Miguel
Reale
> Razão e religião: Lombroso e o Espiritismo
No ano que se inicia,
comemora-se o centenário da morte do cientista e médico
Cesare Lombroso, fundador da Antropologia Criminal.
Lombroso foi, ao lado de Garófalo e Ferri, um dos epígonos
da Escola Penal Positiva italiana, cujas ideias foram fruto do desenvolvimento
das ciências naturais e da confiança nos métodos
empírico-explicativos.

A explicação causal do crime nasce com Lombroso a partir
de estudos da morfologia de diversos condenados e internados, observando
dados físicos dos quais retira consequências acerca do desenvolvimento
mental. Sinais exteriores como queixo prognata, testa curta, orelhas de
abano são características correspondentes a tendências
delituosas. Dessa maneira, há um criminoso nato cuja origem está
no atavismo, na herança da idade selvagem. O delito é fruto
inexorável desse homem incorrigível, em razão da
não-evolução de aspectos físicos e psíquicos.
Assim, Lombroso negava o livre-arbítrio por acreditar na determinação
absoluta da prática delituosa por fatores antropológicos.
Além de O Homem Delinquente, escreveu Lombroso A Mulher Delinquente,
estudo no qual afirmava, após exame das características
da mulher como as físicas, a capacidade craniana, o esqueleto,
o peso e estatura, a inteligência e a moralidade, que esta possui
fundamentalmente caracteres que a aproximam do selvagem e da criança.
Lombroso, contudo, mais tarde, sob influência de Ferri deu relevo
aos aspectos ambientais na produção do fato delituoso, além
de concluir, no final da vida, em consequência de sua adesão
ao espiritismo, que dentre os criminosos poucos poderiam ser considerados
como natos.
Curiosa é a caminhada do cientista, aferrado à análise
dos fatos e à comprovação de suas causas, em direção
ao espiritismo. Lombroso não foi fulminado pelo milagre da graça
ou conduzido por uma revelação entusiasmante de Deus e das
verdades escatológicas, mas chegou à religião, como
se verá, por força dos fatos dos quais se declara escravo.
Na Itália do último quartel do século 19, deu-se
forte influência do espiritismo, mormente no meio científico.
Lombroso negou-se diversas vezes a participar de experiências espíritas,
que chegou a ridicularizar. Coincidiu sua estada em Nápoles, em
março de 1891, com a do professor Chiaia e da médium Eusápia
Paladino, de extraordinários poderes. Lombroso concordou em presenciar
uma sessão, desde que no seu hotel, à luz do dia, com cuidados
contra qualquer fraude.
Na primeira de uma centena de sessões com a médium, impressionou-o
o fato de, estando Eusápia presa a uma cadeira, a cortina do
quarto se ter desprendido para envolvê-lo.
Poucos meses após a primeira experiência espírita,
em julho, Lombroso já manifestava se envergonhar de haver combatido
com violência a possibilidade de fenômenos espíritas,
pois, apesar de contrário à teoria, atestava que fatos
existiam e se orgulhava de deles ser escravo.
Em 1890, afirmara, diante da verificação de levitações,
de transporte de objetos e de materializações, que com
relação à teoria espírita era um pequeno
seixo na praia, a água não o cobria, mas a cada maré
sentia estar sendo arrastado um pouco mais para o mar. Experiência
impressionante foi a aparição, em 1902, de sua mãe
em diversas sessões, uma figura com a mesma estatura e a mesma
voz, na maioria das vezes chamando-o de "fiol mio", como era
próprio de sua origem veneziana.
Indagado por um jornalista em 1906 sobre os fenômenos espíritas,
Lombroso disse que por educação científica fora
sempre contrário ao espiritismo, mas ao lado de eminentes observadores,
médicos, físicos, químicos, biólogos constatou
fatos. Assim, acreditava na evidência, nada mais, sem medo do
ridículo ao afirmar fatos dos quais experimentalmente adquirira
profunda convicção.
Escreveu, então, em 1909, perto de morrer, o livro Hipnotismo
e Mediunidade, em cujo prefácio declara que se situou distante
de toda a teoria para que a convicção surgisse espontânea
dos fatos solidificados pela consciência emanada do consenso geral
dos povos. Fez, então, uma consistente síntese das experiências
mediúnicas ao longo do tempo, mostrando a analogia entre o que
sucedeu com os povos antigos, com os povos indígenas, com os
fenômenos ocorridos na Idade Média ou no Renascimento e
com o que sucedeu naqueles dias na presença de ilustres cientistas.
Disse, então, possuir um mosaico de provas resistente às
mais severas dúvidas. Dentre tantos fenômenos e experiências
que relata, muitos dos quais testemunhou, curiosos são os casos
judiciários, como o da revelação por espírito
de jovem falecido em navio de ter sido envenenado com ingestão
de amêndoas com rícino, fato este depois constatado por
perícia.
Escravo dos fatos, Lombroso descobre pela experiência o espiritismo,
o que não contraria sua formação científica,
causal-explicativa.
Alan Kardec, no Livro dos Espíritos, reconhece o livre-arbítrio,
mas admite que não são os caracteres físicos que
determinam o comportamento, e sim a natureza do espírito encarnado,
que pode ter inclinação para o mal, mas possui o poder
de enfrentar com o seu querer a tendência manifestada. Lombroso
reconhece, ao fim, a pouca incidência de hipóteses do criminoso
nato.
Este escorço histórico, quando dos cem anos da desencarnação
de Lombroso, recoloca a angustiosa questão do livre-arbítrio
ou do determinismo. A meu sentir, a liberdade não pode ser indiferente.
Cabe situar o homem em suas circunstâncias biológicas e
sociais, pois age no mundo que o circunda. O homem possui uma liberdade,
mais que situada, sitiada, sem deixar de ter, contudo, uma esfera de
decisão última pela qual define a realização
da vontade e a do seu próprio modo de ser. Sem liberdade perdem
sentido a dignidade do homem e a imortalidade do espírito.
Miguel Reale Júnior, advogado, professor-titular
da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras,
foi ministro da Justiça
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