrimento, é uma das maiores mortificações de
quem não pode perdoar e se perdoar. Quando escrevi Quem pensas
tu que eu sou?, citei o escritor húngaro Sándor Márai,
que na novela As brasas trata justamente do ressentimento. Novela
impressionante, que dizem ser autobiográfica, na qual relata
a história de um triângulo amoroso. Henrick, um general
aposentado, estava ressentido, pois fora duplamente traído
pela esposa e seu amigo inseparável de toda a vida, Konrad.
Esses dois últimos se apaixonam e vivem uma relação
clandestina que, ao ser descoberta, cria um terremoto psicológico.
O amigo vai embora da cidade sem se despedir do casal, e Henrick nunca
mais dirige sua palavra à esposa, pois esperava por parte dela
ao menos um pedido de desculpas. O tempo passa, os amigos envelhecem
e, passados 41 anos da separação, o amigo Konrad o procura.
Acabam por combinar uma janta, na qual comem em silêncio; ao
terminarem, Henrick fala durante horas num tom de queixa, desabafa
suas mágoas.
O general, ao final do livro, diz: “Há algo pior que
a morte e qualquer sofrimento, é a perda de amor-próprio
... quando uma ou mais pessoas nos ferem em nosso amor-próprio,
que é a nossa dignidade de homem, a ferida é tão
profunda que nem a morte consegue pôr fim a esse tormento...
o amor-próprio é o que há de mais profundo na
vida”. O general não pôde perdoar o amigo, nem
a esposa, e passou a vida ressentido, sofrendo pela grave ferida narcisista.
Suas queixas, na verdade, não eram só contra a esposa
e o amigo, mas se vinculam também à sua vida infantil,
quando ocorreu uma primeira traição, que é a
da mãe, por quem a criança era apaixonada e um dia descobriu
que ela amava a outro. Todo ser humano, toda criança esteve
ligado à sua mãe, da qual foi separado, gerando queixas,
sentimento de ser vítima, de ressentimento. O general do livro
As brasas teve reatualizado seu drama infantil, pois sua esposa e
seu grande amigo o traíram. Perdoar uma traição
é difícil e, às vezes, como nesse caso, é
impossível. Na verdade, todos nós fomos traídos
e traímos, se não o cônjuge, alguma pessoa que
esperava mais de nós, por exemplo. Há os que não
conseguimos perdoar e há os que não nos perdoam, tudo
faz parte da comédia humana, diria Balzac . Por fim, cuidado
com os triângulos amorosos, nem sempre se tem o perdão!
IHU On-Line – Em que medida o perdão
restitui ao ser humano a honra, a liberdade, e lhe devolve a dignidade?
Abrão Slavutsky – Que me perdoem as
demais perguntas, mas essa talvez seja a melhor, ademais traz a continuação
do que vinha dizendo na resposta anterior, em especial quanto à
liberdade e à dignidade. Começo pela palavra liberdade,
mas aqui não tanto à questão das liberdades em
geral, na política ou religiosa (vejam a questão do
cruxifixo no judiciário, tão debatido hoje na mídia).
Aqui me refiro à liberdade psicológica que gera uma
leveza na arte de viver e que faz toda a diferença. Quem não
pode se perdoar e perdoar as injustiças cometidas ou sofridas
fica ressentido, magoado, preso a um passado que não passa.
O ressentido se torna guarda de um cemitério de ações
passadas que não pode superar, logo, fica preso. Forças
libidinais se mantêm absorvidas pelo passado, e o presente fica
empobrecido. Livrar-se do peso das traições é
um alívio, é recuperar a condição de voar
e criar, de não se adaptar à vida como ela é.
Pelo contrário, é transformar, é transcender.
Parêntesis – a cultura oriental tem no tema de transcendência
uma saída à realidade traumática. Quem não
perdoa, não transcende, está apegado ao trauma psíquico
do passado. Finalmente uma palavra sobre a honra: Samuel Johnson ,
no seu dicionário famoso do século XVIII, definia honra
como “nobreza de alma e um desprezo à maldade”.
Logo, sejamos honrados!
IHU On-Line – Qual é a importância
para quem dá e para quem recebe o perdão?
Abrão Slavutsky – Conto uma história
pessoal. Um dia discuti com meu pai, pois ele era diabético
e se cuidava mal da sua doença. Comia frutas escondido, às
vezes enganava até os exames laboratoriais, pois alguns dias
antes ele parava de comer as frutas e os resultados eram todos normais.
Então, fiquei bravo e disse palavras duras como se ele fosse
uma criança. No outro dia, ao encontrá-lo, pedi perdão
através de um pedido de desculpas pela forma como havia falado
com ele. Qual não foi minha surpresa ao escutar dele: “Tu
não tens que me pedir desculpas, logo, eu não tenho
que te perdoar, pois tudo que falaste foi para meu bem”. Não
preciso dizer que fiquei espantado e feliz. Naquele dia aprendi, mais
uma vez, a arte da tolerância, da capacidade de perdoar quando
se perde a cabeça. Ser perdoado e perdoar nos fazem crescer,
nos fazem seres humanos melhores.
IHU On-Line – Como é a concepção
judaica de perdão? Em que ela difere da concepção
do cristianismo?
Abrão Slavutsky – Numa pergunta anterior,
fiz referência ao Yom Kippur, Dia do Perdão, data mais
importante da religião judaica, do povo judeu. Desde criança,
sei que esse dia é o mais importante do ano, dia que se vai
à sinagoga, dia sagrado, dia do jejum. No décimo dia
do Ano Novo, no início de um novo ciclo, se deve perdoar e
obter perdão, nos pecados contra o Todo Poderoso, não
assim contra o semelhante. Recordo que o dia está vinculado
à quebra das tábuas da lei por Moisés ao ver
o bezerro de ouro feito pelo seu povo. A história pode ser
recordada no livro do Êxodo, em que Moisés pede novas
tábuas a Deus e pede perdão pela sua impulsividade.
Tendo recebido o perdão divino, decide instituir aquele dia
como o Dia do Perdão, com a promessa de não mais cometer
as transgressões. Assim buscar-se-ia a purificação
para o Novo Ano. Essa noção de perdão é
um importante valor humano, uma das raízes das quais nasceu
o cristianismo. Em alguma medida, afirma-se que Cristo – que
nasceu judeu e morreu judeu – teria dado ao perdão e
ao amor um status mais elevado que o judaísmo. “Se alguém
te bater na face direita, oferece-lhe também a outra”
(Mateus, 5:39) é uma frase muito conhecida, mas tem uma conotação
talvez masoquista. Aliás, como em todas as frases bíblicas,
é passível dar as mais variadas interpretações.
Por exemplo, um doutor em teologia me contou que há estudos
relacionando a formação de Jesus aos ensinamentos de
Hilel, o sábios dos sábios, uma das maiores referências
do Talmud , obra basilar do judaísmo. Hilel disse: “Não
faças ao outro o que não queres que façam a ti”,
como a essência do judaísmo, e essa frase teria marcado
o poder do amor em Jesus e no cristianismo.
Esse tema das relações entre judaísmo e cristianismo,
culturas-chave na formação do mundo ocidental, juntamente
com a velha Grécia, é fascinante e interminável.
Nos últimos anos, agradeço aos amigos cristãos
que foram me introduzindo ao Novo Testamento. E se diz que Sêneca
introduziu o perdão na esfera do Estado, por influência
do cristianismo. Em sua obra sobre a clemência, afirma que o
perdão é a principal arma do governante para ser justo
e firme como estadista. O paradoxo é que ele terminou a vida
como vítima de Nero, que, desconfiado de sua traição,
obrigou-o a se matar.
IHU On-Line – A partir do holocausto e do nazismo,
como os judeus encaram a questão do perdão?
Abrão Slavutsky – Não creio
que tenha havido uma mudança quanto ao perdão. De qualquer
forma, os crimes contra a humanidade, para todos os povos, devem ser
julgados, estão na área da justiça. Perdão
não é justiça; perdão, como já
disse, é derivado da justiça e praticar a justiça
é julgar, uma missão difícil sempre. O holocausto,
como tive oportunidade de referir na entrevista de 2010 a essa mesma
revista, é um dever de memória, pois a crueldade humana
pode não ter limites, como ocorreu nos campos de extermínio
nazista. Nesse caso sempre se deve aplicar a justiça, bem como
nas agressões das ditaduras contra os direitos humanos. Toda
sociedade precisa, para sobreviver, da justiça, por um lado,
e do perdão, pelo outro. O holocausto não destruiu o
povo judeu e nem a humanidade. Ao contrário do que Adorno escreveu,
a poesia continua viva, pois sua morte seria uma vitória da
crueldade.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum
aspecto não questionado?
Abrão Slavutsky – Três questões
finais – a primeira tem a ver com a política. Por exemplo,
uma parte da mídia, hoje, tende a estimular certo desprezo
pela Comissão da Verdade , que investigará os crimes
do Estado brasileiro contra os cidadãos de nosso país.
Recordo que há mais de cem desaparecidos políticos no
Brasil, após 1964, de quem até hoje suas famílias
não têm notícias e não podem fazer as cerimônias
fúnebres. Esse é um direito humano acima até
mesmo das leis, como Sófocles em sua Antígona defendeu.
Uma questão é o perdão; outras são o dever
da memória e a responsabilidade do Estado diante de desparecidos.
Dizem, aliás, que o Brasil é um país sem memória,
e então eu pergunto: seremos cúmplices dessa falta de
memória ou temos a obrigação de contribuir na
defesa da Comissão da Verdade, que tem a ver com a recuperação
da memória? Dizem que essa Comissão é vingativa,
não quer perdoar, quando, na verdade, ela buscará recuperar
a verdade da história. Logo, é uma expressão
de amor.
A segunda questão é a difícil arte de perdoar,
pois não se pode esquecer o severo supereu, fruto das identificações
com as exigências, herdeiro do complexo de Édipo. Uma
das vantagens das terapias, da análise, é que o psicanalista
não escuta como um juiz, não julga moralmente o paciente.
A questão em análise é abrir espaço para
se entender algo do inconsciente, sistema em que o mal e o bem convivem
sem diferenciação de valor. Sistema em que o tempo não
passa, pois o passado, o presente e o futuro estão juntos,
sem se diferenciar. Perdoar a si próprio pelas falhas, fracassos,
limitações, distância do ideal de eu, é
indispensável para se viver menos angustiado e fazer as pazes
consigo próprio. Não só perdoar a si, como aos
que amamos ao longo da vida, essência da fraternidade, pois,
sem perdão a si e ao outro, a vida social se transforma em
ressentimentos vingativos.
Finalmente, a terceira questão. A palavra perdão tem
sua origem no latim vulgar perdonare; per, através de, e donare,
doar, doar-se. Perdoar é o ato de libertar o outro da culpa,
o perdão liberta a quem o pratica. For-give, ver-geben, per-dón,
per-dão. Praticamente em todos os idiomas a palavra perdoar
tem sua origem em “perdonare”. Em hebraico, o pedido de
perdão, o arrependimento, se expressa por selichá ou
mechilá. Palavra usada, por exemplo, na reza final de um ritual
funerário judaico. Os vivos pedem ao morto selichá,
um pedido de desculpas, um pedido de perdão. Expressam, enfim,
seu arrependimento.
Leveza do ser
Com o perdão a pessoa doa a si e ao outro o que tem de melhor:
compaixão e esperança. O perdão ajuda a aliviar
o peso da existência, na instigante relação entre
o peso e a leveza, que o escritor Italo Calvino estabeleceu na primeira
conferência do seu livro Seis propostas para o novo milênio.
Afirma que é preciso diminuir o peso das palavras, bem como
o peso de como se vê o mundo. Muitas vezes, a religião,
a filosofia, a psicanálise, a mídia têm uma atração
pelo peso, pelos argumentos de peso. É uma visão mais
dramática do que bem-humorada. É possível aceitar
que a condição humana tem uma tendência maior
ao peso, à dor e ao sofrimento, até como expressão
de nosso masoquismo. Felizmente, podemos pensar que a leveza é
tão ou mais séria quanto o peso, pois, para chegar à
quintessência da vida, convém pensar o que disse Millôr
Fernandes . Ele propõe que o humor é a quintessência
da seriedade. Quando se pode ultrapassar a seriedade, chega-se à
verdadeira essência. Enfim, em tempos em que se lê e se
fala tanto em diminuir o peso corporal, quem sabe possamos acrescentar
também uma maior leveza de ser. Se nos perdoamos, se podemos
perdoar o outro, viveríamos com mais leveza e bem estar.
Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br