PENSE - Quem é
Signates?
SIGNATES - Sou jornalista profissional e professor
da Universidade Federal de Goiás. Tenho 41 anos, casado,
pai de três filhos. Me tornei espírita em 1975 com
a leitura do Nosso Lar, obra que balançou minha cabeça.
PENSE - Você
acha que começou bem?
SIGNATES - Não sei, acho que sim (risos).
Acredito que sim pois ele me desvendou uma realidade inesperada
e me vinculou de uma maneira tão forte ao Espiritismo que,
confesso a você, não me lembro mais como pensava e
como eu era antes, nos meus 15 anos. Em 28 de março de 1976
fui ao primeiro centro espírita de Goiânia. Em 1979
fui convidado a assumir um departamento na Federação
Espírita do Estado de Goiás e estou no Espiritismo
até hoje. Dois meses depois eu já havia lido as principais
obras de Kardec e várias de Chico Xavier. Eu passava dia
e noite lendo tudo aquilo. Sou de Goiânia e moro lá
até hoje. Fui vice-presidente de comunicação
social espírita da Federação e atualmente atuo
na Abrade - Associação Brasileira dos Divulgadores
Espíritas e faço mestrado na ECA-USP.
PENSE - Você
tem defendido a idéia de que ao invés de se discutir
temas divergentes, os espíritas deveriam partir para um caminho
mais sociológico, mostrando em termos filosóficos
para a sociedade as contribuições que o Espiritismo
pode dar nessa área. Você acha que isso poderia ser
um fator de união entre espíritas com uma forma diferenciada
de encarar a Doutrina Espírita?
SIGNATES - Acho que algumas coisas têm de
ser separadas. O caminho que tenho sugerido, de forma despretensiosa,
apenas como uma forma das pessoas pensarem sobre o assunto, é
para o movimento espírita, sobretudo, uma opção
ética. Encarar o Espiritismo como uma ética específica.
Nesse sentido, temos trabalhado a idéia de uma ética
de fraternidade, capaz de nos unir, os espíritas entre si
e também em relação aos interesses, às
demandas da sociedade. Kardec foi um visionário quando ele
trabalhou a idéia de que a última fase de propagação
do Espiritismo seria a fase de reforma social. No momento em que
estivermos em condições de dar à sociedade
uma opção efetivamente importante nós estaremos
de fato dentro do caminho correto, como espíritas.
A interpretação que eu faço é que só
é possível atingir isso dentro da opção
de uma ética de vida, de uma ética de fraternidade
em relação à questão social e não
o Espiritismo como uma ideologia que venha a converter as pessoas.
Nós não vivemos mais num mundo de pensamento único.
Vivemos num mundo que se mundializa de uma maneira muito vertiginosa,
num processo que não tem só aspectos positivos, mas
tem aspectos negativos. Essa mundialização é
também a destruição de identidades culturais,
a pauperização de faixas enormes da sociedade. A mundialização
é econômica e política, um projeto de dominação,
um processo fomentador de injustiças sociais. Isso tudo tem
de ser redimensionado numa ótica espírita.
Então eu acho que o caminho é sobretudo ético.
O que é sociológico é o meu estudo pessoal.
O Espiritismo é para mim um movimento social. Incluindo nessa
idéia, de movimento social, o mundo dos Espíritos,
que é feito de gente também. Com todas as características,
positivas ou não, de um movimento social. Que às vezes
se articula politicamente, que se fragmenta ideologicamente, que
entra em contradição consigo mesmo. Hoje nós
vivemos uma contradição entre o que a gente diz e
o que a gente faz.
PENSE - Qual a
diferença entre o Espiritismo enquanto corrente filosófica
e o Espiritismo como movimento social? São duas visões
diferentes.
SIGNATES - O Espiritismo é um movimento
social inspirado em uma filosofia específica que no Brasil
se transforma em uma teologia, tem todas as características
de uma teologia, na prática, em suas características
pragmáticas. Como movimento social a gente separa as pessoas
entre espíritas e não espíritas. A gente se
constitui por uma identidade cultural própria e essa identidade
passa pela admissão de determinadas crenças e determinados
princípios de crença. Eu não considero isso,
sob uma perspectiva sociológica, um mal em si.
PENSE - O Espiritismo
é para você uma corrente filosófica?
SIGNATES - Sim.
PENSE - E essa
idéia é incompatível com o conceito de movimento
social?
SIGNATES - De maneira nenhuma.
PENSE - Essa separação
que comumente se faz entre Espiritismo e movimento espírita
é puramente teórica?
SIGNATES - É não somente teórica
mas também de índole positivista. Não se separa
hoje em dia o ser que pensa daquilo que é pensado.
PENSE - Então
os sociólogos e antropólogos estão corretos
ao considerarem o Espiritismo como uma religião.
SIGNATES - Sociológica e antropologicamente
não tem como negar que o Espiritismo seja uma religião.
Na prática ele é uma religião e se insere dentro
do perfil das religiões e a prática dele é
religiosa. Agora, isso não significa que não seja
possível fazer ciência no Espiritismo, que não
seja possível utiliza-lo como um objeto de ciência.
Uma coisa não impede a outra. Mesmo essa tentativa que existe
entre nós de separação do aspecto científico
da prática religiosa é uma pretensão positivista,
herdada do século 19. Como todo movimento de índole
ideológica ele traz dentro de si questões que se reproduzem
como se fossem mitos de origem, se reproduzem dentro de nosso processo
de prática. A disputa que existe entre ciência e religião,
por exemplo, é pelo menos no âmbito das ciências
sociais algo que não se questiona. O Espiritismo é
uma religião na prática por que os espíritas
no Brasil fizeram dele uma religião.
É um mal em si ele ser religião? Pode ser que sim,
pode ser que não. Um aspecto que acho muito positivo no formato
do Espiritismo como religião é a capacidade que a
religião tem de galvanizar as emoções e de
transformá-las em prática social. Um aspecto negativo
é a tendência ao dogmatismo e à intolerância
que leva à incapacidade das pessoas em se reunir e discutir
as coisas com liberdade, com tranqüilidade. A formação
de áreas e a interrupção do diálogo
é um aspecto negativo do Espiritismo enquanto movimento religioso.
Vejo aí a religião não como simples teoria,
mas como uma prática social específica. É possível
inclusive afirmar que determinadas ciências são quase
religiões. Por que se desencadeia um nível de dogmatismo
em relação a determinados pressupostos. Veja o marxismo,
por exemplo. Há partidos marxistas no Brasil que na prática
são verdadeiras religiões.
PENSE - Chegam
a ser milenaristas e fundamentalistas.
SIGNATES - Veja o PSTU e o PCdoB. São partidos
que trazem uma índole de adesão religiosa muito grande.
Existe um núcleo de conteúdo de crença que
ou são aceitos ou a pessoa está fora. Você quer
uma coisa mais religiosa do que passeata? É uma procissão!
A palavra de ordem funciona como uma ladainha. Essas coisas são
aglutinadoras da sociedade. Elas galvanizam sentimentos, simplificam
o modo de pensar, o discurso. No discurso marxista, você não
precisa ter lido o Capital para entrar num partido desses.
PENSE - Há
muitos comunistas que nunca leram o Capital, uma obra difícil,
um tratado de economia política.
SIGNATES - Pois é o salto religioso que
viabiliza uma agregação, a formação
de um movimento social, de um movimento de massa. O Espiritismo
tem essas características? Claro que tem. Como tudo aquilo
que na sociedade deve ser visto dialeticamente, o Espiritismo tem,
nessas características, aspectos que são muito positivos
e aspectos muito negativos.
PENSE - Kardec
considerou o Espiritismo como o secundador do processo de regeneração
da humanidade. O que ele quis dizer com isso? Que não é
o Espiritismo que iria causar a transformação. Isso
significa que ele não tem que se constituir num partido.
Inclusive, pelas divergências e diferenças que existem
entre os espíritas isso seria inviável.
SIGNATES - Isso seria não somente inviável,
mas também algo indesejável. Na sociedade moderna,
muitos sociólogos e filósofos sociais da atualidade
dizem isso com muita firmeza: na sociedade capitalista moderna acontece
uma desconexão de dois grandes sistemas de natureza estratégica
e instrumental, orientados para a reprodução simplesmente
material. Que são o sistema da economia e o sistema de Estado.
O sistema da economia orientado para a produção, para
a reprodução material e o sistema de Estado destinado
à reprodução material do poder. Esses dois
sistemas se entrelaçam, conflitam um com o outro, mas eles
se diferenciam da sociedade, de seus interesses mas até certo
ponto.
Tornar o Espiritismo um partido seria vinculá-lo a um desses
sistemas. Torná-lo uma instituição vinculada
ao Estado, seria transformá-lo numa instituição
de poder.
PENSE - Seria um
suicídio.
SIGNATES - Seria a institucionalização
completa do Espiritismo como sistema de poder. Ele se descaracterizaria
como a Igreja Católica se descaracterizou em relação
ao cristianismo. Na história das religiões temos diversos
exemplos de institucionalização que culminaram na
negação da própria revolução
que deu origem a esses conjuntos de idéias, a esses movimentos.
É interessante até observar que no mundo contemporâneo
as organizações que passam a constituir um sentido
muito forte de representarem a sociedade nesse sentido são
as organizações não-governamentais (ONGs),
cuja natureza específica é justamente não pertencer
ao sistema de Estado. Aquele objetivo que é de índole
bem marxista, de fazer um partido e de se apropriar do Estado, não
é conveniente a qualquer movimento que deseja se manter identificado
com interesses efetivos, espirituais ou não, da sociedade.
Não é nem viável nem desejável.
PENSE - Poderíamos
dizer que o Espiritismo então é um movimento contracultural?
É claro que a palavra contracultura está vinculada
a uma idéia que surgiu nos anos 60, ao movimento hippie,
ao chamado flower power. Ao invés de se partir para a conquista
do poder, você nega esse poder e criar um outro poder. Um
poder alternativo, contracultural. Os hippies tentaram fazer isso
mas em função das drogas e da ausência de uma
base filosófica mais sólida, não deu certo.
Será que a atuação do Espiritismo não
tem que ser no plano filosófico, cultural, secundando esse
processo de mudança social, como Kardec mesmo falou?
SIGNATES - Não há nem condições
sociais, históricas, políticas do Espiritismo ser
partido. Assim também não há condições
para que ele seja contracultura. No Brasil o Espiritismo é
um movimento de classe média. Querer que um movimento desses
seja contracultural é querer demais. Eu acho que no Brasil
o Espiritismo é um movimento social que se tornou forte por
conta da forma como ele assume um certo imaginário de construção
da identidade cultural brasileira. Tenho comentado isso nos meios
acadêmicos com alguns sociólogos e alguns antropólogos.
Ainda não foi estudada a contribuição que o
movimento espírita brasileiro nesses últimos 150 anos
deu à construção da identidade cultural brasileira,
do brasileiro se conhecer como brasileiro e gostar do Brasil. Nisso
o Espiritismo tem dado uma contribuição. Você
brincou com a idéia do “Nosso Lar” no início
da nossa conversa. E digo a você que o Nosso Lar faz parte
da construção de um imaginário de Brasil autoafirmativo.
PENSE - Assim como
aquele livro do Humberto de Campos (Espírito), Brasil Coração
do Mundo Pátria do Evangelho?
SIGNATES - Sim. É aquilo que a Marion Aubree
e o François Laplantine chamam no livro La Table, le Livre
et Les e Spirits, de brasilodisséia. O Espiritismo talvez
tenha construído o primeiro relato mítico do Brasil
como o país central do mundo. Todas as grandes civilizações
do mundo, da história, tinham um relato mítico, tinham
uma mitologia. Estou observando isso numa perspectiva antropológica.
Ou seja, eu não estou me importando, não estou discutindo
se isso é verdadeiro ou não. Mas sim a forma de como
isso se torna uma prática social, a forma de como se constrói,
dentro do movimento espírita e não só dentro
dele, elementos que se desencadeiam a partir do Espiritismo no Brasil.
E o Espiritismo já tem um punhado de filhos. O primeiro deles
é a Umbanda.
PENSE - Você
quer dizer que a Umbanda surgiu no movimento espírita?
SIGNATES - Os cultos afro-brasileiros antecedem
ao Espiritismo mas a Umbanda não. É uma religião
brasileira surgida do sincretismo entre o candomblé e o Espiritismo
Kardecista, na década de 30, no Rio de Janeiro. Isso é
histórico, é documentado.
PENSE - Essa não
é a visão de Cândido Procópio em seu
livro Kardecismo e Umbanda.
SIGNATES - Isso é pós-Procópio.
O espírita brasileiro só leu Cândido Procópio,
Arthur Ramos. Enquanto se “falava mal” da religião
negra o espírita leu. A partir do momento em que ela passou
a ser valorizada, a ser estudada como movimento social pela antropologia,
pela sociologia, os espíritas brasileiros, me parece, deixaram
de estudar. Não que fizeram isso por má-vontade.
PENSE - Como se
deu então o surgimento da Umbanda?
SIGNATES - A Umbanda surge em dois centros espíritas
do Rio de Janeiro, na década de 30, no início do êxodo
rural e da industrialização no Brasil. Esses dois
grupos resolveram questionar a comunicação mediúnica
somente com Espíritos de brancos. Passaram a querer se comunicar
com os Espíritos dos negros, dos índios. Evidentemente,
por conta da época, de uma maneira que esses Espíritos
eram construídos a partir de um imaginário romântico,
pois o caboclo e o preto velho fazem parte desse imaginário.
As tradições negras nunca lidaram com Espírito
desencarnado. Essa idéia é espírita. Essas
tradições sempre lidaram com deuses, com orixás,
que são deuses tribais. E que foram sincretizados com o catolicismo
como uma forma de enganar os senhores de escravos para poderem desempenhar
o culto deles, mesmo sendo católicos, como era o Império.
A Umbanda é, documentalmente, o primeiro filho do Espiritismo,
um filho rejeitado.
PENSE - E como
as lideranças espíritas reagem quando você faz
essa afirmação?
SIGNATES - Algumas me questionaram e procuraram
saber se não haveria alguma maneira de se provar o contrário
disso que estou afirmando. Eu respondi que sim, que é perfeitamente
possível provar o contrário, desde que se faça
ciência. Não existe ponto final em pesquisa científica.
PENSE - Mas nesse
terreno há muita confusão. As pessoas confundem Umbanda
com Candomblé, com Aruanda, Quimbanda etc.
SIGNATES - Do mesmo jeito que os católicos
confundem os espíritas com os umbandistas, com o candomblé.
Sempre quando se é contra alguma coisa a tendência
é reduzir as pessoas e deixar de ver nelas as diferenças.
As religiões negras no Brasil começaram espíritas
e é por razões históricas que ainda existem
tendas espíritas de umbanda. Elas se iniciaram assim. Mas
foram duramente rejeitadas. Houve instituições de
grande porte que colaboraram, na época da repressão
getulista, na perseguição aos terreiros de Umbanda
e de Candomblé, aos terreiros de magia negra. Colaboraram
com a polícia, com a repressão.
PENSE - A Umbanda
é mais democrática do que o Espiritismo?
SIGNATES - Não faço a mínima
idéia. Eu sei que é uma cultura que se diferenciou.
A Umbanda é hoje um movimento próprio, uma religião
própria, também extraordinariamente fragmentada, que
não se confunde mais com o movimento espírita. Se
bem que até hoje ainda existem coisas que tenho chamado de
ressincretismos, de instituições espíritas
que ainda lidam com faixas intermediárias entre essas diferenças.
Chamando às vezes atenção para aquilo que o
Cândido Procópio denomina de continuum mediúnico,
talvez tenha alguma razão de ser, embora metodologicamente,
cientificamente, seja muito difícil de ser sustentado.
PENSE - Que construção
da identidade brasileira é essa?
SIGNATES - Essa contribuição que
a idéia espírita, trazida da França para o
Brasil, oferece ao imaginário, à construção
da identidade brasileira ainda está por ser descrita pelas
ciências sociais. Por que o Espiritismo faz tanto sucesso
no início nas regiões principalmente do Rio de Janeiro
e da Bahia e aqui em São Paulo, no final do século
retrasado e início do século 20? Porque havia no imaginário
brasileiro, da elite brasileira da época, das classes mais
intelectualizadas, um sonho muito grande de transformar o Brasil
numa segunda Europa. O Espiritismo veio e trouxe para nossa elite
essa impressão de que agora nós somos europeus quando
a gente se torna espírita. Isso cumpre uma função
importante na construção do imaginário brasileiro.
Os relatos mediúnicos do Chico Xavier em estilo muito romântico
são bem próximos da discursividade da prática
católica que influenciou muito a formação da
estrutura institucional do Espiritismo brasileiro. O nosso Espiritismo
se casou com a cultura brasileira de uma forma que deu muito certo
e que dá uma contribuição importante para a
formação dessa nossa identidade.
PENSE - A contribuição
então, do Espiritismo, se dá em relação
à construção do mito do Brasil do futuro, onde
vai começar a Nova Era etc.?
SIGNATES - Me refiro ao mito em seu sentido positivo.
Se você pegar a geografia, a fronteira brasileira, ela só
existe na cabeça dos brasileiros. O mundo dos homens só
existe na linguagem, nas relações sociais. Ele existe
no mundo social. E no imaginário do brasileiro, no que ele
é diferente do europeu, do americano, do argentino etc.
PENSE - A questão
é cultural. Mas essa idéia de que o Brasil é
o celeiro do mundo, o arauto da Nova Era, não é tão
repulsiva assim. É uma idéia muito positiva. Assim
como tem a Terra dos Bravos, pois os norte-americanos também
possuem o seu imaginário. Todo povo tem que ter isso por
uma questão até de sobrevivência cultural. Mas
essa contribuição cultural do Espiritismo não
é uma visão emprestada do esoterismo?
SIGNATES - Eu diria o contrário. É
o esoterismo que se apropria dessa visão. Me refiro ao movimento
New Age nos EUA, ao Espiritualismo que surgiu no século 19,
a Teosofia, a Antroposofia, o círculo do pensamento esotérico
que veio para o Brasil e que fez parte do movimento espírita
numa certa época. Esses movimentos surgem ao mesmo tempo
e alguns deles, posteriormente ao movimento espírita na França.
O Espiritismo no século 19 foi uma das grandes mães
do movimento espiritualista que hoje toma conta do mundo contemporâneo.
Não é à-toa que praticamente todos esses movimentos
se reportam aos fenômenos de Hydesville ocorrido com as Irmãs
Fox nos Estados Unidos. A filosofia do Edgard Cayce, por exemplo,
ensina que a anunciação, de que o relato mítico
original se dá em Hydesville. E é quase o mesmo relato
que nós fazemos. O Espiritismo deu uma contribuição
importante na criação da Teosofia, de onde surge a
Antroposofia. A grande questão é que o Espiritismo
no Brasil não sofre a fragmentação que ocorreu
em outros países e nem perde o seu caráter de racionalidade,
que herdou do racionalismo francês, a partir do trabalho de
Allan Kardec, e que aqui se torna mais um de nossos discursos mais
ou menos míticos, porque a gente se diz ciência, mas
não é ciência na prática.
PENSE - Essa é
uma das grandes contradições do Espiritismo brasileiro.
SIGNATES - Sim. A gente se diz filosofia, tem uma
vertente filosófica muito importante, especialmente no âmbito
da filosofia moral e da teologia. Nós temos uma teologia
espírita. A gente não chama assim mas é assim
que ela funciona. Mas que de certa forma descoincide com algumas
coisas de nossa prática, que vem sendo analisada com bastante
acuidade pelos espíritas de mentalidade mais laica. Embora
ainda mantenham alguma coisa daquela busca de origem, daquela busca
da diferenciação: “nós somos ciência,
não somos religião”. E que é uma coisa
problemática, do ponto de vista da forma de construção
social do Espiritismo brasileiro. Tanto quanto negar o Espiritismo
como uma prática religiosa que se tornou, até certo
ponto, popular no Brasil.
PENSE - Mas, retomando
aquela questão do imaginário: a profecia do Brasil
Coração do Mundo Pátria do Evangelho é
do Dom Bosco que, em estado de êxtase, proferia profecias
e uma delas se refere ao Planalto Central, de onde surgiria “a
terra do leite e do mel”. Ora, nem nisso Humberto de Campos
(Espírito) foi original. E esse livro, psicografado por Chico
Xavier, tornou-se a bússola do movimento espírita
brasileiro a partir de 1949, com a instituição do
chamado Pacto Áureo, um acordo autoritário de lideranças
espíritas em torno da Federação Espírita
Brasileira. Esse imaginário que você se refere não
é muito claro. Talvez os estrangeiros brasilianistas conheçam
mais sobre esse imaginário do que os nossos antropólogos,
com exceção do Roberto da Matta, Darcy Ribeiro e do
sociólogo Renato Ortiz, dentre outros pensadores. O que há
são idéias enxertadas de outras correntes de pensamento
que o Espiritismo brasileiro absorveu sem muito questionamento.
SIGNATES - É muito problemático querer
que em cultura uma idéia só tenha validade se ela
tiver originalidade. Nossa cultura, a brasileira, é uma mescla,
com uma influência européia muito forte. Nós
não poderíamos nem reivindicar que o Espiritismo viesse
a fazer pesquisa científica porque a ciência também
não foi inventada pelo brasileiro. Penso que essa correlação
das profecias do Dom Bosco com o relato mítico do Humberto
de Campos, se for consistente, isso não faz mais do que corroborar
o fato de que o Espiritismo brasileiro foi construído a partir
de uma estrutura católica, que é uma verdade histórica.
Os primeiros praticantes de sessão mediúnica no Brasil,
na segunda metade do século 19 vieram católicos. O
catolicismo era a religião oficial do Império. Ainda
não havia a laicidade do Estado e se consolidado a idéia
de que a pessoa pudesse ter a religião que escolhesse. Uma
idéia de certa forma mercadológica, da religião
como uma escolha, que é uma idéia do século
20.
Até o século 19 a religião era a do lugar de
onde se nascia. O filho de pais judeus é então judeu.
A religião é uma questão de identidade cultural.
A guerra, por exemplo, entre católicos e protestantes não
tem nada a ver com a religião, assim como o conflito entre
judeus e palestinos não passa pela estrutura do pensamento
religioso. Elas têm a ver com a territorialidade, com a economia,
com relações sociais concretas. No Brasil do século
19 havia padre que participava de reunião mediúnica.
Essas pessoas praticavam o Espiritismo, eram espíritas mas
se diziam católicas.
Dentro da obra de Kardec a gente vê essa possibilidade se
anunciar diversas vezes. Está na Revista Espírita,
em O Livro dos Médiuns, de que poderia haver espíritas
católicos, protestantes, mas não haveria espírita
ateu, seria algo mais difícil e bem mais contraditório.
O que acontece historicamente no Brasil, assim como na Espanha é
que há uma perseguição muito grande fomentada
pela Igreja Católica e, posteriormente, pela Igreja Protestante,
de combate ao Espiritismo. Isso força o movimento espírita
a uma postura de autodefesa e que conduz à construção
de uma identidade cultural própria do espírita. O
direito de ser espírita passa a ser uma reivindicação.
Houve também no final do século 19, no Brasil, para
que se instaurasse instituições espíritas,
para que o Império de D. Pedro II permitisse isso, a reivindicação
da liberdade religiosa. E aí se consolida o Espiritismo a
partir do imaginário de religião.
PENSE - Com uma
associação muito forte com a Maçonaria, inclusive.
SIGNATES - Com o positivismo também, apesar
de alguns conflitos. O Ubiratan Machado (Os Intelectuais e o Espiritismo)
trabalha um pouco com essa idéia. Mas o que importa ressaltar
é que no Brasil o Espiritismo se torna um movimento religioso,
organizado, fundado numa determinada prática, na prática
católica. Nós aprendemos com os católicos a
assistência social. As casas de misericórdia da Igreja
Católica, de se voltar para o pobre, foi de onde se tirou
a idéia da assistência social. O Evangelho Segundo
o Espiritismo de Kardec foi uma obra trabalhada para criar essa
possibilidade de relação com a teologia da Igreja,
de fazer com que o católico não estranhasse tanto
o Espiritismo, para que ele pudesse aceitar e superar de uma maneira
negociada essa questão, justamente fazendo aquilo que a meu
ver é mais correto, tentando tanger a história da
religião por um caminho ético e não teológico.
Ser cristão é viver de acordo com a ética de
Jesus, que é uma ética universal, válida para
o budismo, o hinduísmo, para todas as grandes religiões
universais.
O Espiritismo se constrói dessa forma, se transforma numa
religião e é assim que ele acaba dando certo no Brasil.
Ele produz uma identidade cultural própria, que se fragmenta
em algumas religiões menores e em algumas muito maiores.
O movimento de Umbanda, por exemplo, é muito maior do que
o movimento espírita.
PENSE - Maior em
que sentido? Da quantidade de pessoas, de instituições?
Pelas estatísticas a Umbanda vem após o Espiritismo
em termos de movimento, de adeptos.
SIGNATES - Isso ocorre muito provavelmente por
que as pessoas não se declaram umbandistas. Há ainda
um preconceito muito grande em relação à Umbanda.
Mas quero voltar à questão da originalidade da cultura.
Nem o Espiritismo é tão original assim. As coisas
na cultura nascem e se enraízam a partir do chão que
existe. E a viabilidade de um movimento social, de um movimento
cultural é a capacidade que ele tem de dar soluções
ao futuro. O Espiritismo não se fragmenta como as religiões
por causa do Brasil, da forma como ele se introduz na identidade
cultural brasileira. Aí ele não se fragmenta como
o movimento New Age, nos Estados Unidos.
PENSE - Ou como
o protestantismo.
SIGNATES - Sim. Se bem que são fragmentações
diferentes.
PENSE - Mas e na
América Latina? A formação do Espiritismo em
nossos países vizinhos se dá de uma maneira bem diferenciada.
SIGNATES - Eu confesso que não conheço
muito. Tenho estudado o Espiritismo brasileiro mas desconheço
o movimento espírita latino-americano.
PENSE - Há
registros de que muitas lideranças expressivas como José
Martí em Cuba, o presidente Madero no México e até
Augusto Sandino, líder da guerrilha sandinista na Nicarágua,
eram espíritas. Isso dá uma outra conotação
ao Espiritismo nesses países.
SIGNATES - Isso para mim é uma novidade
absoluta. Mas eu acho problemático falar de uma identidade
latino-americana. A história dos países de fala espanhola
são completamente diferentes da história do Brasil.
Há uma cisão cultural.
PENSE - O Brasil
é um “estranho no ninho”.
SIGNATES - Ou eles são “estranhos”.
Não sei. Veja por exemplo as crises econômicas, como
elas acontecem. Na Argentina vemos que a índole cultural
e política da população é diferente
da brasileira. E o Espiritismo há de ser diferenciado. O
Brasil conta uma história do Espiritismo que é tipicamente
brasileira. Eu não sei se, como no nosso País, o Espiritismo
se insere na identidade cultural desses povos de fala espanhola.
A contribuição espírita a nossa identidade
cultural é muito importante. Eu acho um crime não
incluir na sociologia da religião o movimento espírita.
PENSE - Para entender
esse processo com mais abrangência é necessário
vê-lo sob uma perspectiva milenarista. Trata-se de uma ideologia
surgida no período medieval que sobrevive até hoje
e que se constitui numa interpretação peculiar do
Apocalipse de São João, visando a construção
do Reino de Deus aqui mesmo na Terra, um paraíso terrestre.
Essa ideologia tentacular inspirou os grandes navegantes, movimentos
como o de Canudos e inclusive o próprio Espiritismo, notadamente
o Espiritismo brasileiro. Aquele livro do Humberto de Campos é
uma obra de características milenaristas.
SIGNATES - O que vejo aí é uma vertente
de construção religiosa do Espiritismo. É um
imaginário de nação, um imaginário de
povo, de sociedade e que, mal ou bem, faz as pessoas que aderem
a ele acreditarem num Brasil do futuro. E buscam essa realização,
constróem instituições, organizam um movimento
social. Para a religião a pergunta que tem de ser feita é
até que ponto existe eficácia social no que está
sento feito, até que ponto as pessoas estão avançando,
crescendo enquanto pessoas e enquanto grupo social. Todos os relatos,
mesmo os de caráter laico, que buscam descrever o futuro
falam mais do presente do que do futuro, como em seriados de ficção
científica, no seriado Jornada nas Estrelas, por exemplo.
Eu acho que o Espiritismo, por ser um movimento sócio-cultural,
humano, inclusive se incluirmos o mundo espiritual ele continua
humano, não tem como escapar disso. A grande dificuldade
que nós espíritas temos tido de enxergar o Espiritismo
por essa perspectiva se deve especialmente ao fato de ele ter surgido
antes da sociologia que descreve isso e de não tê-la
acompanhado. Na medida em que consigamos acompanhar teremos condições
de ver o mundo espiritual dentro de uma perspectiva social e política,
imbricado com a nossa sociedade, e sujeito também às
mudanças históricas, ao sonho, a relatos imaginários.
Através dos mitos, dos ritos, de relatos mitológicos
é que os povos, os grupos sociais constróem o seu
sonho de futuro. A pretensão positivista de negar isso como
possibilidade é querer proibir um grupo, um movimento social
de sonhar, de planejar o futuro, de querer uma sociedade melhor.
Acho que isso nem é possível. Vamos ficar falando
sozinhos.
PENSE - Porque
em artigos, teses, estudos sociológicos e antropológicos,
que procuram dar conta da compreensão de nossa identidade
nacional, os movimentos populares, os movimentos sociais, como o
espírita, são deixados de lado? Trata-se de um preconceito
ou de uma questão epistemológica?
SIGNATES - Acho que isso era um preconceito que
prevaleceu até a década de 40 e 50, na Sociologia
e na Antropologia.
PENSE - A visão
positivista contribuiu também para isso?
SIGNATES - Também. Mas notadamente por causa
do eurocentrismo, que foi o berço de origem dessas ciências.
A Antropologia e a Sociologia surgem eurocêntricas. A Antropologia
foi uma espécie de sociologia criada para estudar os povos
primitivos. E primitivo era todo aquele que não havia chegado
ao grau de cultura e tecnologia do europeu. O Espiritismo é
prenhe desse processo. A visão antropológica de Allan
Kardec, de como ele via as sociedades tribais, o negro, naquele
texto muito ruim de Obras Póstumas (Teoria da Beleza), é
bem influenciada pelo eurocentrismo.
PENSE - Você
acha tão ruim assim esse texto de Obras Póstumas?
SIGNATES - Lógico. Esse texto não
é digno de Kardec. É um texto por inteiro equivocado.
E não acho que seja desdouro dizer isso dele. É para
mim honrá-lo, seguir o método dele, poder fazer isso.
Essa visão eurocêntrica predomina até o começo
do século 20. Os nossos sociólogos tinham essa visão.
E foi a partir desses estudos que se construiu no Espiritismo, por
exemplo, a rejeição das práticas de Umbanda.
Não era somente uma questão doutrinária, eram
questões de natureza cultural e racial. A idéia de
se tornar o Brasil uma cópia da Europa vemos nos relatos
desses pensadores. Como nos textos de Arthur Ramos, onde ele prevê
que no começo do século haveria uma branquificação,
como que seria o processo de branquificação do Brasil,
na medida em que iria ocorrendo a miscigenação. Ele
previu que no ano 2000 não haveria mais negros no Brasil.
Segundo as teses de eugenia, as teses de César Lombroso,
a miscigenação era uma das coisas que criavam atraso
no Brasil. A partir de trabalhos básicos de Gilberto Freyre,
de Darcy Ribeiro isso começou a mudar, partindo-se para uma
idéia positiva da miscigenação, ainda bastante
romântica.
O Darcy Ribeiro, em uma palestra na USP, no início da década
de 90, pouco antes de morrer, ele diz uma coisa que eu acho interessantíssima.
Ele diz assim: se você pega dois ou três ingleses e
joga numa ilha do Pacífico, ele cria lá uma Inglaterra
de segunda, como foi feito no Canadá, na Austrália
e, até certo ponto, nos Estados Unidos. O ibérico,
ao contrário do inglês, ele se procria com os nativos,
com as índias, com os negros e cria-se aqui não uma
Portugal de segunda mas um povo próprio. Isso é um
relato positivo. O filho do negro com o português era africano?
Não era. Era português? Só formalmente, pois
quando o Império veio pra cá se decretou que todo
mundo era português. Não era nem português nem
africano, era brasileiro! Só Portugal é que constrói
povos próprios.
Hoje em dia vemos filósofos franceses simpáticos à
solução brasileira para o problema do racismo, solução
essa que os países do Primeiro Mundo estão olhando
com muita atenção. Ao invés de segregar, de
criar uma política de cotas, de resguardar os direitos das
minorias, ele se miscigena com essas minorias. E as minorias se
tornam maioria, mais ou menos deserdadas, mas são maioria.
O negro, o cafuso, o mameluco são as maiorias brasileiras.
O perfil brasileiro não é tipicamente branco. O Brasil
promove uma tolerância cultural e religiosa muito grande.
Isso já começa a ser bem visto pelos intelectuais
dos países mais antigos, que vivem conflitos seculares como
o da Iugoslávia, da Irlanda e não conseguem resolvê-los,
porque lá os povos não se misturam. Eles começam
a enxergar, no Brasil, uma possibilidade de nunca haver um nazismo,
de nunca haver segregação muito forte porque não
é da nossa índole cultural.
PENSE - Poderíamos
inferir então que o Espiritismo brasileiro é antropofágico?
SIGNATES - Mas tem que ser! O povo brasileiro é
antropofágico, é de nossa história cultural.
Toda cultura acaba sendo assim. Mesmo nos países do Primeiro
Mundo as culturas não conseguem permanecer isoladas. Mesmo
que a relação seja de guerra, acaba havendo interferência,
uma sobre a outra, em processos de aculturação. No
Brasil o Espiritismo só poderia ser construído à
maneira brasileira.
PENSE - Essa construção
se deu pelas características do povo brasileiro ou pelas
características do Espiritismo? Como seria um centro espírita
na Índia? Talvez houvesse muito incenso, imagem de Krishna,
mantras etc.
SIGNATES - Ou talvez não. Eu não
sei como seria. Devem existir centros espíritas lá.
Eu sei que não teria como o Espiritismo se tornar um movimento
da proporção que ele se tornou sem ter assumido as
características brasileiras. Eu diria que foi a conexão
desses dois fatores. Foi a natureza sincrética do Espiritismo,
a partir da própria obra de Kardec, que vincula ciência
e filosofia. Ele tentou fazer a conexão de dois planos que
eram completamente separados pelo racionalismo francês: o
plano da construção da razão e o plano da religião.
PENSE - Trata-se
de um paradoxo, oriundo do Iluminismo.
SIGNATES - Mas era o paradoxo da época.
A ciência é um movimento cultural e social que passa
a existir no mundo depois da Idade Média, lutando contra
a religião. A ciência só se torna uma instância
separada porque lutou contra a Igreja Católica. Foi a primeira
vez, na história da Humanidade, que se constituiu uma cultura
atéia, por conta da herança e da necessidade de se
fugir da Igreja, de se romper com seu processo de dominação.
E a ciência já nasce sincrética. Até
hoje as universidades são meio medievais, pois elas foram
criadas pela Igreja. Não existe aquela revolução
que rompe com tudo. Toda revolução traz consigo, numa
perspectiva dialética, os elementos do antigo renovados.
O Espiritismo é uma negociação entre a religião
e a ciência, ocorrida no berço cartesiano, francês
e positivista do século 19 e que, quando vem para o Brasil,
essa natureza já sincrética se casa com a natureza
sincrética do povo brasileiro.
PENSE - Mas, o
que você entende como religião e como ciência?
SIGNATES - Ciência é um movimento
social, humano, de busca de conhecimento a partir de uma pretensão
de verdade levada ao seu limite. Religião é um outro
tipo de movimento que se baseia em práticas, em princípios
de crença, que não precisam obrigatoriamente serem
verificados. Podemos hoje dizer, contemporaneamente, que a religião
também cria um tipo de racionalidade, que não é
a científica.
PENSE - A ciência
tem que ter ética?
SIGNATES - Sim, temos que regulá-la senão
ela se torna um instrumental de destruição. A razão
humana não pode ser construída para destruir a humanidade.
A ciência, por causa de ela se construir a partir de uma pretensão
máxima de verdade, ela se torna, às vezes, antiética.
A ciência, portanto, vive com dificuldades a afirmação
da ética.
PENSE - E na religião?
Como se dá a presença dessa ética?
SIGNATES - A religião faz quase que o contrário
disso. Ela se constrói como ética, como uma relação
social, é fundante de identidade social. A religião
tem uma capacidade muito grande de mobilizar o ser humano e isso
a ciência não tem. A religião em contrapartida
tem uma dificuldade enorme de fazer prevalecer sua pretensão
de verdade.
PENSE - Mas a ciência
também tem uma pretensão de verdade. As pretensões
de verdade da ciência e da religião são distintas?
SIGNATES - A pretensão de verdade é
o pressuposto de que o que eu digo é verdadeiro. Ambas possuem
isso. Mas a religião tem muito mais dificuldade de sustentar
sua pretensão de verdade. Então eu acho que Kardec
de fato fez uma mescla, um sincretismo, pois o Espiritismo é
uma vinculação entre construções tipicamente
científicas e filosóficas com construções
tipicamente religiosas. Senão ele não teria falado
de Deus, de Moisés, que são temas típicos da
religião. Quando Kardec reúne essas duas articulações,
acho que ele busca algo que é buscado até hoje pelos
dois lados. Que é uma ciência que tenha uma capacidade
ética grande e que se insira de maneira profunda na ética
da sociedade. E a forma mais eficaz, mais profunda dessas dimensões
entrarem na sociedade é através dos movimentos religiosos.
Tanto é que o marxismo só dá certo como movimento
social quando ele insere, em sua práxis, práticas
que são de natureza nitidamente religiosas.
PENSE - Explique
melhor essa expressão sincrética, sincretismo que
você aplicou na análise da obra de Kardec. Você
usa no sentido antropológico? Qual a diferença entre
sincretismo e universalismo?
SIGNATES - Realmente são coisas bem diferentes.
O universalismo pode ser visto por dois aspectos. O universalismo
filosófico, quando se pretende que determinado conceito tenha
um valor universal, que seja válido independentemente do
contexto social, da época e do lugar. Um outro sentido é
o que se aplica a movimentos, a religiões, à sociedade
em sua quase totalidade, quando nos referimos às grandes
religiões universais, que conseguem construir o sentido de
uma época inteira, como foi o catolicismo na Idade Média.
Quando eu falo de sincretismo estou falando de imbricamento de culturas,
estou dizendo que não existe a cultura pura.
PENSE - Não
existe, então, a pureza doutrinária?
SIGNATES - Não, não existe isso.
No sentido de ser independente das coisas que lhe foram contemporâneas
e anteriores não existe.
PENSE - Essa idéia
de pureza doutrinária é anterior ao Espiritismo.
SIGNATES - Sim. Mas o sentimento que a anima é
que é anterior. Existe desde que existe a religião.
Segregação, expulsão de quem discorda, de quem
é estranho, segregação do estrangeiro, é
uma coisa histórica, cultural. É até uma forma
pela qual os grupos sociais buscam sobreviver. Jesus foi vítima
do movimento de pureza doutrinária do farisaísmo.
A pureza doutrinária é uma pretensão dogmática
do Espiritismo. O grande problema é o retorno ao mito de
origem como uma forma de restabelecer as coisas, imaginando que
quem faz esse retorno tem a visão correta, única e
exclusiva da interpretação da verdade. E a pretensão
de que ele dá conta da pureza original.
PENSE - É
possível entender o Espiritismo fora de seu contexto histórico
e cultural?
SIGNATES - De modo algum. Ele surge dentro de um
meio cultural. É impossível explicá-lo abstraindo
o iluminismo, o racionalismo francês. Eu costumo até
brincar dizendo que se Kardec tivesse nascido na Inglaterra, estaríamos
até hoje fazendo experimento mediúnico, pois o Espiritismo
se surgisse lá seria uma vertente mais empirista e menos
racionalista.
PENSE - E não
seríamos nem reencarnacionistas.
SIGNATES - Talvez não (risos). Mas isso
é brincadeira, é apenas uma especulação.
PENSE - Mas tem
um sentido didático.
SIGNATES - Serve para ajudar a entender como é
que não se pode pensar uma doutrina fora de seu povo, fora
de sua circunstância social. Mas isso também significa
dizer que, por exemplo, o pensamento de Kardec não tenha
aspectos de genialidade, em que ele foi um gênio, quão
visionário ele foi, que enxergou adiante de sua época.
Essa é a característica de todo gênio. Ele tem
duas faces. Tem a face de Juno. O deus Juno tinha uma face de trás
da cabeça e uma na frente. Kardec era uma pessoa enraizada
no seu tempo. Deu conta da pretensão positivista de sua época
no Espiritismo e deu conta com galhardia. Ele consegue fazer uma
mescla entre os dois sentidos díspares de sua época:
a luta da ciência contra a religião. O Espiritismo
vem da França já meio católico por conta disso.
Kardec enxerga coisas no futuro. O Espiritismo orientado para a
transformação social. É uma idéia visionária.
Tenho dificuldade de entender como é que ele conseguiu enxergar,
dentro de um ambiente positivista, a idéia do duplo método
que ele utiliza para a validação de conceitos espíritas,
que ele faz na introdução de O Evangelho Segundo o
Espiritismo. Ele diz que os critérios dele eram dois: um,
a razão, e o outro, era o critério que ele chama de
autoridade universal do ensino dos Espíritos. Falar em razão
ataviada aos fatos era uma pretensão positivista de um Kardec
enraizado na sua época. Mas para ele a razão não
era o bastante, observar os fatos não era o bastante. Ele
tinha que fazer a análise dos discursos, dos conteúdos
dos relatos vindos do mundo espiritual. Aqueles relatos, na medida
em que eles eram universalizados em diversos locais, eles aumentavam
a sua proporção de verdade, a sua probabilidade de
verdade, isso era antipositivista. Vemos aí Kardec como um
precursor de uma visão consensualista, que surge na filosofia
no começo da década de 60, do século passado.
É uma escola da filosofia que passa a definir a verdade como
um consenso entre os especialistas. Um consenso de quem entende
daquela verdade e que a torna muito sólida sob o ponto de
vista social, mas relativa pois se os especialistas mudam de idéia,
e se convençam de outra, podem eliminar a anterior. Kardec
prevê isso, que está dentro do Espiritismo, anunciado.
Isso é Kardec como um visionário, no meu ponto de
vista.
Se você for querer descobrir o conceito de sincretismo, o
conceito de aculturação e for enxerga-lo dentro do
Espiritismo é só ler a obra de Kardec e ler as obras
da cultura de sua época. Compare Kardec com Schopenhauer.
Ele provavelmente tenha tirado a teoria do sofrimento deste filósofo.
Kardec tinha uma grande admiração por Mesmer e pelo
Vitalismo. Nenhum processo cultural surge sem se mesclar com a sua
época. Então, pretender uma pureza doutrinária,
ou que sejamos franceses, espíritas franceses do século
19 é uma pretensão, no mínimo ideológica,
no mal sentido.
PENSE - O Espiritismo,
afinal, é uma grande descoberta de um grande gênio
com a participação de sujeitos desencarnados que colaboraram
ou é ao contrário, e de fato, uma revelação?
SIGNATES - Se você considerar o contexto
da época de Kardec, não tinha jeito. A idéia
de revelação religiosa não coincidia, até
certo ponto, com a idéia de revelação científica,
com a idéia da descoberta. A pretensão positivista
era de que a verdade, uma vez descoberta (daí porque a idéia
de descobrir), por que a verdade não é uma coisa construída
para o positivismo. Hoje em dia se você pensar no conhecimento
científico, ele é um construto, conforme o olhar,
o paradigma, a disciplina, o método que você usa. Então,
o objeto muda. Uma coisa é um grupo social visto pela perspectiva
de um antropólogo, outra coisa é o psicólogo
olhando aquele grupo social. São as mesmas pessoas, a mesma
situação, a mesma circunstância, são
objetos inteiramente distintos. Então a ciência constrói
o seu objeto, só que isso é pós-positivismo.
Isso é a construção de uma idéia, de
uma epistemologia, que já não é mais positivista.
Para o positivismo a verdade era descoberta, o fato falava por si
mesmo. A gente vê isso em Kardec. Diz ele que não teve
idéias preconcebidas para interpretar a mediunidade, foi
o próprio fato que se diz. Kardec tinha uma pretensão
positivista e não tinha como não ser porque era o
que de melhor havia na época dele. Então, essa pretensão
de verdade desvelada, de verdade como descoberta, essa coisa que
a fenomenologia vai recuperar depois na forma da aletéia,
numa visão bem mais sofisticada, essa pretensão positivista
coincide com a idéia de revelação. O progresso
da ciência só se dava por acumulação.
O positivismo não previa a possibilidade de a ciência
nova destruir a ciência velha. Por isso a metáfora,
de que até Kardec utiliza, da construção dos
tijolos.
PENSE - Por isso
que Kardec fala do Espiritismo como a Terceira Revelação.
SIGNATES - É a idéia do conhecimento
construído por sobreposição, é uma idéia
de progresso do conhecimento, a idéia de evolução.
Não perdemos nada, a gente só avança, só
aumenta, só amplia. Esse conceito de progresso está
contido até hoje no nosso capitalismo. A idéia do
crescimento da economia, do crescimento da sociedade, o desenvolvimentismo
que é de índole positivista.
Essa pergunta poderia ser respondida com o olhar de hoje. Mas se
contextualizarmos veremos que a idéia de revelação
científica e revelação religiosa para o século
19 e para Kardec são muito próximos. Uma coisa tem
muito a ver com a outra.
PENSE - Qual a
implicação que essa discussão traz hoje?
SIGNATES - É a gente deixar de enxergar
o Espiritismo como uma verdade com “v” maiúsculo
e vê-lo como conhecimento.
PENSE - Ou como
uma obra aberta.
SIGNATES - Sim, como uma obra aberta, respeitando,
e isso é que eu acho que às vezes falta em alguns
grupos que levam isso à sério, respeitando a forma
cultural de como o Espiritismo se construiu no Brasil. Não
acho que o formato religioso que ele adquiriu no Brasil seja uma
degenerescência, uma excrescência. Foi a forma pela
qual o espírita brasileiro construiu sua identidade cultural,
seu imaginário de nação, seu relato mítico
de grande povo, o relato do Brasil como país do futuro, como
um país que vai dar certo. Na medida em que a gente consiga
enxergar isso numa perspectiva de conhecimento e consiga construir
uma idéia não dogmática do conhecimento espírita,
a gente vai conseguir lidar com essa realidade mítica do
Brasil, da forma como a Antropologia e a Sociologia lidam, como
coisas que são típicas da construção
de nosso imaginário cultural, como coisas que são
legítimas pelas quais os seres humanos constróem o
seus sonhos coletivos e que traz um sonho de uma sociedade justa,
fraterna, amorosa, boa para o futuro. Não é por isso
um mal em si. Agora, eu acho que temos de conseguir abordar isso
dialeticamente, a partir de um olhar das ciências sociais,
verificando o Brasil se construindo e o Espiritismo se construindo
dentro do Brasil. Sem pretensão dogmática para entender
melhor o que está acontecendo.
PENSE - Em sua
opinião existe uma verdade absoluta, subjacente ao Ser, àquele
que olha essa verdade ou essa verdade, as verdades, vão se
construindo conforme as coisas vão se metodologizando?
SIGNATES - Pode até existir a verdade absoluta.
O que eu não sei admitir é que nós saibamos
qual seja. A verdade absoluta é o pensamento de Deus, é
o olhar de Deus. E nenhum de nós pode ter a pretensão
de ter esse olhar. Então, até onde eu consigo compreender,
não consigo enxergar. O imaginário que eu faço
de futuro, por exemplo, de uma sociedade perfeita, é uma
sociedade de extrema diversidade, onde os conflitos nessa mesma
diversidade não são violentos, são respeitados
infinitamente.
PENSE - Uma tolerância
máxima?
SIGNATES - Olha, nem o conceito de tolerância
serve. Mas é o conceito do respeito profundo que você
tem com a diferença do outro. Há aí um pouquinho
de pretensão positivista o de nós acharmos que tudo
caminha para uma grande unidade.
PENSE - Essa idéia
de verdade absoluta não é uma coisa metafísica,
religiosa?
SIGNATES - O absoluto é uma idéia
basicamente religiosa. Mas quero deixar bem claro que não
estou negando que existe o pensamento de Deus, o olhar de Deus ou
alguma verdade absoluta. Eu estou dizendo “não sei”.
Porque eu sou um homem. Só posso ter uma visão humana
das coisas.
PENSE - Do ponto
de vista das relações humanas, do ponto de vista da
felicidade do homem, enfim, desse ponto de vista mais sociológico,
esse seu imaginário é legal, é bonito, é
gostoso. Eu adoraria viver num mundo onde as pessoas pudessem ter
as suas opiniões, as suas verdades e conviverem numa boa.
SIGNATES - É por isso que eu digo que a
minha busca espírita é uma busca ética.
PENSE - Tá
bom, mas do ponto de vista da realidade das coisas, se é
que existe uma realidade das coisas, do conhecimento efetivo de
como se constitui o universo: se eu digo, isto é assim e
você diz: “isso é não assim”, das
duas uma, não tem saída: um dos dois não está
olhando a realidade do universo como ela é. Os dois podem
estar corretos em termos de uma verdade relativa...
SIGNATES - Ou os dois podem estar errados. Os dois
estarão dependendo para construir aquela idéia de
verdade de determinados pressupostos. Então, a verdade é
relativa.
PENSE - Mas se
você percebe isso, se você aceita que existe uma verdade
subjacente e que os dois estão errados, é porque nenhum
dos dois atingiu essa verdade subjacente. Se eu digo que existe
uma verdade absoluta, mas é impossível ao Ser, ao
Espírito atingi-la, ainda que no futuro, então...
SIGNATES - Mas eu não disse que é
impossível atingi-la. Eu disse que é impossível
ter a certeza de que a atingiu, você saber que a atingiu.
PENSE - Mas se
você nunca vai ter isso ela se torna impossível em
termos de conhecimento.
SIGNATES - Eu não sei o futuro. Sei que
é uma busca nossa, a busca de conhecer, a busca de entender
as coisas. O que eu sei é que hoje em dia a filosofia da
ciência, que a filosofia quase como um todo, ela transitou
de uma busca ontológica, de conhecer a verdade das coisas,
para uma filosofia da linguagem. A partir de Wittigenstein, a partir
dos trabalhos do Freud, se descobre que a linguagem, ao mesmo tempo
em que ela nos vincula à realidade pelo processo de significação,
ela nos separa do real. A gente já não sabe mais o
que são as coisas sem construir significação,
sem atribuir significação a essas coisas. Uma carteira
só é carteira porque no imaginário da sociedade
em que eu vivo, no consenso, digamos assim, cultural em que eu vivo,
nós concordamos em chamar isso de carteira. Uma formiga que
passe por aqui não conceberá a diferença da
parede e a carteira. Para a formiga o mundo pode ser constituído
de pedacinhos de pão, pedaços de folha e um buraco.
Esse que é o mundo dela. Quer dizer, se você dissesse
que cada pessoa, a partir das relações que ela tem,
a partir da forma de como ela se relaciona, não somente com
os outros, mas com as coisas do mundo real. Se essa pessoa é
dotada de linguagem, ela é separada do real. Ela não
conhece mais o real enquanto tal. Ela conhece o real pela linguagem.
Ou seja, a dimensão de verdade, quando você me pergunta
se isso é ou não é verdadeiro, você tem
que fazer toda uma análise de linguagem para entender que
verdade é essa. A verdade se situa não nas coisas,
mas na linguagem. A verdade é uma pretensão de linguagem.
PENSE - Essa não
é uma visão aristocrática?
SIGNATES - Não. É justamente isso
que você me fala quando se uma pessoa diz que isso é
verdade e outra diz que não é verdade. Você
está me dizendo que a verdade para existir ela precisa ser
dita. Então a verdade se situa na linguagem e não
nas coisas. A verdade das coisas tem que ser investigada.
PENSE - Pode existir
uma verdade, eu ver essa verdade e exprimir essa mesma verdade de
uma forma diferente. Aquilo que eu exprimo não é a
verdade, mas ela existe.
SIGNATES - O ato de ver é também
um ato de dar significação a alguma coisa. Se você
não der significação você não
vê. Agora essa é uma das questões fundamentais
da filosofia. Vamos ficar aqui a vida inteira discutindo e não
chegaremos a lugar algum. Acho que o que é fundamental, e
isso não tem jeito de ficar contra, que eu posso até
estar dizendo a verdade absoluta, mas eu não tenho como,
não existe em mim a condição de me dar a certeza
de que eu estou no lugar da verdade absoluta.
PENSE - A ciência,
quando ela se constitui, ainda que ela tente, que ela pareça,
de uma maneira dialética, como uma tentativa de negação
de tudo aquilo que representou a Igreja, a Idade Média etc.,
ela tenta lançar um olhar sobre aquilo que efetivamente se
apresenta e que é possível por uma constatação
em bases (digo isso nos primórdios dela), em base a determinados
parâmetros que se vai pesquisar. Então, eu tenho condições
de medição e baseado nessas medições,
eu consigo, de alguma forma, chegar a alguma coisa que é
verdade, não por ser somente consensual, mas porque é
um fenômeno, porque ele se apresenta ao pesquisador.
SIGNATES - Mas se você sozinho constatar
aquilo e não encontrar um conjunto de pessoas que estude
aquilo e concorde que tenha de haver um método, de que aquele
método é correto, não vai haver verdade nenhuma.
Você vai continuar falando sozinho. A verdade tem que se estabelecer
para ser verdadeira, como consenso. Agora, os critérios que
as pessoas vão utilizar, e nesse ponto você está
certo, eles vão ser mais subjetivos ou mais objetivos conforme
o consenso dessas pessoas. São mecanismos de legitimação.
PENSE - Mas aí
pode-se legitimar como verdade algo que é falso.
SIGNATES - Pois é, a ciência cansou
de fazer isso.
PENSE - E a ideologia
é um instrumento fantástico para se fazer isso.
SIGNATES - E a ciência vai continuar fazendo
isso a vida inteira. Como dizia o Nietzche, isso é demasiadamente
humano.
PENSE - A partir
de uma visão plural do Espiritismo enquanto movimento social,
ele permite o desenho de uma sociedade generosa, que aponta para
um caminho ético diferenciado. Mas, na prática, ele
aponta para uma sociedade extremamente conservadora e violenta também.
No caso da contribuição espírita, há
uma visão conservadora de sociedade, como a reencarnação
justificando, por exemplo, as desigualdades sociais. O que podemos
esperar do Espiritismo, qual sua contribuição tanto
como forma de conhecimento e de prática social para o Brasil
do século 21?
SIGNATES - Como falei no inicio, o Espiritismo
é um movimento que, na contemporaneidade, por conta do modo
que ele se institucionaliza, enfrenta uma contradição
consigo mesmo. Aquilo que nós dizemos não é
aquilo que nós praticamos. É uma contradição
que se enxerga na sociedade brasileira, na sociedade como um todo.
Acho que a nossa saída é tornar essa contradição
produtiva. Toda contradição é produtiva. Há
um princípio no marxismo que acho interessantíssimo,
se o tirarmos do lugar econômico em que foi formulado e trabalhá-lo
numa perspectiva social. É o que o filósofo francês
chamado Henry Lefèbvre faz na filosofia de vida cotidiana
que ele estuda. Ele chama de lei do desenvolvimento desigual. Ele
diz assim: que todo processo social, toda relação
social, quando ela se estabelece ela se manifesta de forma econômica,
política, social, cultural nas suas diversas modalidades
e ela se desenvolve desigualmente em cada uma dessas modalidades.
E esse desenvolvimento desigual é que gera um processo de
contradição entre esses diversos sentidos. No movimento
espírita a gente enfrenta uma contradição muito
forte entre aquilo que a gente busca e aquilo que a gente prega.
Que é a idéia da fraternidade, que é o nosso
sonho de sociedade, fora do qual não tem razão de
ser o Espiritismo. Fora do qual eu deixo de ser espírita.
E acho que é um sonho legítimo que anima o Espiritismo.
Ele vive uma contradição com a nossa prática,
que é uma prática que tende a uma institucionalização,
que no campo teórico tende ao dogmatismo e no campo prático
tende a uma ritualização, que não traz uma
contribuição substancial. Essa contradição,
a saída para nós que estamos procurando pensar o Espiritismo
em termos de produção científica, de produção
de conhecimento, eu acredito que é tornar essa contradição
produtiva, dando conta de agendá-la na sociedade espírita
brasileira. Dando conta de explicita-la cada vez mais para as nossas
instituições. Mostrar onde é que há
uma contradição entre a teoria e a prática,
entre o falar e o fazer. E colocar os espíritas diante da
perplexidade de si mesmos. Eu digo que essa é a razão
pela qual eu tenho optado em dar uma contribuição
no campo das ciências sociais. Acredito que se conseguirmos
desenvolver uma sociologia de movimento espírita no Brasil
e colocá-la, tanto no meio acadêmico como entre aqueles
que estudam o Espiritismo numa perspectiva sociológica, e
conseguirmos agendar essa discussão, será a contribuição
que a gente pode dar para que o movimento espírita faça
uma reflexão sobre si mesmo e seu papel na sociedade, sobre
as suas formas de institucionalização. Se não
soubermos fazer isso, corremos o risco de só ter como saída
o cisma, começar tudo de novo. E é muito mais difícil
fazer isso. Acho que dentro do conservadorismo do movimento espírita,
ele próprio gera a sua crise. É muito difícil
ser conservador, ser o purista da Doutrina, o idealista da pureza
doutrinária, o espírita ortodoxo. É preciso
gastar muita energia para ser ortodoxo. O ortodoxo se desgasta muito,
ele acaba sendo violento, dogmático, sectário, acaba
lançando mão de métodos que contradizem aquilo
que é fundante no que ele pensa.
PENSE - Ele acaba
fazendo patrulhamento ideológico, tornando-se dogmático.
SIGNATES - Sim, o dogmático sofre muito.
O Espiritismo para ele é algo sofrido. E na medida em que
consigamos estabelecer um diálogo que analise isso numa perspectiva
científica, sociológica, que mostre que isso se dá
em um processo social, estaremos dando uma grande contribuição.