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Desde o início, ciência e
filosofia caminharam juntas e, pelo menos até o século
XIX, não fazia muito sentido separar as teorias científicas
das teorias filosóficas. O que hoje consideramos ciências
era antes chamado, de um modo geral, de "filosofia da natureza"(1).
Esses estudos procuravam fornecer uma explicação sobre
o mundo que permitisse apontar as leis determinantes de todos eventos
naturais, incluindo o movimento dos corpos celestes, as reações
dos elementos químicos e a origem dos seres vivos.
À medida que essas teorias obtinham êxito na descrição
dos fenômenos da natureza, crescia a ilusão de se construir
uma teoria pura e completa, capaz de prever com exatidão todos
os acontecimentos, muito antes que eles viessem a ocorrer. A concepção
do "demônio de Laplace" - uma entidade, que ao observar,
ao mesmo tempo, a velocidade e posição de cada elemento
na natureza, seria, a partir disso, capaz de deduzir toda evolução
do Universo, tanto no passado como no futuro - representa o tipo de
mentalidade confiante que foi constituída graças ao sucesso
das leis propostas por filósofos, como Isaac Newton e Antoine
L. Lavoisier (1743-1794), tanto na física como na química.
Essa entidade imaginária - sugerida pelo astrônomo e matemático
Pierre Simon Laplace (1749-1827) - revela o quanto a perspectiva determinista
da natureza estava arraigada na pretensão das ciências
clássicas. Bastava que se conhecesse a posição
e a velocidade iniciais dos objetos, para que uma lei natural pudesse
prever todos eventos a eles relacionados, sua origem e seu destino.
Tamanha pretensão acabou por gerar uma tendência a separar
os rumos das pesquisas científicas, da investigação
filosófica dos fundamentos e princípios que explicariam
porque um certo fenômeno acontece de um modo e não de outro.
Às ciências seria suficiente encontrar uma teoria que descrevesse
o comportamento da natureza e pudesse prescrever seus desdobramentos,
enquanto caberia à filosofia a justificativa racional do porque
disso ser assim e não de outro modo. Como conseqüência
dessa divisão de tarefas, o positivismo, desenvolvido por Auguste
Comte (1798-1857) na sua forma mais radical vem propor a redução
da filosofia especulativa - sobretudo a metafísica - aos resultados
da ciência, cujo método deveria ser aplicado a todas as
outras formas de conhecimento. Surgem, então, as ciências
sociais - a antropologia e a sociologia - como disciplinas voltadas
exclusivamente para o exame dos mecanismos e relações
que geram os fatos sociais e a interação humana, de um
perspectiva neutra, deixando de lado as motivações e interesses
que estão na origem do conhecimento científico.
Determinismo e Indeterminação
As ciências clássicas, destacadas
da filosofia, assumem, portanto, essas características deterministas
e de pretensão de neutralidade que permitiram o desenvolvimento
de uma tecnologia como produto de um conhecimento positivo da natureza.
Entretanto, enquanto essa vertente cientificista ia tomando corpo, outras
pesquisas, que produziam resultados divergentes dos paradigmas dominantes,
começaram a abalar as certezas em torno das leis clássicas
da física.
Durante os dois séculos que se seguiram à inauguração
do sistema newtoniano, as três leis fundamentais da mecânica
e a noção determinista imanente permaneceram inabaláveis.
As principais dificuldades para a visão mecanicista do universo
surgiram a partir da segunda metade do século XIX em diante.
Principalmente depois que o físico alemão Rudolf J. E.
Clausius estabeleceu, em 1850, a segunda lei da termodinâmica
- também conhecida como princípio de degradação
de energia (ou entropia) -, pela qual o calor não passa espontaneamente
de um corpo para outro de temperatura mais alta, mas sim do corpo mais
quente para o mais frio.
Ao longo do tempo, seria impossível que o calor dissipado por
um corpo fosse reconstituído depois dele ter esfriado. Isso não
permitiria a reversibilidade do tempo, como queria Newton, dificultando
a localização de um ponto no passado, desde os dados do
presente, uma vez que a energia fora dissipada por um objeto em movimento,
não poderia ser totalmente resgatada. Isso não forneceria
condições para o cálculo absolutamente preciso
de sua trajetória num tempo passado, pois o tempo teria uma direção
irreversível que privilegiaria o deslocamento para o futuro.
Por outro lado, o matemático francês Jules-Henri Poincaré,
em 1905, observava que mesmo a lei da gravitação - por
ele considerada a "menos imperfeita de todas as leis conhecidas"(2)
- quando prevê o movimento entre dois corpos no espaço,
deve negligenciar a interferência de outros objetos envolvidos
nessa relação, a fim de poder calcular com "precisão"
as suas trajetórias. A órbita da Lua em torno da Terra,
por exemplo, teria de omitir a influência do Sol e outros astros
do sistema solar. O deslocamento da Lua só poderia se dar com
uma quase-certeza, aquém da pretensão suposta pela física
clássica: "embora essa probabilidade seja praticamente equivalente
à certeza, não é mais que uma probabilidade",
disse Poincaré em O Valor da Ciência(3).
Poincaré foi o primeiro a mostrar, matematicamente, a complexidade
existente na interação gravitacional de um sistema com
mais de dois corpos e que a física clássica não
poderia encontrar uma solução geral, para esse tipo de
problema, na trilogia Les Méthodes Nouvelles de la Mécanique
Céleste (Os Novos Métodos da Mecânica Celeste,1892-1899).
Mas é com o surgimento da física quântica que o
determinismo das leis naturais se torna problemático nas experiências
que tentam fazer uma medição das partículas subatômicas.
A dificuldade de medição decorre do fato de que o próprio
ato de observação de uma partícula altera a posição
e a velocidade do objeto examinado. Os eventos da física atômica
apresentam a impossibilidade de se prever a trajetória de um
elétron, por exemplo, no intervalo entre os momentos inicial
e final da experiência, por mais preciso que seja o instrumento.
Em conseqüência disso, o físico dinamarquês
Niels Bohr (1883-1962) propunha que, apesar dos fenômenos transcenderem
"o âmbito da explicação da física clássica,
a descrição de todos os dados deve ser expressa em termos
clássicos"(4). Dessa forma, ele procurava descrever os novos
fenômenos através de uma linguagem "complementar"
que utilizasse os termos consagrados pela tradição, ao
lado de um rigoroso cálculo matemático que fosse além
da perspectiva determinista ou reducionista das imagens clássicas.
Ou seja, os "dados obtidos em diferentes condições
experimentais não podem ser compreendidos dentro de um quadro
único, mas devem ser considerados complementares, no sentido
de que só a totalidade dos fenômenos esgota as informações
possíveis sobre os objetos"(5). Assim, onde a descrição
da física clássica falhasse, uma nova interpretação
do fenômeno, sob a ótica da matemática formal da
mecânica quântica, ampliaria o quadro explicativo, proporcionando
maior precisão na explicação do evento físico.
Conhecimento e Interesse
As conseqüências dessa nova
postura da física contemporânea podem ser estendidas para
as ciências humanas, em geral. A impossibilidade de reduzir-se
o comportamento humano a uma explicação meramente mecânica,
mantém como válida as descrições que levam
em conta o livre arbítrio, as crenças e os desejos. Pois
as ciências da natureza não poderiam se valer de conceitos
como liberdade e vontade, tradicionais na atribuição de
intenções aos agentes humanos, já que da perspectiva
externa dos observadores das ciências da natureza, a explicação
só poderia se dá utilizando termos como posição
dos corpos, aceleração, massa, força, entre outros,
sem apelar para fatores intencionais de cada indivíduo envolvido.
A impossibilidade de uma construção teórica objetivista
e reducionista, por parte das ciências empíricas, atinge
também a pretensão de neutralidade, que outrora se imaginava
quanto aos interesses subjetivos dos próprios cientistas. Uma
vez que - tanto na física, como na sociologia - a posição
do pesquisador-observador interfere decisivamente nos resultados da
experiência, sua postura neutral fica comprometida. Neste instante,
os interesses de cada um devem ser considerados. Cabe, então,
à epistemologia, como crítica filosófica do conhecimento
científico, questionar os métodos da ciência em
sua pretensão de formular uma ciência pura da natureza,
sem levar em conta os interesses de quem observa e é observado,
ao se fazer uma escolha por um determinado encaminhamento da investigação.
A aplicação do método das ciências empíricas
às ciências humanas não pode mais aspirar ao reducionismo
ou eliminação de uma explicação que considere
os interesses específicos de cada disciplina. A crítica
epistemológica, do conhecimento científico, pode agora
chamar atenção para o fato de que o suposto objetivismo
das ciências esconde uma tentativa de fornecer instruções
dogmáticas para a ação, sem qualquer reflexão
quanto aos interesses incorporados na busca de conhecimento.
A crítica filosófica das ciências pode afirmar,
tendo em vista os desdobramentos das revoluções científicas,
que tal neutralidade não impede os cientistas de intervirem na
prática social, segundo os interesses sugeridos nas leis deterministas
ou não de suas teorias(6). A manutenção de um paradigma
cientificista imparcial e reducionista revela o tipo de interesse e
a estrutura comunitária de um grupo de cientista que opta por
uma concepção determinista da natureza e que pensa ter
a ciência o poder de predizer os fenômenos, permitindo maior
controle sobre eles. Apesar de todos problemas cognitivos impostos pela
física contemporânea e a pela crítica filosófica
quanto à motivação dos cientistas, ainda há
físicos como o inglês Stephen Hawking e o biólogos
como E. O. Wilson que pensam o universo e o comportamento humano enquanto
geridos por leis deterministas que o esforço da ciência
tenta descobrir(7).
Tal tipo de comportamento demonstra que, por mais isenta que seja uma
pesquisa científica, a sua orientação é
feita tendo em mente os interesses e a tradição de um
certo grupo de cientista que elaboram suas teorias e executam suas experiências,
de acordo com os pressupostos aceitos pela comunidade a qual cada um
esteja vinculado. Pois como sugere Thomas Kuhn, em A Estrutura das Revoluções
Científicas (1970), é o paradigma dominante que elegerá
os membros a serem aceitos pela comunidade científica, o processo
a ser adotado, os objetivos a serem investigados, além das variantes
aceitáveis, segundo o padrão científico(8).
A ciência, como toda atividade humana, está sujeita a esses
fatores de socialização que visam a sobrevivência
do grupo ou comunidade. As experiências que fogem dos padrões
adotados, como aquelas que demonstraram as características aleatórias,
não deterministas, na natureza, serviram para apontar as limitações
das pretensões reducionistas e deterministas do conhecimento
científico que predominou nas ciências clássicas.
Por outro lado, elas serviram também como uma contra-prova que
revelou as tendências dogmática e positivista dos cientistas
que tentavam propor leis inquestionáveis para a ação
humana, diante da natureza. Nestas circunstâncias, a implementação
desse novo paradigma indeterminista da física contemporânea
contribuiu para que a epistemologia criticasse a neutralidade dos cientistas
quanto aos interesses sociais e sua incorporação numa
tradição histórica, que nem sempre é assumida
pelos próprios pesquisadores, seja nas ciências da natureza,
nas exatas ou humanas. O que prova a existência de limites para
o conhecimento científico neutro e absoluto.
Bibliografia
ASIMOV, I. Gênios da Humanidade.
- Rio de Janeiro: Bloch, 1974.
BOHR, N. Física Atômica e Conhecimento Humano; trad. Vera
Ribeiro. - Rio de Janeiro: Contraponto, 1995.
HABERMAS, J. Técnica e Ciência como "Ideologia";
trad. Artur Morão. - Lisboa: Edições 70, 1987.
KUHN, Th. A Estrutura das Revoluções Científicas;
trad. Beatriz V. Boeira e Nelson Boeira. - São Paulo: Perspectiva,
1997.
NEWTON, I. Princípios Matemáticos; trad. Carlos L. Mattos.
- São Paulo: Abril Cultural, 1983.
PENROSE, R. O Grande, O Pequeno e a Mente Humana; trad. Roberto L. Ferreira.
- São Paulo: UNESP/Cambridge, 1998.
POINCARÉ, J-H. O Valor da Ciência; trad. Mª Helena
F. Martins. - Rio de Janeiro: Contraponto, 1995
PRIGOGINE, I. e STENGERS, I. A Nova Aliança; trad. Miguel Faria
e Mª Joaquina M. Trincheira. - Brasília: Unb, 1991.
Notas
1. Isaac Newton (1642-1727)
batizara sua obra principal de Philosophie Naturalis Principia Mathematica
(Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, 1687), enquanto
o naturalista Jean B. Lamarck (1744-1829) publicara sua teoria evolucionária
no livro Philosophie Zoologique (Filosofia Zoológica, 1809),
que muito influenciou Charles Darwin.
2. POINCARÉ, J-H. O Valor da Ciência, cap. XI, § 5,
p. 158.
3. POINCARÉ, J-H. Op. Cit, idem.
4. BOHR, N. "O Debate com Einstein Sobre Os Problemas Epistemológicos
Da Física Atômica", in Física Atômica
e Conhecimento Humano, p. 50.
5. BOHR, N. Op. Cit., p. 51.
6. Veja HABERMAS, J. "Conhecimento e Interesse", in Técnica
e Ciência como "Ideologia", cap. VII, p. 145/147.
7. Veja HAWKING, St. Buracos Negros, Universos-Bebês e WILSON,
E. O. Sociobiology. - Cambridge: Havard University Press, 1975.
8. Veja KUHN, Th. A Estrutura das Revoluções Científicas,
posfácio p. 217-257.
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