Em uma reunião de estudos
do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS), realizada habitualmente
às sextas-feiras, às 20 horas, durante a discussão
sobre reencarnação, foram feitas muitas perguntas
sobre as dificuldades para que essa lei seja plenamente aceita pela
cultura.
Neste trabalho pretendemos levantar algumas questões relativas
à reencarnação e sua posição
na Doutrina Espírita, comparativamente à aceitação
dessa lei nos países asiáticos. Tentaremos também
enumerar as dificuldades da cultura ocidental judaico-cristã
em aceitar a tese das vidas sucessivas.
Allan Kardec só aceitou a reencarnação após
uma análise profunda. Eis o que ele diz na Revista Espírita
de abril de 1860, no bojo de um longo artigo sobre a formação
da Terra, analisando o valor das comunicações dos
espíritos:
“Como se vê, temos
muitos motivos para não aceitar levianamente todas as teorias
dadas pelos espíritos. Quando surge uma, fechamo-nos no
papel de observador. Fazemos abstração de sua origem
espírita, sem nos deixar ofuscar pelo brilho de nomes pomposos.
Examinamo-la como se emanasse de um simples mortal e vemos se
é racional, se dá conta de tudo, se resolve todas
as dificuldades. Foi assim que procedemos com a doutrina da reencarnação,
que não adotamos, embora vinda dos espíritos, senão
depois de havermos reconhecido que ela só, e só
ela, podia resolver aquilo que nenhuma filosofia jamais havia
resolvido". (Tradução
de Júlio Abreu Filho, pág. 115 - Edicel).
A REENCARNAÇÃO
NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE
A ideia da reencarnação
é conhecida desde a mais remota antiguidade. Mas perdeu-se
no emaranhado das superstições e do misticismo, refletindo
as dificuldades da cultura em desvencilhar-se das pressões
atávicas a respeito da relação da criatura
com o Criador. A vivência dos problemas cotidianos e a fragilidade
do ser humano diante da natureza fomentaram uma relação
casual entre os humores dos deuses e os sofrimentos baseada no medo,
na condição de culpa, castigos, desobediência
e punição.
Dentro desse quadro confuso, criaram-se seitas fundamentadas em
crendices e superstições acerca da reencarnação.
Por isso, a metempsicose foi aceita largamente por simbolizar o
castigo mais cruel imposto ao pecador, fazendo com que, por ser
uma pessoa humana, reencarnasse num animal. Até um filósofo
como Pitágoras a aceitou e difundiu.
A reencarnação é muito aceita na cultura asiática,
mas não teve uma ação social redentora, revolucionária.
Ao contrário, propiciou uma atitude contemplativa, conformista
e acomodatícia. Em culturas como a indiana, a reencarnação
não evitou, ao contrário, deu certa consistência
à separação em castas sociais, mantendo um
estado de flagelo para os mais pobres e desafortunados.
A cultura ocidental sofreu sucessivas transformações
até cristalizar-se, de uma maneira geral, sob a égide
da Igreja, com a visão judaico-cristã. A predominância
da religião, como centro de conhecimento e comportamento,
criou uma forma não-racional de ver e compreender o ser e
o mundo.
Embora espiritualista, a Igreja não aceitou a reencarnação
e fixou-se na unicidade da existência. Com isso, estabeleceu
o princípio da finitude e concretude para o ser humano. Ele
é produto biológico ao qual se adiciona uma alma.
Vive um certo tempo e morre. E aí finda seu período
produtivo. A imortalidade da alma é reflexo da existência
terrena e não apresenta qualquer oportunidade de reciclagem,
uma vez que após o período da encarnação,
ela está definitivamente catalogada como boa ou má.
Logo, a pessoa humana é um ser com trajetória fixada
entre o berço e o túmulo. Na cultura, isso significa
que ele é concreto, definido e mortal.
Toda a estrutura doutrinária da Igreja se funda no pecado
original. A moralidade e a culpa se inserem na cultura como instrumentos,
como uma fase preparatória para a vida eterna.
Certamente, a ideia de punição pela desobediência
e até pelos humores dos deuses ou de Deus, não é
exclusiva do judaico-cristianismo. Mas a adoção do
Deus Jeová dos judeus manteve a relação criatura-Criador
dentro dos limites do medo, terror e insegurança.
A REENCARNAÇÃO NO ESPIRITISMO
A reencarnação, todavia, não é um princípio
solitário e autônomo no pensamento kardecista. Faz
parte de um corolário de leis que se encadeiam e dão
um novo sentido, uma nova visão de vida e da pessoa.
A reencarnação, todavia, não é um princípio
solitário e autônomo no pensamento kardecista. Faz
parte de um corolário de leis que se encadeiam e dão
um novo sentido, uma nova visão de vida e da pessoa.
O projeto espírita é abrangente e inovador. Ele aproveita
velhos conceitos sobre a natureza do ser humano, o progresso, sobre
Deus e os redefine, atualiza, dando-lhes novas dimensões,
refugando superstições e crendices.
A doutrina kardecista procura escoimar seus princípios das
concepções místicas procurando dar-lhes uma
base científica, caminho que Kardec definiu para dar validade
à proposta doutrinária.
A doutrina kardecista reformula o entendimento sobre a Justiça
Divina, que tem sido vista como uma forma policial, punitiva, exigindo
pagamento. Para isso, apresenta uma nova compreensão da lei
de causa e efeito, geralmente tomada no seu aspecto negativo, de
expiação. Para a doutrina kardecista, a Justiça
Divina, ao contrário, só tem por objetivos dar oportunidade
de crescimento e ampliação das qualidades do ser espiritual.
A reencarnação, como foi dito, é um elo no
processo evolutivo da Lei de Evolução, uma concepção
revolucionária do Espiritismo, que ajuda a entender o ser
humano e o mundo.
Detalharemos a seguir alguns conceitos
básicos do Espiritismo e as dificuldades da cultura cristã
em aceitá-los.
O ESPÍRITO E A EVOLUÇÃO
A existência, evolução e imortalidade do espírito,
conforme postula o Espiritismo, é diferente de qualquer análise
ou proposta anterior ou presente a respeito da natureza espiritual
do ser humano.
Se na visão univivencial, a essência espiritual, a
alma, tem vida produtiva limitada e sua criação coincide
como o nascimento do corpo, para o Espiritismo o ser espiritual
é criado por Deus sem qualquer ligação específica
com determinado corpo ou determinada situação. Pela
doutrina kardecista, a criação de espíritos
é um processo divino, inacessível ao nosso conhecimento,
conduzindo a essência espiritual pelo caminho do autocrescimento,
explorando suas potencialidades inatas.
È básico na Doutrina afirmar-se que o ser espiritual
é criado simples e ignorante, como um princípio espiritual.
É geralmente aceito que esse princípio espiritual,
inicialmente sem estrutura, caminha em lento progresso e que vai
se consolidando e agregando fatores instintivos no reino animal
até despertar a razão, isto é, aprender o conhecimento,
discernir fatores e determinar o próprio futuro, atingindo
o nível hominal.
Quando se atinge o nível hominal, o principio espiritual
torna-se espírito, definido como o ser inteligente do universo.
Após o despertar da razão, começa a desenvolver
a afetividade, o que corresponde, em termos genéricos, à
moralidade, a civilização e a cultura.
Esse princípio espiritual,
germe do espírito, desenvolve suas aptidões inatas,
potências, no conflito da formação e vivência
em organismos, até eclodir na espécie humana.
Posto isso, verifica-se que o ser
humano atual é um produto da evolução singular
dos espíritos.
A SINGULARIDADE E O TEMPO
O conceito de singularidade valoriza a individualidade, a construção
e o desenvolvimento da sabedoria do ser enquanto ser, dentro de
uma visão solidária. Este conceito pode ser explicado
na assertiva: "toda decisão é solitária,
mas sua realização é solidária",
que é a base do processo evolutivo.
O crescimento do ser espiritual é atemporal. A noção
do tempo é colocada na dinâmica do processo, sem parâmetros
cronológicos ou comparativos.
Cada indivíduo, na sua singularidade, descreve a curva de
seu tempo, tomado-a compatível com sua disponibilidade de
crescimento, reflexão, estratificação e dinamismo,
dando sentido à diversidade de caracteres e opções
vivenciais visíveis na existência humana.
Nesse entendimento, existe um eixo coordenador do processo de progresso
das individualidades, que é a Lei natural ou divina, proposta
por Allan Kardec.
Esse eixo estabelece a reciprocidade do ato e da reação
como forma de conflito positivo ou negativo, gerando reações
adequadas e aprendizado gradativo, pela infinita repetição
de processos, nos quais a encarnação, a vida, a morte
e a reencarnação são instrumentos básicos
para desencadear o crescimento.
O ESPÍRITO
E A IMORTALIDADE
A imortalidade é uma característica natural do principio
espiritual e, por conseqüência, do espírito. É
de sua natureza ser imortal. Essa afirmação estrutural
é que dá suporte à Lei de Evolução.
Sendo imortal e potencial, o ser espiritual necessita de instrumentos
de apreensão dos fatores externos, de modo a criar condições
de permanência de si mesmo. A noção de uma alma
imortal, criada junto com o corpo e mantendo a chama da vida após
a morte, sem possibilidade de reciclagem e crescimento, é
comparada à morte total, nada tem a ver com a imortalidade
dinâmica que o Espiritismo ensina.
A encarnação e a reencarnação do espírito
fazem parte dos mecanismos da evolução.
Ela é necessária para
levar o ser espiritual à perfeição (LE,
questão 132). A reencarnação é
um corolário desse processo: "...as encarnações
sucessivas são sempre muito numerosas, porque o progresso
é infinito." (idem, questão
169).
O ser espiritual, para seu desenvolvimento integral na relação
com os organismos, na encarnação e reencarnação,
submete-se a uma ação existencial repetitiva: nascer,
viver, morrer, renascer. Neste círculo completo se insere
o "estado errante", o tempo vivido entre duas encarnações,
no plano extrafísico.
Eis aí delineado, em linhas simples, o projeto da evolução
dos espíritos.
RESISTÊNCIAS
ÀS NOVAS IDEIAS
A cultura é fruto da atuação do ser singular
e que, simultaneamente, o influencia e de certa forma o submete,
numa relação dialética e contínua.
Embora dinâmica, existem alguns fundamentos da cultura que
foram cristalizados por séculos de sucessivas afirmações.
Além disso, com relação a muitas coisas, a
visualidade determina o conceito, mesmo que errado.
Essa é a primeira dificuldade a ser superada.
Por analogia, lembremos que a cultura ancestral dizia que a Terra
era parada e que o Sol se movia. Durante séculos essa era
a verdade, porque correspondia à realidade visual, existencial.
Depois, pela ciência e também pela constatação
visual, verificou-se que a Terra é apenas um pequeno planeta
azul, participante do sistema solar, dentro de uma galáxia
dentre muitas galáxias, num universo sem limites.
Hoje a cultura sabe que a Terra gira em tomo de si mesma, num período
de 24 horas e alguns minutos e que se realiza um movimento de translação
em torno do Sol, correspondendo ao ano de 365 dias.
Entretanto, para a vida comum, no dia-a-dia, a Terra parece e é
vivida como parada. Só intelectualmente se percebe o seu
movimento.
Da mesma forma, na vivência comum, a pessoa nasce, vive e
morre. Ao nascer, é uma criança que passa invariavelmente
pelas etapas do desenvolvimento físico e psicológico
comuns à espécie e que nada parece ressaltar, a não
ser em ocasiões especiais, que não seja realmente
um ser totalmente novo. Não tem lembranças vivas de
um passado. Submete-se ao processo de amadurecimento corporal e
psicológico como alguém que nunca tivesse vivido essa
experiência anteriormente.
Somente intelectualmente é que se pode entender o ser humano
como um espírito reencarnado. Daí as dificuldades
de se entender como um espírito adulto pode encarnar numa
criança.
No evangelho, temos o diálogo de Nicodemos com Jesus. Quando
este diz que é preciso nascer de novo, o fariseu argumenta:
"como pode o espírito de um homem velho entrar no
corpo de uma criança?" E a mesma pergunta continua
perturbando as pessoas porque é difícil entender a
engrenagem da reencarnação, uma vez que para a maioria
o ser humano é o seu corpo.
EFEITOS
PSICOLÓGICOS DA DOUTRINA DA REENCARNAÇÃO
A insistência em afirmar determinados princípios, com
a autoridade divina, como as igrejas geralmente se tornam, conduz
à inevitável aceitação deles como verdade,
criando uma cultura específica. A superação
desses princípios, pois, é difícil. A incorporação
de novos conceitos, que se oponham a eles, é tarefa educativa
de persuasão e consistência que demanda tempo, às
vezes muito longo, pois implica na reestruturação
mental e psicológica.
A aceitação da reencarnação como um
fenômeno natural, implica em mudanças profundas na
psicologia pessoal e social.
A natureza do ser, sua estrutura mental, o conjunto de desejos,
o posicionamento moral e intelectual, passam a ter novos fundamentos
e a Psicologia terá que redirecionar seu trabalho, colocando
esses componentes na análise dos fatores que concorrem para
a formação, atração e rejeição
entre as pessoas.
Instituições como a família têm novos
parâmetros, uma vez que cada componente é entendido
como um ser vivido, embora submetido aos padrões culturais
e às exigências genéticas, psicossociais.
Todo o objeto da existência terrena é revisto. Especificamente,
devido à função que cada um desempenha e se
relaciona consigo mesmo, reflete as experiências dos ciclos
existenciais sucessivos sem, contudo, perturbar o ritmo existencial
aqui e agora.
Ou seja, a reencarnação não pode alienar o
presente, nem mutilar o desejo e a espontaneidade vivencial, pessoal.
Bem entendida, ela é uma retaguarda de entendimento para
melhorar o desempenho da vida atual.
EFEITOS
SOCIAIS DA DOUTRINA DA REENCARNAÇÃO
Da mesma forma, a doutrina da reencarnação produz
profundas mudanças nos conceitos de sociedade e das relações
interpessoais. Preconceitos e discriminações sofrem
um ataque fulminante, porque a prevalência do mérito
espiritual desestrutura toda uma rede de pruridos e condições
sociais.
Tal coisa não resolverá, em curto prazo, esses problemas,
mas dará um suporte realmente amplo, espiritual para as mudanças
nas relações humanas.
TEORIA E PRÁTICA
A aceitação da reencarnação tem que
ser feita, pois, fora dos parâmetros místico-religiosos
que cerceiam a inteligência dos fatos e procuram, de uma ou
de outra forma, a salvação das pessoas, centradas
na concepção da vida terrena como uma passagem inglória,
sofrida e expiatória, preparatória para a vida eterna
e submetida à vontade arbitrária da divindade. Ao
contrário dessa limitação, a lei das vidas
sucessivas é caminho de reestruturação, vivência
e reciclagem contínua do espírito em evolução.
O exemplo das civilizações que aceitam levianamente
a reencarnação, mas que mantém não apenas
uma mentalidade absurda em termos de crendice e não utilizam
a lei das vidas sucessivas de forma positiva, para modificar o panorama,
deve ser sempre lembrado, quando postulamos a separação
da lei das vidas sucessivas dos parâmetros religiosos e místicos.
Nessas civilizações a crença na reencarnação
é uma retórica para justificar o caos social ou a
formação de castas.
Por isso, o Espiritismo deverá ensinar a reencarnação
como uma lei natural, instrumento da Lei de Evolução
e desvinculá-la das punições, do castigo e
da expiação, enquanto entendida como uma forma de
flagelação da alma para purgar pecados.
Jaci Regis
é psicólogo, jornalista, economista e escritor.
Fundador e presidente do Instituto Cultural Kardecista de Santos
(ICKS), idealizador do Simpósio Brasileiro do Pensamento
Espírita (SBPE), editor do jornal de cultura espírita
“Abertura” e autor dos livros “Amor,
Casamento e Família”, “Comportamento
Espírita”, “Uma Nova Visão
do Homem e do Mundo”, “A Delicada
Questão do Sexo e do Amor”, “Novo
Pensar - Deus, Homem e Mundo”, dentre outros.