A mediunidade já foi considerada doença
mental, mas novos estudos indicam que “falar com mortos”
funciona como terapia

A Morte: personagem da HQ "Sandman",
criada por Neil Gaiman e Mike Dringenberg
Uma doença vinda da Europa ameaça a saúde
mental da família brasileira. Pior do que a cocaína, a
sífilis, o alcoolismo e o socialismo juntos, capaz de induzir
a suicídios, estupros, homicídios e à desagregação
familiar, ela é a “loucura espírita”, a “doença
mediúnica”. O alerta, lançado no final do século
19, partia dos médicos psiquiatras, engajados numa cruzada contra
o espiritismo e a mediunidade, que consideravam “verdadeiras fábricas
de loucos”.
Franco da Rocha: "espiritismo aumenta número
de loucos"
O espiritismo havia surgido anos antes, em 1857, na
França, com a publicação do Livro dos
Espíritos, de Allan Kardec, e não demorou
a fazer sucesso no Brasil. Era um mix de ciência, filosofia e
religião baseado em informações repassadas por
médiuns — pessoas com o suposto dom de comunicação
com os mortos. Para a medicina da época, porém, a mediunidade
não passava de uma doença mental, possivelmente contagiosa
e hereditária. Em 1895, Franco da Rocha, fundador do Hospício
do Juqueri, em São Paulo, escreveu que boa parte dos pacientes
confinados entre seus muros havia endoidecido por frequentar sessões
de espiritismo, “essa nova religião que só tem servido
para aumentar o número de loucos”. Três décadas
depois, outro médico, C. Marques, iria proclamar em seu doutorado
que “o combate ao espiritismo deve ser igualado ao que se faz
à sífilis, ao alcoolismo, aos entorpecentes (ópio,
cocaína, etc.), à tuberculose, à lepra, às
verminoses”.
“Queimarem todos os livros espíritas e se fecharem todos
os candomblés” era a solução final pedida
pelo médico Xavier de Oliveira, em 1931. E não faltaram
autoridades para dar ouvidos às recomendações científicas.
O espiritismo passou a ser perseguido tanto pela polícia como
pelos Serviços de Higiene Mental dos estados. Até o temido
major Filinto Müller, chefe da repressão do governo Getúlio
Vargas, quando não estava ocupado torturado inimigos do Estado
Novo, arrumou tempo para fechar centros espíritas nos anos 40.
Por trás dos ataques da psiquiatria ao espiritismo estava uma
disputa entre concorrentes, explica Angélica Aparecida Silva
de Almeida, professora de história do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais, autora da tese
de doutorado “Uma fábrica de loucos”: psiquiatria x espiritismo no Brasil
(1900-1950) (Unicamp, 2007). “Tanto a psiquiatria como o espiritismo
estavam em busca de legitimação, de seu espaço
cultural, científico e institucional dentro da sociedade brasileira”,
afirma a historiadora. Segundo ela, ambos se voltavam para o tratamento
de doenças mentais e lutavam para serem reconhecidos como ciência.
Os dois grupos abandonaram o ringue no meio do século 20, quando
cada qual já havia achado um lugar para se encaixar na sociedade:
a psiquiatria “se estabelecendo como especialidade médica
reconhecida” e o espiritismo como “uma religião ligada
à prática da caridade e ao fornecimento de consolo espiritual”.
Cada um no seu quadrado.
Allan Kardec, codificador do espiritismo
“Estados de transe e possessão”
A guerra podia ter acabado, mas a visão
da ciência a respeito de pessoas que alegavam ter uma linha direta
com o Além continuou basicamente a mesma: papo de gente doida.
Embora não falassem mais em queimar livros nem comparassem o
espiritismo às verminoses, os médicos da segunda metade
do século 20 continuavam a explicar os fenômenos mediúnicos
como frutos de transtornos de múltiplas personalidades ou problemas
neurológicos. Ainda hoje, debaixo da rubrica de “estados
de transe e possessão”, a mediunidade continua a ser descrita
como doença mental nas atuais versões da CID (Classificação
Internacional de Doenças), da Organização
Mundial da Saúde, e do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais), da Associação Americana de
Psiquiatria, os principais cânones científicos usados
para separar a normalidade da loucura.
Tudo o que a ciência acreditava saber sobre a mediunidade, porém,
vem sendo questionado na última década por pesquisadores
vindos de áreas bem diferentes: psicólogos, neurocientistas,
antropólogos, médicos e até estudiosos literários.
Nenhum deles conseguiu confirmar (ou desmentir) a origem sobrenatural
dos fenômenos mediúnicos, mas uma noção ganhou
força: a comunicação com os mortos praticada na
mesa branca dos centros kardecistas ou na “gira” dos terreiros
de umbanda e candomblé funciona como uma terapia, capaz de rivalizar
com os divãs dos melhores psicólogos — não
importando se os espíritos existem no Além ou apenas na
cabeça dos médiuns. Alguns cientistas vão mais
longe e dizem que os terapeutas é que precisam aprender com as
técnicas dos grupos religiosos, que há anos cuidam da
cabeça de uma população que muitas vezes não
tem acesso aos profissionais de saúde mental. “Psicólogo
de pobre é pai de santo”, já dizia Zeca Pagodinho.

Omolu, o guardião dos mortos na umbanda
(arte de Gil Abelha)
O Brasil tem papel de protagonista nestas pesquisas,
por ser a maior nação espírita do mundo: quase
esquecida pelo resto do planeta, inclusive na França, onde nasceu,
a doutrina reúne hoje cerca de 3,2 milhões de adeptos
no Brasil, o equivalente a 1,65% da população, conforme
dados do Novo Mapa das Religiões da Fundação Getúlio
Vargas — nas classes A e B, o índice chega a 6%. As religiões
afro-brasileiras, como a umbanda e o candomblé, que também
lidam com a mediunidade e são chamadas de espíritas, respondem
por 670 mil fiéis (0,35% dos brasileiros).
A ciência que investiga médiuns pode parecer uma novidade
hoje , mas era comum no século 19. A mediunidade virou objeto
de estudo de pioneiros das ciências da mente como Sigmund Freud,
Josef Breuer, Frederic Myers, Carl Jung e William James — os três
últimos, por sinal, levantaram a possibilidade de uma origem
paranormal para explicar alguns dos casos que observaram. Estudos a
respeito de transe e possessão estiveram na origem da psicologia
e da psiquiatria, servindo de base para desenvolver conceitos como os
de mente subconsciente e transtornos de personalidade. O próprio
Kardec — pseudônimo do educador francês Hippolyte
Léon Denizard Rivail (1804-1869) — estudou a mediunidade
com uma metodologia que se pretendia científica, entrevistando
diferentes médiuns sobre os mesmos temas e comparando suas respostas.
A partir deste levantamento, Kardec codificou a doutrina espírita
— que no Brasil ganharia uma nova cara, mais voltada para o lado
religioso, de assistência social e espiritual, do que para a investigação
com pretensão científica.
Sigmund Freud investigou médiuns
A cultura do falar com os mortos
Receber pensamentos alheios dentro da sua cabeça
e emprestar a própria voz como um microfone para fantasmas conversarem
com vivos. Juntando estas peças da personalidade do produtor
de vídeo Edelso da Silva Junior, 42 anos, a psiquiatria tradicional
poderia montar o quadro de uma esquizofrenia ou outras loucuras. Mas
algumas peças não se encaixariam no quebra-cabeça.
“Eu exerço a mediunidade no centro espírita, mas
fora dali sou uma pessoa normal como qualquer outra”, conta Silva.
Médium da Aliança Espírita Evangélica,
Silva afirma ter o poder da “psicofonia”: quando está
em transe, os espíritos se manifestam através de sua voz.
Contudo, incorporar tantas outras personalidades não faz com
que Silva sofra com crises de identidade. “Como sou uma pessoa
saudável, não perco minha linha de raciocínio e
sei identificar quando o espírito se manifesta, porque percebo
ideias e atitudes que não têm a ver com o meu perfil psicológico”,
explica Silva, autor de dois documentários e de um livro sobre
a história do espiritismo.

Sessão espírita realizada no século
XIX
Sondagens recentes indicam que, no Brasil, médiuns
como Silva são a regra, não a exceção. “As
pesquisas têm indicado que os médiuns não têm
pior saúde mental do que a população em geral.
Em alguns casos, ao contrário, evidenciaram até melhor
saúde mental e ajustamento social”, afirma o psiquiatra
Alexander Moreira-Almeida, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde
da Universidade Federal de Juiz de Fora. Ele foi um dos autores de dois
estudos (um deles publicado em 2007 na Psychotherapy and Psychosomomatics,
e o outro em 2008 no Journal of Nervous and Mental Disease)
que analisaram o perfil de 115 médiuns, selecionados aleatoriamente
em centros kardecistas de São Paulo.

Moreira-Almeida: médiuns apresentam mentes
saudáveis
A pesquisa aplicou aos médiuns questionários
utilizados para detectar a presença de transtornos mentais e
o grau de ajustamento à sociedade. O resultado teria feito Franco
da Rocha pedir internação no próprio hospício:
embora tivessem respondido “sim” para alguns sintomas que
normalmente indicariam esquizofrênicos de carteirinha –
como ouvir vozes ou sentir alguém “de fora” controlando
o seu comportamento – os médiuns não podiam ser
enquadrados como doentes mentais, porque se mostraram mentalmente saudáveis
em todos os outros pontos. Numa segunda fase do estudo, quando os resultados
foram comparados com os testes obtidos em norte-americanos que sofriam
de transtorno de múltiplas personalidades, os médiuns
brasileiros revelaram ter índice mais baixo de desordens mentais
e uso reduzido de medicamentos antipsicópticos e de serviços
de saúde mental, além da ausência de históricos
de sonambulismo e abuso na infância.
Acontece que as noções sobre o que é doentio ou
saudável para uma mente podem variar muito, ao contrário
do que ocorre com a saúde do corpo. Uma perna quebrada na China
continua a ser uma perna quebrada na França, mas um comportamento
que é corriqueiro numa cultura pode ser sintoma de loucura em
outra. “Conversar com mortos poderia ser considerado um comportamento
patológico nos EUA, mas não no Brasil, porque aqui faz
parte de nossa cultura”, exemplifica o neurologista Leonardo Caixeta,
professor associado de Medicina da Universidade Federal de Goiás.
Médium com cervejinha
Além de não ser loucura, a mediunidade
pode fazer bem para a saúde mental. “O trabalho terapêutico
dos espíritas é tão bem feito que mexe com o ego
de qualquer psicólogo”, afirma… um psicólogo:
Everton de Oliveira Maraldi, que pesquisou os centros kardecistas para
sua dissertação de mestrado, Metamorfoses do espírito: usos e sentidos das crenças e experiências paranormais na construção da identidade
de médiuns espíritas, apresentada
em 2011 na Universidade de São Paulo. “Os centros desenvolvem
uma prática terapêutica que ensina as pessoas a controlar
seus impulsos e lidar com as emoções”, diz.
Caronte, o barqueiro dos mortos da mitologia grega,
retratado por Gustavo Doré
Para Maraldi, o ato de “incorporar” espíritos
permite expressar sentimentos que fora do ambiente religioso não
seriam aceitos. Um médium que teve um dia estressante pode, no
centro, entrar em transe e desabafar chorando até se acabar ou
xingando meio mundo, tudo isso sem culpa nem vergonha, porque, afinal,
será considerado um comportamento do espírito, não
dele. “O médium projeta suas emoções reprimidas
numa figura imaginária, por meio da voz dos espíritos”,
diz. Além do mais, os adeptos encontram no espiritismo uma rede
de apoio social, formada por pessoas dispostas a ouvirem seus problemas
e lhes dar respostas. Respostas que costumam ter relação
com influências de espíritos desencarnados ou com acontecimentos
de vidas passadas — noções que, reais ou não,
ajudam os adeptos a obter um significado para a própria vida.
“Alguns médiuns que entrevistei disse que teriam ficado
loucos se não fosse os centros espíritas”, conta.
Anúbis, deus egípcio dos mortos
Traumas sem razões claras faziam parte da infância do escritor
Dario Sandri Júnior, 45 anos. Ele sofria com alguns medos inexplicáveis,
como o de passar em cima de pontes, com pesadelos recorrentes envolvendo
imagens de guerras e, uma vez, com a visão de uma moça
flutuando dentro do seu quarto. Assim que foi alfabetizado, se pegou
escrevendo textos que falavam de sensações e acontecimentos
que não pareciam pertencer a ele. A perturbação
que sentia com estas experiências começou a desaparecer
aos 14 anos, quando Sandri, filho de pais católicos, passou a
frequentar centros espíritas e a treinar para “desenvolver
sua mediunidade”. No processo, Sandri ficou sabendo que as sensações
de medo tinham a ver com a morte violenta que ele teria sofrida numa
outra vida, quando encarnara como soldado alemão da Primeira
Guerra Mundial. Na atual encarnação, ele se descobriu
um médium psicógrafo, capaz de receber as mensagens de
um amigo de outras vidas chamado Fénelon. O fantasma que o assombrava
tornou-se um parceiro de trabalho: com Fénelon, Sandri escreveu
quatro romances históricos, publicados pela editora espírita
Aliança.
Na maior parte do tempo, Sandri vive hoje uma vida bastante terrena
como professor de história, casado e pai de família, sem
grandes influências do outro mundo. “As pessoas que me conhecem
bem têm até uma certa dificuldade em aceitar que eu possa
ser médium, porque sou um cara normal, que gosta de futebol e
toma uma cervejinha de vez quando”, conta.
“Nada que me surpreendesse”
“Os psiquiatras têm muito a aprender com
os pais de santo”, afirma Fernando Portela Câmara, ele próprio
membro da Associação Brasileira de Psiquiatria. Para ele,
“os centros espíritas e terreiros é que são
os grandes hospitais psiquiátricos da população
brasileira”. Segundo Portela, o processo que os espíritas
kardecistas chamam de “desenvolver a mediunidade”, e as
religiões afro-brasileiras, de “vestir o santo” ou
“fazer a cabeça”, é puro trabalho de psicoterapia.
Os médiuns, segundo Portela, são pessoas que têm
mais predisposição a entrar em transe, um estado modificado
de consciência em que vivências reprimidas são colocadas
para fora. Capaz de provocar medo e ansiedade quando ocorre de forma
descontrolada, o transe pode fazer muito bem para a cabeça de
alguém que aprende a controlá-lo — e é isso
o que as religiões espíritas fazem, quando ensinam os
médiuns a manifestar seu transe em dias e horários fixos.
Autor de um livro ainda inédito chamado Transe, Dissociação
e Trauma, Portella conta que ele próprio usa a técnica
do transe (induzido por hipnose, sem conotação religiosa)
para tratar alguns de seus pacientes, especialmente vítimas de
estresse pós-traumático.
Hamlet, o médium mais famoso da literatura,
diante do fantasma do pai, em gravura de William Blake
Os espíritos eram seres bem reais para o psicólogo
Maraldi durante boa parte da sua vida. Filho de família kardecista,
acostumou-se a ver sua mãe incorporando mortos e escolheu o curso
de psicologia por acreditar que ali estudaria a alma. Sua crença
entrou em crise na faculdade, quando percebeu que tudo o que via nos
centros espíritas poderia ser explicado por causas psicológicas,
não sobrenaturais. A sensação foi confirmada no
trabalho de campo do seu mestrado, quando realizou pesquisas qualitativas
abordando histórias de vida de 11 médiuns e acompanhando-os
em ação durante 14 sessões espíritas. “Não
vi nada que me surpreendesse ou que não pudesse ser explicado
pela psicologia do indivíduo e suas interações
com o contexto”, diz.
Entrevistando um homem que afirmava receber o espírito de um
alcoólatra, Maraldi descobria que o próprio médium
tinha uma história de problemas com álcool e outras drogas.
Ao investigar os desenhos feitos por médiuns em transe, percebeu
que os mais bem acabados vinham de pessoas que tinham algum conhecimento
de desenho e que, novamente, os temas das obras tinham a ver com a história
dos vivos que as pintavam. “Uma senhora acreditava que o espírito
a havia feito desenhar uma mulher grávida, com um feto de cor
avermelhada. Conversando comigo, ela contou que não conseguiu
ter tantos filhos como queria por causa de um problema no útero.
Ficou claro para mim que o desenho tinha a ver com a experiência
dela”, conta.
“ISSO NÓN EQUI-ZISTE”
Pesquisas sobre médiuns e outros fenômenos
paranormais não são novidade no Brasil. A novidade, segundo
Maraldi, é o rigor com que passaram a ser feitos nos últimos
anos. Ele lembra que, por décadas, a mediunidade foi estudada
num clima de Corinthians-Palmeiras entre céticos e crentes, como
o padre Quevedo querendo provar que “ISSO NÓN EQUI-ZISTE”
ou o kardecista Hernani Guimarães Andrade (1913-2003) buscando
provas científicas para os fenômenos espíritas.
Mesmo hoje, muitas pesquisas sobre fenômenos sobrenaturais continuam
a ser feitas por cientistas que são religiosos, embora muitos
não gostem de comentar sobre isso. Mesmo assim, suas pesquisas
buscam ser fiéis ao método científico, evitando
partir de ideias pré-definidas, como a existência de Deus
e de espíritos, e acreditando apenas no que pode ser comprovado.
Outra novidade é a utilização das ferramentas de
mapeamento do cérebro na tentativa de entender o que acontece
na mente dos médiuns. Na coletânea de estudos Mysterious
Minds: The Neurobiology of Psychics , Mediums, and Other Extraordinary
People (Mentes Misteriosas: A Neurobiologia de Sensitivos,
Médiuns e Outras Pessoas Extraordinárias), editada por
Stanley C. Krippner e Harris L. Friedman no ano passado,
um dos capítulos apresenta os resultados de dois estudos feitos
com médiuns brasileiros em transe: um exame de eletroencefalograma
aplicado em nove médiuns kardecistas e uma série de testes
neurobiológicos realizados em um kardecista e um pai-de-santo
(Manoel Rabelo Pereira, o Pai Ely, um diretor de banco
que se descobriu médium ao incorporar um espírito pela
primeira vez aos 36 anos, numa festa da empresa, e depois se tornou
um dos principais nomes do candomblé pernambucano).

Livro traz estudo com médiuns brasileiros
A ideia era escarafunchar cérebros durante o
transe mediúnico em busca de alguma causa neurológica
para o fenômeno. Acontece que a hipótese geralmente levantada
pela neurociência para explicar fenômenos religiosos atende
pelo nome de epilepsia do lobo temporal. “A epilepsia é
uma desorganização dos sinais elétricos entre os
neurônios, um curto-circuito cerebral”, explica o neurocientista
Li Li Min, professor do Departamento de Neurologia da Unicamp, que desenvolve
estudos de neuroimagem em pacientes epiléticos. “Dependendo
da região do cérebro afetada, o paciente apresenta diferentes
sintomas clínicos”, diz. No caso da epilepsia do lobo temporal,
a vítima é o sistema límbico, região ligada
às emoções. “Alguns pacientes com histórico
de crise nessa região apresentam um perfil de hiper-religiosidade”,
afirma Min. Alguns neurocientistas foram mais longe com a teoria e imaginaram
ter encontrado Deus escondido no cérebro: no lobo temporal haveria
uma espécie de “ponto de Deus”, que produziria a
crença no Todo-Poderoso e outras experiências religiosas.
Os experimentos com os médiuns brasileiros derrubaram as duas
hipóteses. De um lado, nenhum deles mostrou sofrer de epilepsia.
Do outro, as regiões e os sistemas cerebrais ativados durante
o transe foram muito variados para se falar na existência de um
“ponto de Deus” no cérebro. “Não há
evidências de que as experiências mediúnicas sejam
devido à ativação de apenas uma área específica
no cérebro ou devido a problemas cerebrais”, resume Moreira-Almeida,
um dos responsáveis pelo estudo.
Ao contrário: segundo o psicólogo e neurocientista Julio
Peres, outro dos autores da pesquisa, tanto a análise
dos médiuns quanto investigações neurológicas
feitas com grupos religiosos bem diferentes, como monges budistas e
freiras carmelitas, indicam que as experiências religiosas ativam
regiões e sistemas cerebrais diferentes. “Estas experiências
são complexas e multidimensionais, isto é, implicam em
mudanças na percepção (como a imagem mental visual),
na cognição (por exemplo, as representações
do Eu) e na emoção (a paz, alegria e amor incondicional)”,
afirma Peres, que é pesquisador do Programa de Saúde,
Espiritualidade e Religiosidade do Instituto de Psiquiatria da Universidade
de São Paulo. Prosseguindo no caminho de estudar o funcionamento
de cérebros que dialogam com o outro mundo, Moreira-Almeida e
Peres atualmente desenvolvem estudos de neuroimagem em médiuns
durante sessões de psicografia. O estudo, ainda em andamento,
é uma colaboração da Universidade Pensilvânia,
nos EUA, e da Universidade de Aachen, na Alemanha.

Li Li Min: ciência não refuta nem
comprova mediunidade
Papai Noel
Quando se trata de buscar indícios da existência
de espíritos reais nos fenômenos mediúnicos, os
resultados das investigações ainda se mostram fantasmagóricos.
“Não existem evidências de que esses fenômenos
não possam ser explicados por outras razões que não
a incorporação de entidades”, resume Li
Min. Mas o neurocientista lembra que a ciência também
não tem como negar sua existência. “A ciência
avança refutando e confirmando hipóteses, mas ainda não
está num estado avançado o bastante para refutar a hipótese
da mediunidade”, diz Min. Após pensar um pouco, ele acrescenta.
“Estes fenômenos são controversos, mas têm
um interesse social muito grande. A academia e os centros de pesquisa
deveriam avançar mais nesse ponto. É uma autocrítica
que eu faço”, diz.
A ciência não tem como afirmar que os espíritos
incorporados pelos médiuns não existem — como também
não tem como provar a inexistência de alienígenas
ou do Papai Noel. Mas, enquanto acreditar que há explicações
mais simples capazes de dar conta dos fenômenos mediúnicos,
a maioria dos cientistas continuará a optar por elas, deixando
Deus e os espíritos para os religiosos. “Isso é
básico em ciência: o ônus da prova é do mais
complexo”, explica o geneticista Renato Zamora Flores, professor
do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul e membro de várias listas de céticos pela internet
afora. “Se a hipótese A explica que a esquizofrenia é
causada por morte de neurônios e a hipótese B diz que é
por possessão demoníaca, a ciência vai optar pela
hipótese A, que é mais simples e não envolve uma
entidade extra que eu não estou vendo”, diz.
Mas mesmo um cético como Zamora acha válida a pesquisa
de fenômenos sobrenaturais. “Ninguém está
proibido de perguntar nada. O que vai determinar a validade de um programa
de pesquisa são os seus resultados.”
Zamora: ninguém está proibido de
perguntar
E ciência também se faz pesquisando fenômenos
esquisitos, mesmo que envolvam forças invisíveis e inexplicáveis
que ninguém sabe ao certo se existem ou não. No século
19, o médico húngaro Ignaz Semmelweis (1818-1865) descobriu
que o índice de mortalidade nas maternidades despencava caso
os médicos lavassem suas mãos antes de entrar em contato
com as pacientes. Semmelweis caiu em desgraça na comunidade científica,
porque suas ideias sugeriam que uma força invisível e
inexplicável, que ninguém sabia ao certo se existia ou
não, poderia estar atuando nos hospitais. Considerado louco,
morreu num asilo poucos anos antes de o químico francês
Louis Pasteur (1822-1895) provar a existência da tal força
invisível, que batizou de germes.
Ignaz Semmelweis: vítima do preconceito
de outros cientistas
Investigar todos os fenômenos, por mais estranhos
que pareçam, sem excluir de cara nenhuma explicação.
É assim que a ciência trabalha. E é, afinal, o que
se espera da inteligência humana. Seja ela fruto da química
cerebral ou de alguma eventual centelha divina.
Fonte: https://inarravel.wordpress.com/2012/04/03/mediunidade/
Leiam de Fausto Salvadori Filho,
Fantasmas
na biblioteca
No
divã com gente morta
Um
outro jeito de pensar a mente
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