Os conceitos da vida e do mundo que chamamos "filosóficos"
são produto de dois fatores: um, constituído de fatores
religiosos e éticos herdados; o outro, pela espécie de
investigação que podemos denominar "científica",
empregando a palavra em seu sentido mais amplo. Os filósofos,
individualmente, têm diferido amplamente quanto às proporções
em que esses dois fatores entraram em seu sistema, mas é a presença
de ambos que, em certo grau, caracteriza a filosofia.
"Filosofia" é uma palavra que tem sido empregada de
várias maneiras, umas mais amplas, outras mais restritas. Pretendo
empregá-la em seu sentido mais amplo, como procurarei explicar
adiante. A filosofia, conforme entendo a palavra, é algo intermediário
entre a teologia e a ciência. Como a teologia, consiste de especulações
sobre assuntos a que o conhecimento exato não conseguiu até
agora chegar, mas, como ciência, apela mais à razão
humana do que à autoridade, seja esta a da tradição
ou a da revelação. Todo conhecimento definido - eu o afirmaria
- pertence à ciência; e todo dogma quanto ao que ultrapassa
o conhecimento definido, pertence à teologia. Mas entre a teologia
e a ciência existe uma Terra de Ninguém, exposta aos ataques
de ambos os campos: essa Terra de Ninguém é a filosofia.
Quase todas as questões do máximo interesse para os espíritos
especulativos são de tal índole que a ciência não
as pode responder, e as respostas confiantes dos teólogos já
não nos parecem tão convincentes como o eram nos séculos
passados. Acha-se o mundo dividido em espírito e matéria?
E, supondo-se que assim seja, que é espírito e que é
matéria? Acha-se o espírito sujeito à matéria,
ou é ele dotado de forças independentes? Possui o universo
alguma unidade ou propósito? Está ele evoluindo rumo a
alguma finalidade? Existem realmente leis da natureza, ou acreditamos
nelas devido unicamente ao nosso amor inato pela ordem? É o homem
o que ele parece ser ao astrônomo, isto é, um minúsculo
conjunto de carbono e água a rastejar, impotentemente, sobre
um pequeno planeta sem importância? Ou é ele o que parece
ser a Hamlet? Acaso é ele, ao mesmo tempo, ambas as coisas? Existe
uma maneira de viver que seja nobre e uma outra que seja baixa, ou todas
as maneiras de viver são simplesmente inúteis? Se há
um modo de vida nobre, em que consiste ele, e de que maneira realizá-lo?
Deve o bem ser eterno, para merecer o valor que lhe atribuímos,
ou vale a pena procurá-lo, mesmo que o universo se mova, inexoravelmente,
para a morte? Existe a sabedoria, ou aquilo que nos parece tal não
passa do último refinamento da loucura Tais questões não
encontram resposta no laboratório. As teologias têm pretendido
dar respostas, todas elas demasiado concludentes, mas a sua própria
segurança faz com que o espírito moderno as encare com
suspeita. 0 estudo de tais questões, mesmo que não se
resolva esses problemas, constitui o empenho da filosofia.
Mas por que, então, - poderíeis perguntar - perder tempo
com problemas tão insolúveis? A isto, poder-se-ia responder
como historiador ou como indivíduo que enfrenta o terror da solidão
cósmica. A resposta do historiador, tanto quanto me é
possível dá-la, aparecerá no decurso desta obra.
Desde que o homem se tornou capaz de livre especulação,
suas ações, em muitos aspectos importantes, têm
dependido de teorias relativas ao mundo e á vi a humana, relativas
ao bem e ao mal. Isto é tão verdadeiro em nossos dias
como em qualquer época anterior. Para compreender uma época
ou uma nação, devemos compreender sua filosofia e, para
que compreendamos sua filosofia, temos de ser, até certo ponto,
filósofos. Há uma relação causal recíproca.
As circunstâncias das vidas humanas contribuem muito para determinar
a sua filosofia, mas, inversamente, sua filosofia muito contribui para
determinar tais circunstâncias. Essa ação mútua,
através dos séculos, será o tema das páginas
seguintes.
Há, todavia, uma resposta mais pessoal. A ciência diz-nos
o que podemos saber, mas o que podemos saber é muito pouco e,
se esquecemos quanto nos é impossível saber, tornamo-nos
insensíveis a muitas coisas sumamente importantes. A teologia,
por outro lado, nos induz â crença dogmática de
que temos conhecimento de coisas que, na realidade, ignoramos e, por
isso, gera uma espécie de insolência impertinente com respeito
ao universo. A incerteza, na presença de grandes esperanças
e receios, é dolorosa, mas temos de suportá-la, se quisermos
viver sem o apoio de confortadores contos de fadas, Não devemos
também esquecer as questões suscitadas pela filosofia,
ou persuadir-nos de que encontramos, para as mesmas, respostas indubitáveis.
Ensinar a viver sem essa segurança e sem que se fique, não
obstante, paralisado pela hesitação, é talvez a
coisa principal que a filosofia, em nossa época, pode proporcionar
àqueles que a estudam.
A filosofia, ao contrário do que ocorreu com a teologia, surgiu,
na Grécia, no século VI antes de Cristo. Depois de seguir
o seu curso na antigüidade, foi de novo submersa pela teologia
quando surgiu o Cristianismo e Roma se desmoronou. Seu segundo período
importante, do século YI ao século XIV, foi dominado pela
Igreja Católica, com exceção de alguns poucos e
grandes rebeldes, como, por exemplo, o imperador Frederico II (1195-1250).
Este período terminou com as perturbações que culminaram
na Reforma. O terceiro período, desde o século XVII até
hoje, é dominado, mais do que os períodos que o precederam,
pela ciência. As crenças religiosas tradicionais mantêm
sua importância, mas se sente a necessidade de que sejam justificadas,
sendo modificadas sempre que a ciência torna imperativo tal passo.
Poucos filósofos deste período são ortodoxos do
ponto de vista católico, e o Estado secular adquire mais importância
em suas especulações do que a Igreja.
A coesão social e a liberdade individual, como a religião
e a ciência, acham-se num estado de conflito ou difícil
compromisso durante todo este período. Na Grécia, a coesão
social era assegurada pela lealdade ao Estado-Cidade; o próprio
Aristóteles, embora, em sua época, Alexandre estivesse
tornando obsoleto o Estado-Cidade, não conseguia ver mérito
algum em qualquer outro tipo de comunidade. Variava grandemente o grau
em que a liberdade individual cedia ante seus deveres para com a Cidade.
Em Esparta, o indivíduo tinha tão pouca liberdade como
na Alemanha ou na Rússia modernas; em Atenas, apesar de perseguições
ocasionais, os cidadãos desfrutaram, em seu melhor período,
de extraordinária liberdade quanto a restrições
impostas pelo Estado. 0 pensamento grego, até Aristóteles,
é dominado por uma devoção religiosa e patriótica
á Cidade; seus sistemas éticos são adaptados às
vidas dos cidadãos e contêm grande elemento político.
Quando os gregos se submeteram, primeiro aos macedônios e, depois,
aos romanos, as concepções válidas em seus dias
de independência não eram mais aplicáveis. Isto
produziu, por um lado, uma perda de vigor, devido ao rompimento com
as tradições e, por outro lado, uma ética mais
individual e menos social. Os estóicos consideravam a vida virtuosa
mais como uma relação da alma com Deus do que como uma
relação do cidadão com o Estado. Prepararam, dessa
forma, o caminho para o Cristianismo, que, como o estoicismo, era, originalmente,
apolítico, já que, durante os seus três primeiros
séculos, seus adeptos não tinham influência no governo.
A coesão social, durante os seis séculos e meio que vão
de Alexandre a Constantino, foi assegurada, não pela filosofia
nem pelas antigas fidelidades, mas pela força - primeiro a força
dos exércitos e, depois, a da administração civil.
Os exércitos romanos, as estradas romanas, a lei romana e os
funcionários romanos, primeiro criaram e depois preservaram um
poderoso Estado centralizado. Nada se pode atribuir à filosofia
romana, já que esta não existia.
Durante esse longo período, as idéias gregas herdadas
da época da liberdade sofreram um processo gradual de transformação.
Algumas das velhas idéias, principalmente aquelas que deveríamos
encarar como especificamente religiosas, adquiriram uma importância
relativa; outras, mais racionalistas, foram abandonadas, pois não
mais se ajustavam ao espírito da época. Desse modo, os
pagãos posteriores foram se adaptando á tradição
grega, até esta poder incorporar-se na doutrina cristã.
O Cristianismo popularizou uma idéia importante, já implícita
nos ensinamentos dos estóicos, mas estranha ao espírito
geral da antigüidade, isto é, a idéia de que o dever
do homem para com Deus é mais imperativo do que o seu dever para
com o Estado (1).
A opinião de que "devemos obedecer mais a Deus que ao homem",
como Sócrates e os Apóstolos afirmavam, sobreviveu à
conversão de Constantino, porque os primeiros cristãos
eram arianos ou se sentiam inclinados para o arianismo. Quando os imperadores
se tornaram ortodoxos, foi ela suspensa temporariamente. Durante o Império
Bizantino, permaneceu latente, bem como no Império Russo subseqüente,
o qual derivou do Cristianismo de Constantinopla (2).
Mas no Ocidente, onde os imperadores católicos foram quase imediatamente
substituídos (exceto em certas partes da Gália) por conquistadores
bárbaros heréticos, a superioridade da lealdade religiosa
sobre a lealdade política sobreviveu e, até certo ponto,
persiste ainda hoje.
A invasão dos bárbaros pôs fim, por espaço
de seis séculos, à civilização da Europa
Ocidental. Subsistiu, na Irlanda, até que os dinamarqueses a
destruíram no século IX. Antes de sua extinção
produziu, lá, uma figura notável, Scotus Erigena. No Império
Oriental, a civilização grega sobreviveu, em forma dissecada,
como num museu, até à queda de Constantinopla, em 1453,
mas nada que fosse de importância para o mundo saiu de Constantinopla,
exceto uma tradição artística e os Códigos
de Direito Romano de Justiniano.
Durante o período de obscuridade, desde o fim do século
V até a metade do século XI, o mundo romano ocidental
sofreu algumas transformações interessantes. O conflito
entre o dever para com Deus e o dever para com o Estado, introduzido
pelo Cristianismo, adquiriu o caráter de um conflito entre a
Igreja e o rei. A jurisdição eclesiástica do Papa
estendia-se sobre a Itália, França, Espanha, Grã-Bretanha
e Irlanda, Alemanha, Escandinávia e Polônia. A princípio,
fora da Itália e do sul da França foi muito leve o seu
controle sobre bispos e abades, mas, desde o tempo de Gregório
VII ( fins do século XI ), tornou-se real e efetivo. Desde então
o clero, em toda a Europa Ocidental, formou uma única organização,
dirigida por Roma, que procurava o poder inteligente e incansavelmente
e, em geral, vitoriosamente, até depois do ano 1300, em seus
conflitos com os governantes seculares. O conflito entre a Igreja e
o Estado não foi apenas um conflito entre o clero e os leigos;
foi, também, uma renovação da luta entre o mundo
mediterrâneo e os bárbaros do norte. A unidade da Igreja
era um reflexo da unidade do Império Romano; sua liturgia era
latina, e os seus homens mais proeminentes eram, em sua maior parte,
italianos, espanhóis ou franceses do sul. Sua educação,
quando esta renasceu, foi clássica; suas concepções
da lei e do governo teriam sido mais compreensíveis para Marco
Aurélio do que para os monarcas contemporâneos. A Igreja
representava, ao mesmo tempo, continuidade com o passado e com o que
havia de mais civilizado no presente.
O poder secular, ao contrário, estava nas mãos de reis
e barões de origem teutônica, os quais procuravam preservar,
o máximo possível, as instituições que haviam
trazido as florestas da Alemanha. O poder absoluto era alheio a essas
instituições, como também era estranho, a esses
vigorosos conquistadores, tudo aquilo que tivesse aparência de
uma legalidade monótona e sem espírito. O rei tinha de
compartilhar seu poder com a aristocracia feudal, mas todos esperavam,
do mesmo modo, que lhes fosse permitido, de vez em quando, uma explosão
ocasional de suas paixões em forma de guerra, assassínio,
pilhagem ou rapto. É possível que os monarcas se arrependessem,
pois eram sinceramente piedosos e, afinal de contas, o arrependimento
era em si mesmo uma forma de paixão. A Igreja, porém,
jamais conseguiu produzir neles a tranqüila regularidade de uma
boa conduta, como a que o empregador moderno exige e, às vezes,
consegue obter de seus empregados. De que lhes valia conquistar o mundo,
se não podiam beber, assassinar e amar como o espírito
lhes exigia? E por que deveriam eles, com seus exércitos de altivos,
submeter-se ás ordens de homens letrados, dedicados ao celibato
e destituídos de forças armadas? Apesar da desaprovação
eclesiástica, conservaram o duelo e a decisão das disputas
por meio das armas, e os torneios e o amor cortesão floresceram.
Às vezes, num acesso de raiva, chegavam a matar mesmo eclesiásticos
eminentes.
Toda a força armada estava do lado dos reis, mas, não
obstante, a Igreja saiu vitoriosa. A Igreja ganhou a batalha, em parte,
porque tinha quase todo o monopólio do ensino e, em parte, porque
os reis viviam constantemente em guerra. uns com os outros; mas ganhou-a,
principalmente, porque, com muito poucas exceções, tanto
os governantes como ó povo acreditavam sinceramente que a Igreja
possuía as chaves do céu. A Igreja podia decidir se um
rei devia passar a eternidade no céu ou no inferno; a Igreja
podia absolver os súditos do dever de fidelidade e, assim, estimular
a rebelião. Além disso, a Igreja representava a ordem
em lugar da anarquia e, por conseguinte, conquistou o apoio da classe
mercantil que surgia. Na Itália, principalmente, esta última
consideração foi decisiva.
A tentativa teutônica de preservar pelo menos uma independência.
parcial da Igreja manifestou-se não apenas na política,
mas, também, na arte, no romance, no cavalheirismo e na guerra.
Manifestou-se muito pouco no mundo intelectual, pois o ensino se achava
quase inteiramente nas mãos do clero. A filosofia explícita
da Idade Média não é um espelho exato da época,
mas apenas do pensamento de um grupo. Entre os eclesiásticos,
porém - principalmente entre os frades franciscanos - havia alguns
que, por várias razões, estavam em desacordo com o Papa.
Na Itália, ademais, a cultura estendeu-se aos leigos alguns séculos
antes de se estender até ao norte dos Alpes. Frederico II, que
procurou fundar uma nova religião, representa o extremo da cultura
antipapista; Tomás de Aquino, que nasceu no reino de Nápoles,
onde o poder de Frederico era supremo, continua sendo até hoje
o expoente clássico da filosofia papal. Dante, cerca de cinqüenta
anos mais tarde, conseguiu chegar a uma síntese, oferecendo a
única exposição equilibrada de todo o mundo ideológico
medieval.
Depois de Dante, tanto por motivos políticos como intelectuais,
a síntese filosófica medieval se desmoronou. Teve ela,
enquanto durou, uma qualidade de ordem e perfeição de
miniatura: qualquer coisa de que esse sistema se ocupasse, era colocada
com precisão em relação com o que constituía
o seu cosmo bastante limitado. Mas o Grande Cisma, o movimento dos Concílios
e o papado da renascença produziram a Reforma, que destruiu a
unidade do Cristianismo e a teoria escolástica de governo que
girava em torno do Papa. N o período da Renascença, o
novo conhecimento, tanto da antigüidade como da superfície
da terra, fez com que os homens se cansassem de sistemas, que passaram
a ser considerados como prisões mentais. A astronomia de Copérnico
atribuiu á terra e ao homem uma posição mais humilde
do que aquela que haviam desfrutado na teoria de Ptolomeu. O prazer
pelos f atos recentes tomou o lugar, entre os homens inteligentes, do
prazer de raciocinar, analisar e construir sistemas. Embora a Renascença,
na arte, conserve ainda uma determinada ordem, prefere, quanto ao que
diz respeito ao pensamento, uma ampla e fecunda desordem. Neste sentido,
Montaigne é o mais típico expoente da época.
Tanto na teoria política como em tudo o mais, exceto a arte,
a ordem sofre um colapso. A Idade Média, embora praticamente
turbulenta, era dominada, em sua ideologia, pelo amor da legalidade
e por uma teoria muito precisa do poder político. Todo poder
procede, em última análise, de Deus; Ele delegou poder
ao Papa nos assuntos sagrados, e ao Imperador nos assuntos seculares.
Mas tanto o Papa como o Imperador perderam sua importância durante
o século XV. O Papa tornou-se simplesmente um dos príncipes
italianos, empenhado no jogo incrivelmente complicado e inescrupuloso
do poder político italiano. As novas monarquias nacionais na
França, Espanha e Inglaterra tinham, em seus próprios
territórios, um poder no qual nem o Papa nem o Imperador podiam
interferir. O Estado nacional, devido, em grande parte, à pólvora,
adquiriu uma influência sobre o pensamento e o modo de sentir
dos homens, como jamais exercera antes - influência essa que,
progressivamente, destruiu o que restava da crença romana quanto
à unidade da civilização.
Essa desordem política encontrou sua expressão no Príncipe,
de Maquiavel. Na ausência de qualquer princípio diretivo,
a política se transformou em áspera luta pelo poder. O
Príncipe dá conselhos astutos quanto à maneira
de se participar com êxito desse jogo. O que já havia acontecido
na idade de ouro da Grécia, ocorreu de novo na Itália
renascentista: os freios morais tradicionais desapareceram, pois eram
considerados como coisa ligada à superstição; a
libertação dos grilhões tornou os indivíduos
enérgicos e criadores, produzindo um raro florescimento do gênio
mas a anarquia e a traição resultantes, inevitavelmente,
da decadência da moral, tornou os italianos coletivamente impotentes,
e caíram, como os gregos, sob o domínio de nações
menos civilizadas do que eles, mas não tão destituídas
- de coesão social.
Todavia, o resultado foi menos desastroso do que no caso da Grécia,
pois as nações que tinham acabado de chegar ao poder,
com exceção da Espanha, se mostravam capazes de tão
grandes realizações como o havia sido a Itália.
Do século XVI em diante, a história do pensamento europeu
é dominada pela Reforma. r1 Reforma foi um movimento complexo,
multiforme, e seu êxito se deve a numerosas causas. De um modo
geral, foi uma revolta das nações do norte contra o renovado
domínio de Roma. A religião fora a força que subjugara
o Norte, mas a religião, na Itália, decaíra: o
papado permanecia como uma instituição, extraindo grandes
tributos da Alemanha e da Inglaterra, mas estas nações,
que eram ainda piedosas, não podiam sentir reverência alguma
para com os Bórgias e os Médicis, que pretendiam salvar
as almas do purgatório em troca de dinheiro, que esbanjavam no
luxo e na imoralidade. Motivos nacionais motivos econômicos e
motivos, religiosos conjugaram-se para fortalecer a revolta contra Roma.
Além disso, os príncipes logo perceberam que, se a Igreja
se tornasse, em seus territórios, simplesmente nacional, eles
seriam capazes de dominá-la, tornando-se, assim, muito mais poderosos,
em seus países, do que jamais o haviam sido compartilhando o
seu domínio com o Papa. Por todas essas razões, as inovações
teológicas de Lutero foram bem recebidas, tanto pelos governantes
como pelo povo, na maior parte da Europa Setentrional.
A Igreja Católica procedia de três fontes. Sua história
sagrada era judaica; sua teologia, grega, e seu governo e leis canônicas,
ao menos indiretamente, romanos. A Reforma rejeitou os elementos romanos,
atenuou os elementos gregos e fortaleceu grandemente os elementos judaicos.
Cooperou, assim, com as forças nacionalistas que estavam desfazendo
a obra de coesão nacional que tinha sido levada a cabo primeiro
pelo Império Romano e, depois, pela Igreja Romana. Na doutrina
católica, a revelação divina não terminava
na sagrada escritura, mas continuava, de era em era, através
da Igreja, à qual, pois, era dever do indivíduo submeter
suas opiniões pessoais. Os protestantes, ao contrário,
rejeitaram a Igreja como veículo da revelação divina;
a verdade devia ser procurada unicamente na Bíblia, que cada
qual podia interpretar à sua maneira. Se os homens diferissem
em sua interpretação, não havia nenhuma autoridade
designada pela divindade que resolvesse tais divergências. Na
prática, o Estado reivindicava o direito que pertencera antes
à Igreja - mas isso era uma usurpação. Na teoria
protestante, não devia haver nenhum intermediário terreno
entre a alma e Deus.
Os efeitos dessa mudança foram importantes. A verdade não
mais era estabelecida mediante consulta à autoridade, mas por
meio da meditação íntima. Desenvolveu-se, rapidamente,
uma tendência para o anarquismo na política e misticismo
na religião, o que sempre fora difícil de se ajustar à
estrutura da ortodoxia católica. Aconteceu que, em lugar de um
único Protestantismo, surgiram numerosas seitas; nenhuma filosofia
se opunha à escolástica, mas havia tantas filosofias quantos
eram os filósofos. Não havia, no século XIII, nenhum
Imperador que se opusesse ao Papa, mas sim um grande número de
reis heréticos. O resultado disso, tanto no pensamento como na
literatura, foi um subjetivismo cada vez mais profundo, agindo primeiro
como uma libertação saudável da escravidão
espiritual mas caminhando, depois, constantemente, para um isolamento
pessoal, contrário à solidez social.
A filosofia moderna começa com Descartes, cuja certeza fundamental
é a existência de si mesmo e de seus pensamentos, dos quais
o mundo exterior deve ser inferido. Isso constitui apenas a primeira
fase de um desenvolvimento que, passando por Berkeley e Kant, chega
a Fichte, para quem tudo era apenas uma emanação do eu.
Isso era uma loucura, e, partindo desse extremo, a filosofia tem procurado,
desde então, evadir-se para o mundo do senso comum cotidiano.
Com o subjetivismo na filosofia, o anarquismo anda de mãos dadas
com a política. Já no tempo de Lutero, discípulos
inoportunos e não reconhecidos haviam desenvolvido a doutrina
do anabatismo, a qual, durante algum tempo, dominou a cidade de Wünster.
Os anabatistas repudiavam toda lei, pois afirmavam que o homem bom seria
guiado, em todos os momentos, pelo Espírito Santo, que não
pode ser preso a fórmulas. Partindo dessas premissas, chegam
ao comunismo e à promiscuidade sexual. Foram, pois, exterminados,
após uma resistência heróica. Mas sua doutrina,
em formas mais atenuadas, se estendem pela Holanda, Inglaterra e Estados
Unidos; historicamente, é a origem do "quakerismo".
Uma forma mais feroz de anarquismo, não mais relacionada Com
a religião, surgiu no século XIX. Na Rússia, Espanha
e, em menor grau, na Itália, obteve considerável êxito,
constituindo, até hoje, um pesadelo para as autoridades americanas
de imigração. Esta versão moderna, embora anti-religiosa,
encerra ainda muito do espírito do protestantismo primitivo;
difere principalmente dele devido ao fato de dirigir contra os governos
seculares a hostilidade que Lutero dirigia contra os Papas.
A subjetividade, uma vez desencadeada, já não podia circunscrevem-se
aos seus limites, até que tivesse seguido seu curso. Na moral,
a atitude enfática dos protestantes, quanto à consciência
individual, era essencialmente anárquica. O hábito e o
costume eram tão fortes que, exceto em algumas manifestações
ocasionais, como, por exemplo, a de Münster, os discípulos
do individualismo na ética continuaram a agir de maneira convencionalmente
virtuosa. Mas era um equilíbrio precário. O culto do século
XVIII à "sensibilidade" começou a romper esse
equilíbrio: um ato era admirado não pelas suas boas conseqüências,
ou porque estivesse de acordo com um código moral, mas devido
à emoção que o inspirava. Dessa atitude nasceu
o culto do herói, tal como foi manifestado por Carlyle e Nietzsche,
bem como o culto byroniano da paixão violenta, qualquer que esta
seja.
O movimento romântico, na arte, na literatura e na política,
está ligado a essa maneira subjetiva de julgar-se os homens,
não como membros de uma comunidade, mas como objetos de contemplação
esteticamente encantadores. Os tigres são mais belos do que as
ovelhas, mas preferimos que estejam atrás de grades. O romântico
típico remove as grades e delicia-se com os saltos magníficos
com que o tigre aniquila as ovelhas. Incita os homens a imaginar que
são tigres e, quando o consegue, os resultados não são
inteiramente agradáveis.
Contra as formas mais loucas do subjetivismo nos tempos modernos tem
havido várias reações. Primeiro, uma filosofia
de semicompromisso, a doutrina do liberalismo, que procurou delimitar
as esferas relativas ao governo e ao indivíduo. Isso começa,
em sua forma moderna, com Locke, que é tão contrário
ao "entusiasmo" - o individualismo dos anabatistas como à
autoridade absoluta e à cega subserviência à tradição.
Uma rebelião mais extensa conduz à doutrina do culto do
Estado, que atribui ao Estado a posição que o Catolicismo
atribuía à Igreja, ou mesmo, às vezes, a Deus.
Hobbes, Rousseau e Hegel representam fases distintas desta teoria, e
suas doutrinas se acham encarnadas, praticamente, em Cromwell, Napoleão
e na Alemanha moderna. O comunismo, na teoria, está muito longe
dessas filosofias, mas é conduzido, na prática, a um tipo
de comunidade bastante semelhante àquela e que resulta a adoração
do Estado.
Durante todo o transcurso deste longo desenvolvimento, desde 600 anos
antes de Cristo até aos nossos dias, os filósofos têm-se
dividido entre aqueles que querem estreitar os laços sociais
e aqueles que desejam afrouxá-los. A esta diferença, acham-se
associadas outras. Os partidários da disciplina advogaram este
ou aquele sistema dogmático, velho ou novo, chegando, portanto
a ser, em menor ou maior grau, hostis à ciência, já
que seus dogmas não podiam ser provados empiricamente. Ensinavam,
quase invariavelmente, que a felicidade não constitui o bem,
mas que a "nobreza" ou o "heroísmo" devem
ser a ela preferidos. Demonstravam simpatia pelo que havia de irracional
na natureza humana, pois acreditavam que a razão é inimiga
da coesão social. Os partidários da liberdade, por outro
lado, com exceção dos anarquistas extremados, procuravam
ser científicos, utilitaristas, racionalistas, contrários
à paixão violenta, e inimigos de todas as formas mais
profundas de religião. este conflito existiu, na Grécia,
antes do aparecimento do que chamamos filosofia, revelando-se já,
bastante claramente, no mais antigo pensamento grego. Sob formas diversas,
persistiu até aos nossos dias, e continuará, sem dúvida,
a existir durante muitas das eras vindouras.
É claro que cada um dos participantes desta disputa como em tudo
que persiste durante longo tempo - tem a sua parte de razão e
a sua parte de equívoco. A coesão social é uma
necessidade, e a humanidade jamais conseguiu, até agora, impor
a coesão mediante argumentos meramente racionais. Toda comunidade
está exposta a dois perigos opostos: por um lado, a fossilização,
devido a uma disciplina exagerada e um respeito excessivo pela tradição;
por outro lado, a dissolução, a submissão ante
a conquista estrangeira, devido ao desenvolvimento da independência
pessoal e do individualismo, que tornam impossível a cooperação.
Em geral, as civilizações importantes começam por
um sistema rígido e supersticioso que, aos poucos, vai sendo
afrouxado, e que conduz, em determinada fase, a um período de
gênio brilhante, enquanto perdura o que há de bom na tradição
antiga, e não se desenvolveu ainda o mal inerente à sua
dissolução. Mas, quando o mal começa a manifestar-se,
conduz à anarquia e, daí, inevitavelmente, a uma nova
tirania, produzindo uma nova síntese, baseada num novo sistema
dogmático. A doutrina do liberalismo é uma tentativa para
evitar essa interminável oscilação. A essência
do liberalismo é uma tentativa no sentido de assegurar uma ordem
social que não se baseie no dogma irracional, e assegurar uma
estabilidade sem acarretar mais restrições do que as necessárias
à preservação da comunidade. Se esta tentativa
pode ser bem sucedida, somente o futuro poderá demonstrá-lo.
Notas
1. Essa opinião não era desconhecida
em tempos anteriores: foi exposta, por exemplo, na Antígona,
de Sófocles. Mas, antes dos estóicos, eram poucos os que
a mantinham.
2. Eis aí porque o russo moderno não
acha que deva obedecer mais ao materialismo dialético do que
a Stalin.
Fonte: Russell, B. (1977): História da Filosofia
Ocidental, Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional.
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