O Espírito que se assinou
Pascal transmitiu em Genebra, em 1860, comunicação
na qual afirmou que “O homem só possui em plena propriedade
aquilo que lhe é dado levar deste mundo”, conforme
transcreve Allan Kardec em “O Evangelho Segundo o
Espiritismo”, cap. 16.
Sem assinatura, o que pode ser atribuído a O Espírito
da Verdade, há a seguinte conceituação sobre
as paixões n’O Livro dos Espíritos (q.
907):
Nestas colocações está um autêntico
desafio sobre a natureza do homem. Uma, aparentemente, do Espírito
Pascal, induz ao completo desapego à propriedade, que não
pode ser levada deste mundo. Outra, sob a responsabilidade de
Allan Kardec, justifica e até sanciona as ações
humanas originárias das paixões, embora coloque
que estas se tornam perigosas se não forem governadas pelo
Espírito.
Pergunta-se: sob o pressuposto de que o homem só é
proprietário daquilo que pode levar deste mundo, ser-lhe-á
saudável, dentro de seu complexo existencial, anular ou
desprezar os impulsos criadores derivados das paixões?
Acredito que a proposta espírita sobre a propriedade deva
resultar do entendimento das colocações acima, de
suas interpretações, sob a ótica das informações
agregadas da Filosofia Espírita, que desde logo descartam
as conclusões maniqueístas.
A afirmação de Pascal é verdadeira enquanto
fato físico, mas incompleta, se tomada ao pé da
letra, na medida em que não incorpora as experiências
derivadas do exercício das paixões e até
de seus benefícios consequentes. Aniquilar as paixões
é ir contra a natureza do homem terreno que se conhece.
Franqueá-las, sem limites, implicará em prejuízos
para a vida do Espírito e para o meio em que este atua.
Questiona-se, agora, o limite ou as conveniências das iniciativas
pessoais, sob quaisquer fundamentos, sejam naturais, existenciais,
pessoais ou doutrinários.
Os sistemas que se basearam no darwinismo social de Herbert Spencer,
com clara premiação à propriedade individual,
sancionaram a acumulação pela chamada livre iniciativa;
defensores da competição econômica e social,
na busca de resultados (lucros), acabaram instituindo a mais-valia,
uma apropriação além do justo, dos resultados
do trabalho. A especulação, a sonegação,
a aniquilação do concorrente, a compra de empresas
menores por outras maiores, o monopólio, os trusts, a “validade”
da destruição de produtos para melhoria de seus
preços, receberam o amparo desse sistema.
Max Weber, quando procura identificar na história o espírito
do capitalismo, remonta ao calvinismo, cuja teologia prega o amor
ao trabalho, contrariamente à concepção medieval
que considera o trabalho uma maldição. Calvino,
no entanto, não coloca a riqueza gerada pelo trabalho como
instrumento de gozo ou prazer. “Combinando essa restrição
ao consumo com a liberação da procura da riqueza,
é óbvio o resultado que daí decorre: a acumulação
capitalista através da compulsão ascética
à poupança”, diz Weber.
Afirmam os Espíritos que a propriedade só é
legítima se adquirida sem o prejuízo de outrem.
A mais-valia, portanto, é a primeira consequência
contra a qual se coloca a Doutrina Espírita. Expressa também
esta doutrina que, para o homem, o limite do trabalho é
o das forças, pelo que lhe tira qualquer argumento tendente
ao ócio permanente.
Existe, assim, um limite natural ao aumento desmesurado de bens
nas mãos das pessoas, na medida em que estas devem legitimar
pelo trabalho tudo o que obtêm. Os Espíritos colocam
até sob suspeita a intenção de acumular-se
riqueza pelo “desejo de fazer o bem.”
(questão 902 de OLE).
Aqui está, a nosso ver, o método redistributivista
espírita. Ele é preventivo, desarma futuras desigualdades
sociais, na proporção em que, se cada um recebe
apenas aquilo a que faz jus, opera-se a imediata repartição
dos frutos do trabalho.
A tese espírita, portanto, não é contra a
propriedade de forma absoluta, nem contra a acumulação.
Grandes obras exigem recursos correspondentes. Até certo
ponto, a propriedade pessoal e sua busca escoam a capacidade criativa
das pessoas, mas quando a propriedade assume um interesse social,
da qual muitas outras pessoas dependem e para a qual contribuem
com seu trabalho, é justa a sua socialização.
Não significa, todavia, a estatização da
propriedade. Esta pode até existir, ser aceita por uma
comunidade, que elege o Estado como gestor único dos bens.
O avanço do Estado na economia, no entanto, em qualquer
sistema, tem-se mostrado adverso. A burocracia cria e se apossa
da mais-valia, enquanto exige hegemonias político-ideológicas
contrárias aos princípios da liberdade política.
A socialização que defendemos será entre
os participantes da produção, em estilo cooperativista
e solidário, com a mínima participação
da burocracia estatal, pela abolição de privilégios
de qualquer espécie, embora mantidas hierarquias e algumas
diferenças na distribuição dos resultados
do trabalho.
Para ajudar a esse objetivo, deve-se desenvolver a pesquisa sobre
o homem, sua natureza e objetivos, da qual derivam informações
que nos façam ver os equívocos do egoísmo
e do apego excessivo a valores de curta duração.
Será a visão do homem-espírito, em contínua
busca, sem complicar-se com os meios.