Há décadas que o movimento espírita não
passava por fenômeno tão curioso, como esse que
observamos nos últimos anos: espíritas defensores
de certas pautas políticas acusando outros espíritas
por defenderem pautas políticas; espíritas afirmando
que o espiritismo não se preocupa com questões
sociais; espíritas defendendo porte de armas e, também,
espíritas defendendo a pena de morte.
Ao mesmo tempo que esses discursos criam diversos problemas
internos, como uma grande evasão de frequentadores de
casas espíritas que não corroboram essas concepções
esdrúxulas e belicosas existe, também, um grande
ponto positivo: o verniz social já não se sustenta
tão bem no calor dos debates, quanto na postura morna
daqueles que tentavam esconder suas ideologias.
Vejam, há uma grande diferença entre aquele que
se posiciona após muita reflexão dos que tentam,
de forma quase infantil, fingir um discurso imparcial. Diante
da dor alheia não é possível um posicionamento
neutro. Ou você está do lado do sofredor ou do
lado do sistema, da manutenção do sofrimento dos
subalternos, dos marginalizados do mundo.
Ontem (04/11/2019), tive contato
com um texto que afirmava, depois de outras barbaridades, que
o espiritismo não se preocupa com às questões
sociais, visto que a reencarnação explica, por
exemplo, a existência da pobreza e da riqueza. Essa afirmação
demonstra a intenção clara em deslocar o debate,
acerca das desigualdades sociais, para fora das tribunas e grupos
de estudos espíritas. Por que encontramos esse tipo de
defesa dentro do movimento espírita? Será medo,
ignorância ou má-fé?
Em O Livro dos Espíritos,
Allan Kardec questiona se é lei da Natureza a desigualdade
das condições sociais. Os espíritos respondem:
Não; é obra do homem e não de Deus. [1]
Na questão 803, ainda n’O Livro dos
Espíritos, Kardec indaga:
Perante Deus, são iguais todos os homens?
“Sim, todos tendem para o mesmo fim e Deus fez Suas leis
para todos. Dizeis frequentemente: “O Sol luz para todos”
e enunciais assim uma verdade maior e mais geral do que pensais.”
Todos os homens estão submetidos às mesmas leis
da Natureza. Todos nascem igualmente fracos, acham-se sujeitos
às mesmas dores e o corpo do rico se destrói como
o do pobre. Deus a nenhum homem concedeu superioridade natural,
nem pelo nascimento, nem pela morte: todos, aos Seus olhos,
são iguais.
Já na questão 808, Kardec pergunta:
A desigualdade das riquezas não se originará da
das faculdades, em virtude da qual uns dispõem de mais
meios de adquirir bens do que outros?
“Sim e não. Da velhacaria e do roubo, que dizeis?”
E na subpergunta, temos:
a) – Mas, a riqueza herdada, essa não é
fruto de paixões más.
“Que sabes a esse respeito? Busca a fonte de tal riqueza
e verás que nem sempre é pura. Sabes, porventura,
se não se originou de uma espoliação ou
de uma injustiça? Mesmo, porém, sem falar da origem,
que pode ser má, acreditas que a cobiça da riqueza,
ainda quando bem adquirida, os desejos secretos de possuí-la
o mais depressa possível, sejam sentimentos louváveis?
Isso o que Deus julga e eu te asseguro que o Seu juízo
é mais severo que o dos homens.”
Quais são as conclusões que podemos chegar a
partir dessas questões d’O Livro dos
Espíritos?
a) Que a pobreza é fruto de causas morais: da ignorância
do rico ou da preguiça do pobre;
b) Que a pobreza é fruto de causas naturais: os pobres
são pobres porque nasceram pobres. Sempre foi assim e
assim deve ser.
c) Que a pobreza é fruto de um desenvolvimento contraditório,
pelo qual os ricos se tornam cada vez mais ricos às custas
dos pobres cada vez mais pobres.
Aos nossos olhos, só o último item explica de
forma razoável a pobreza como opressão e dependência,
sendo essa uma preocupação de todo aquele que
se preocupa pelo bem-estar físico-espiritual de todos.
A pobreza não pode ser vista como um problema individual,
visto que isso acarreta que todos os trabalhos sociais espíritas
fiquem circunscritos ao assistencialismo necessário,
mas que não resolve o problema. Essa visão, como
diz muito bem (PIXLEY e BOFF, 1986),
leva-nos “a postura que é preciso dar aos pobres
e não despertá-los. É preciso dar-lhes
esmolas, escolas, etc. Nesse sentido, os messias salvadores
dos pobres são naturalmente os ricos e poderosos, pois
eles que têm.”
(Jorge Pixley e Clodovis Boff, Opção
pelos Pobres, Vozes, 1986)
A pobreza tem que ser vista como um problema social, coletivo.
Como ignorar, meus irmãos e minhas irmãs, o fato
de metade dos brasileiros viverem com 413 reais mensais [2]?
Como crer que algumas atividades sociais, muitas dessas ocorrendo
semanalmente, ou mensalmente, resolverá ou diminuirá
essa realidade que se apresenta a todos nós?
É muito estranho observar espíritas serem atacados
pela defesa do óbvio. A defesa para que todos tenham
educação, alimentação, moradia,
trabalho deveria ser pauta de todos os espíritas, e não
só dos que se apresentam como Espíritas à
Esquerda.
Que Jesus, nosso mestre amigo, que não se calou diante
das estruturas e dos poderosos [3]
possa abençoar a todos.