Fernando Reinach
> Darwin e a prática da "Salami Science"
REVISTA DE CIÊNCIAS MÉDICAS E BIOLÓGICAS, VOL. 12,
NO 4 (2013)
Em 1985, ouvi pela primeira
vez no Laboratório de Biologia Molecular a expressão
"Salami Science". Um de nós estava com uma pilha
de trabalhos científicos quando Max Perutz se aproximou.
Um jovem disse que estava lendo trabalhos de um famoso cientista
dos EUA. Perutz olhou a pilha e murmurou: "Salami Science,
espero que não chegue aqui". Mas a praga se espalhou
pelo mundo e agora assola a comunidade científica brasileira.
"Salami Science" é a prática de fatiar uma
única descoberta, como um salame, para publicá-la
no maior número possível de artigos científicos.
O cientista aumenta seu currículo e cria a impressão
de que é muito produtivo. O leitor é forçado
a juntar as fatias para entender o todo. As revistas ficam abarrotadas.
E avaliar um cientista fica mais difícil. Apesar disso, a
"Salami Science" se espalhou, induzido pela busca obsessiva
de um método quantitativo capaz de avaliar a produção
acadêmica.
No Laboratório de Biologia Molecular, nossos ídolos
eram os cinco prêmios Nobel do prédio. Publicar muitos
artigos indicava falta de rigor intelectual. Eles valorizavam a
capacidade de criar uma maneira engenhosa para destrinchar um problema
importante. Aprendíamos que o objetivo era desvendar os mistérios
da natureza. Publicar um artigo era consequência de um trabalho
financiado com dinheiro público, servia para comunicar a
nova descoberta. O trabalho deveria ser simples, claro e didático.
O exemplo a ser seguido eram as duas páginas em que Watson
e Crick descreveram a estrutura do DNA. Você se tornaria um
cientista de respeito se o esforço de uma vida pudesse ser
resumido em uma frase: Ele descobriu... Os três pontinhos
teriam de ser uma ou duas palavras: a estrutura do DNA (Watson e
Crick), a estrutura das proteínas (Max Perutz), a teoria
da Relatividade (Einstein). Sabíamos que poucos chegariam
lá, mas o importante era ter certeza de que havíamos
gasto a vida atrás de algo importante.
Hoje, nas melhores universidades do Brasil, a conversa entre pós-graduandos
e cientistas é outra. A maioria está preocupada com
quantos trabalhos publicou no último ano - e onde. Querem
saber como serão classificados. "Fulano agora é
pesquisador 1B no CNPq. Com 8 trabalhos em revistas de alto impacto
no ano passado, não poderia ser diferente." "O
departamento de beltrano foi rebaixado para 4 pela Capes. Também,
com poucas teses no ano passado e só duas publicações
em revistas de baixo impacto..." Não que os olhos dessas
pessoas não brilhem quando discutem suas pesquisas, mas o
relato de como alguém emplacou um trabalho na Nature causa
mais alvoroço que o de uma nova maneira de abordar um problema
dito insolúvel.
Essa mudança de cultura ocorreu porque agora os cientistas
e suas instituições são avaliados a partir
de fórmulas matemáticas que levam em conta três
ingredientes, combinados ao gosto do freguês: número
de
trabalhos publicados, quantas vezes esses trabalhos foram citados
na literatura e qualidade das revistas (medida pela quantidade de
citações a trabalhos publicados na revista). Você
estranhou a ausência de palavras como qualidade, criatividade
e originalidade? Se conversar com um burocrata da ciência,
ele tentará te explicar como esses índices englobam
de maneira objetiva conceitos tão subjetivos. E não
adianta argumentar que Einstein, Crick e Perutz teriam sido excluídos
por esses critérios. No fundo, essas pessoas acreditam que
cientistas desse calibre não podem surgir no Brasil. O resultado
é que em algumas pós-graduações da USP
o credenciamento de orientadores depende unicamente do total de
trabalhos publicados, em outras o pré-requisito para uma
tese ser defendida é que um ou mais trabalhos tenham sido
aceitos para publicação.
Não há dúvida de que métodos quantitativos
são úteis para avaliar um cientista, mas usá-los
de modo exclusivo, abdicando da capacidade subjetiva de identificar
pessoas talentosas, criativas ou simplesmente geniais, é
caminho seguro para excluir da carreira científica as poucas
pessoas que realmente podem fazer descobertas importantes. Essa
atitude isenta os responsáveis de tomar e defender decisões.
É a covardia intelectual escondida por trás de algoritmos
matemáticos.
Mas o que Darwin tem a ver com isso? Foi ele que mostrou que uma
das características que facilitam a sobrevivência é
a capacidade de se adaptar aos ambientes. E os cientistas são
animais como qualquer outro ser humano. Se a regra exige aumentar
o número de trabalhos publicados, vou praticar "Salami
Science". É necessário ser muito citado? Sem
problema, minhas fatias de salame vão citar umas às
outras e vou pedir a amigos que me citem. Em troca, garanto que
vou citá-los. As revistas precisam de muitas citações?
Basta pedir aos autores que citem artigos da própria revista.
E, aos poucos, o objetivo da ciência deixa de ser entender
a natureza e passa a ser publicar e ser citado. Se o trabalho é
medíocre ou genial, pouco importa. Mas a ciência brasileira
vai bem, o número de mestres aumenta, o de trabalhos cresce,
assim como as citações. E a cada dia ficamos mais
longe de
ter cientistas que possam ser descritos em uma única frase:
Ele descobriu...
Fonte:
Rev. Ciênc. Méd. Biol., Salvador, v.12, especial, p.402-403,
dez.2013
Fonte:
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,darwin-e-a-pratica-da-salami-science,1026037,0.htm
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