À revelia das análises de morfologia
e funcionamento que eram redigidas por tratadistas e médicos,
a ‘madre’ (útero) ganhava vida própria e peculiar
no cotidiano das populações coloniais, que liam nos seus
encantamentos outra morfologia e outro funcionamento. “Não
negamos que da corruptela dos humores dentro do corpo se possam gerar
coisas monstruosas”, avisava cauteloso Bernardo Pereira, confirmando
a ambiguidade de um órgão que não se deixava apreender.
Tudo indica que a possibilidade de se ter os órgãos procriativos
enfeitiçados era encarada com naturalidade, e a documentação
é rica justamente ao capturar o embate que houve entre médicos
e mezinheiros no intuito de curar o corpo feminino enfeitiçado.
Nesse sentido, o corpo da mulher ora aparece como fruto de um sortilégio
que o debilitava, ora a própria mulher aparece como curandeira,
a debelar doenças. Ora a ‘madre’ era atacada de um
mal estranho que fazia os médicos interrogarem-na, ora era uma
benzedeira a disputar com os mesmos homens o privilégio de sanar
as enfermidades que ela melhor conhecia, por ser também mulher.
Olhares diversos perscrutavam o mesmo alvo com conclusões que
se afinavam quando se tratava de acreditar numa madre enfeitiçadora.
Como escrevia Bernardo Pereira em 1734, “nesta consideração,
é de ser verdade infalível e católica, recebida
de todos os profetas literários, que há qualidades maléficas
que vulgarmente chamam feitiços e estas podem produzir e excitar
todo o gênero de achaques a que vive sujeito o corpo humano”.
O médico português seguia perguntando se “seria lícito”,
uma vez que malefícios existiam, consultar mezinheiros e mezinheiras
“que ordinariamente carecem de todo o gênero de livros,
[...] são rudes e ignorantes”. O pior, no entanto, era
que “semelhantes pessoas” nada podiam fazer para minorar
sofrimentos, senão recorrendo à “arte diabólica
com pacto implícito ou explícito”.
O consenso de que seria possível
ter o corpo enfeitiçado era incorporado pela medicina, que via
no físico um palco de embates entre Deus e Diabo. Brás
Luís de Abreu avisava que os feiticeiros seriam capazes de “vencer
achaques e obrar coisas prodigiosas e transnaturais”, utilizando
“certas palavras, versos e cânticos” ensinados pelo
Demônio, com o qual fariam “pacto, concerto de amizade ou
escravidão”.
No universo de curas informais pelas quais se venciam ‘queixas
insuperáveis’, a recorrente presença da mulher curandeira
prenunciava o estereótipo da bruxa, havia muito perseguido pela
Inquisição. Mas explicitava também a importância
que tinha a mulher como detentora do conhecimento, do qual já
tratamos, sobre as ervas e medicamentos caseiros, tão capazes
de curar como de enfeitiçar. No caso do corpo feminino, sendo
a ‘madre’ o critério de bom funcionamento da saúde
da mulher, tornava-se alvo preferido de bruxedos que pudessem subverter
a sua regularidade. Tendo seus corpos sujeitos a sortilégios
e encantamentos, as mulheres preferiam tratar-se no interior de um universo
feminino de saberes, onde a troca de solidariedades era corrente, o
que instigava os doutores a caricaturar não só a sua necessidade
de tratamentos como também a figura das mulheres que curavam:
[...] entra uma beata ou uma feiticeira,
e assim que vão subindo a escada já vão fazendo
o sinal da cruz, melhor fora que o doente se benzera destes médicos.
Deus seja nesta casa, as almas santas nos guiem, a Virgem Maria nos
ajude, o anjo são Rafael nos encaminhe; que tem meu senhor
(diz a beata) pegue-se muito com minha senhora Sant’Ana que
logo terá saúde, [...] não se fie nos médicos
humanos; confie somente nas orações das devotas, que
só estas chegam ao céu.
Embora apareçam sobrepostas na
representação do autor-médico, na prática
a imagem que se tinha das mulheres que curavam ou ‘rezavam’
males físicos não devia ser muito diferente da descrição
literária. O emprego de orações a santos de devoção
popular e a utilização de ervas e mezinhas extraídas
do quintal e do conhecimento feminino sobre a farmacopeia doméstica
misturavam-se a gestos impregnados de magia e devoção,
como as abluções com água benta.
O ataque a beatas e feiticeiras não era fortuito. Desde tempos
imemoriais as mulheres foram curandeiras, e antes do aparecimento de
doutores e anatomistas, praticavam enfermagem e abortos, davam conselhos
sobre enfermidades, eram farmacêuticas, cultivavam ervas medicinais,
trocavam fórmulas e faziam partos. Foram por séculos doutores
sem título.
A naturalidade e a intimidade com que essas tratavam a doença,
a cura e a morte tornavam-nas perigosas e malditas. Na acusação
de curandeirismo eram duplamente atacadas: por serem mulheres e por
possuírem um saber que escapava ao controle da medicina e da
Igreja. O Tribunal do Santo Ofício foi uma das manifestações
do saber institucional na luta contra os saberes informais e populares.
Seus processos geraram um imenso painel em que as práticas femininas
de cura e também o corpo feminino como fonte de doenças
ou palco de curas foram protagonistas importantes.
Em Pernambuco, por exemplo, no ano de 1762, em Vila Formosa de Serinhaém,
dona Mariana Cavalcanti e Bezerra denunciava ao comissário do
Santo Ofício, dom Antônio Teixeira de Lima, que Maria Cardoso,
parda forra, “benzia madres” e que sua escrava Bárbara
“curava madres”. Em outra localidade da mesma freguesia,
uma certa Joana Luzia benzia madres com as seguintes palavras: “Eu
te esconjuro madre, pela bênção de Deus Padre e
da espada de Santiago, pelas três missas do natal que te tires
donde está e vá para o teu lugar, que deixes fulana sangrar”.
Incorporadas ao imaginário popular, encontramos nesta oração
duas preocupações que emergem também dos tratados
de medicina: a noção de uma madre voluntariosa, capaz
de mover-se para cima e para baixo no interior do corpo feminino, e
a preocupação com as ‘regras’ como mecanismo
de controle da saúde. Mas, na ausência do saber médico,
a cura era provida pelo ‘mágico’, que disputava com
o ‘milagroso’ da ‘prodigiosa lagoa’ o apanágio
de curar os corpos doentes.
A presença de mulheres que curavam outras mulheres, como era
o caso de Joana Luzia, Bárbara e Maria Cardoso, é denotativo
do papel que exerceram tantas mulheres no universo colonial como curandeiras,
mas fala-nos também de uma solidariedade feminina exercida dentro
da cultura feminina e que se traduzia em momentos críticos, como
os nascimentos, as doenças, o abandono e a morte.
A madre enfeitiçada que carecia de benzeduras era também
capaz de gerar coisas monstruosas, sublinhando na mentalidade do período
uma imagem deformada da mulher ora como feiticeira, ora como mantenedora
de um úbere mágico.Passando de enfeitiçada a feiticeira,
a madre utilizava seu poder de conceber filhos para conceber monstros.
Inspirado no livro de Ambroise Paré, o nosso dr. Nunes afirmava,
no seu tratado escrito em Pernambuco setecentista, o nascimento de um
“monstro que nasceu com cornos e dentes a cola”, bem como
o de um outro que nascera “como um lagarto que repentinamente
fugiu”, e ainda uma mulher que dera à luz um elefante e
uma escrava que parira uma serpente.
Eis por que não parece impossível a Bernardo Pereira que
escrevia no início do século XVIII, narrar o caso de uma
viúva capaz de lançar pela urina “semente de funcho”
ou “um glóbulo de cabelos, que sendo queimados lançavam
o mesmo odor que costumam exalar os verdadeiros”. O douto médico
que observava o fenômeno afirmava que este era resultado de uma
“astúcia do Demônio”. As astúcias do
Diabo se faziam presentes também nas madres de mulheres da Colônia,
enchendo seus úberes de fascinação, bruxaria e
encantamento. – Mary del Priore (baseado em “Ao Sul do Corpo”).
por Francisco José de Goya y Lucientes
Fonte:
http://historiahoje.com/?p=3095
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