Introdução:
Muito provavelmente, Paulo de Tarso, antes conhecido como Saulo,
nasceu na primeira década do século I d. C., o que significa
que seria pouco mais novo do que Jesus de Nazaré. Judeu da
diáspora, o apóstolo seria natural da Cilícia,
tendo decerto tido uma educação de tipo helenizante.
Cidadão romano, como ele próprio se identifica pela
mão do autor dos Actos dos Apóstolos, Paulo
viajou por todo o Mediterrâneo, designadamente pela Síria,
Chipre, Ásia Menor, Antioquia, Galácia, Macedónia,
Corinto, Jerusalém, Éfeso, Roma e, muito possivelmente,
pela Península Ibérica. Paulo terá vivido sob
os principados de Augusto, Tibério, Gaio Calígula e
Cláudio, acabando por ser condenado à morte, em Roma,
no tempo de Nero. A sua vida coincidiu, por conseguinte, com a vigência
de toda a chamada dinastia Júlio-Cláudia, assistindo
assim à emergência do Principado ou Império Romano
bem como a todas as transformações que o Mundo Antigo
conheceu nessa época.
A vida e a obra de Paulo de Tarso podem ser conhecidas através
de várias fontes, sendo as mais significativas o livro dos
Actos dos Apóstolos, tradicionalmente atribuído
a Lucas, e as cartas escritas a várias comunidades cristãs
mediterrâneas emergentes e a alguns indivíduos, como
Filémon e Timóteo. Aliás, não menos de
treze dos vinte e sete escritos do chamado Novo Testamento são
cartas atribuídas a Paulo. Se a esses juntarmos o facto de
o apóstolo ser um dos principais caracteres dos Actos,
então a presença de Paulo de Tarso nessa parte da Bíblia
traduz-se num protagonismo que ocupa quase um terço de todo
o corpus.
As epístolas paulinas relacionam-se com o «nascimento»
do cristianismo enquanto movimento sócio-cultural e religioso.
Como fontes históricas, as cartas de Paulo são autênticos
documentos, com destinatários reais, nos quais se reflectem
as vicissitudes do surgimento dos grupos e instituições
que deram corpo ao cristianismo nos primeiros séculos da sua
existência. Note-se aliás que Paulo de Tarso foi um dos
protagonistas de todo esse processo, que podemos classificar como
o da geração formativa do movimento cristão.
Como conclui T. L. Donaldson, Paulo e os seus escritos representam
uma «janela de inestimável valor para o cristianismo
emergente». E se levarmos em conta a influência dos escritos
paulinos na formação da cultura ocidental como um todo,
então ficamos com uma percepção ainda mais clara
da amplitude da importância histórica de Paulo de Tarso.
A título de exemplo, salientamos o facto de o pensamento e
os discursos paulinos, independentemente de concordarmos ou não
com a forma como foram, e são, retoricamente usados, terem
sido evocados em contexto de problemáticas sociais e políticas
relevantes para a sociedade ocidental, de que são exemplos
o tratamento dos Judeus e do judaísmo, a instituição
da escravatura nos séculos XVIII e XIX, a colonização
de África e do Extremo Oriente – onde a actividade missionária
cristã foi particularmente significativa –, as estruturas
e práticas de tipo patriarcal e a exclusão das mulheres
da participação efectiva das mais variadas circunstâncias
sociais e políticas, as atitudes intolerantes para com as questões
da orientação sexual, além de temáticas
estritamente teológicas, como os problemas do «pecado»,
da «culpa» e da «morte», centrais, por exemplo,
nas diferenças estabelecidas entre as correntes católica
e protestantes do cristianismo.
Juntamente com os Actos dos Apóstolos, as cartas paulinas
remetem os investigadores para uma necessária reconstituição,
contextualização e interpretação históricas,
trazendo à colação as várias problemáticas
em causa. Com efeito, mais do que pelas várias facções
judaicas no activo durante o século I d. C., o enquadramento
coevo pauta-se pelo domínio greco-romano, tanto ao nível
político-institucional, como ao nível estritamente cultural
– literário, filosófico, religioso, material,
científico – e mental. A propósito, podemos citar
o elucidativo exemplo evocado por T. L. Donaldson. Segundo este exegeta,
o leitor moderno dificilmente compreenderá na plenitude o passo
citado em Gl 3,1 («Oh Gálatas insensatos! Quem
vos enfeitiçou, a vós, a cujos olhos foi exposto Jesus
Cristo crucificado?»), se não levar em conta o facto
de a magia ser, naquele contexto, um assunto na ordem do dia e pleno
de sentido objectivo, que iria muito além da simples metáfora.
Se os Actos dos Apóstolos proporcionam essencialmente
informação de natureza biográfica – acerca
dos vários episódios vividos pelo apóstolo, dos
itinerários e do ministério de Paulo de Tarso –,
as cartas são fontes privilegiadas para conhecer o pensamento
teológico, filosófico e até sócio-político
do homem. Mas, como qualquer fonte histórica, estes documentos
não estão isentos de crítica, havendo que submetê-los
à dura avaliação da hermenêutica. Esse
deve ser o meio privilegiado para compreendermos a profunda crítica
e constestação dos «partidos» judaicos do
seu tempo, assim como a adopção, senão mesmo
construção, do pensamento que culminará na teologia
cristã. Ao mesmo tempo, reconhecemos no teorizador as categorias
e formas do pensamento grego, nomeadamente ao nível do uso
da retórica, assim como os vestígios das estruturas
institucionais que o Império Romano lhe proporcionou e de que
ele de forma tão inteligente se serviu.
Refira-se, aliás, que a biografia de Paulo de Tarso é
riquíssima do ponto de vista historiográfico-literário.
Da conversão ou «experiência de Damasco»
– como alguns autores hoje lhe chamam – ao topos
do naufrágio; da vivência e rejeição do
judaísmo à itinerância proselitista; da prisão
e outras provações à condenação,
o percurso biográfico do apóstolo não só
segue pari passu o de Cristo – levando mesmo à
conclusão de que estamos perante uma mimese biográfica
que pretende colocar o Tarsense em referência directa com o
Nazareno – como se apresenta com uma vitalidade própria
de qualquer herói da Antiguidade.
O Vaticano designou o período de 28 de Junho de 2008 a 29 de
Junho de 2009 como «Ano Paulino». No âmbito dessas
comemorações, três Centros de investigação
– o de História e o de Estudos Clássicos da Universidade
de Lisboa e o de Estudos Clássicos e Humanísticos da
Universidade de Coimbra, a que se associou ainda a colaboração
do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade
Católica Portuguesa – decidiram reconhecer e relembrar
a importância histórica e cultural da personalidade de
Paulo de Tarso, atribuindo-lhe os epítetos de «Grego
e Romano, Judeu e Cristão», reivindicando para o Apóstolo
das Nações categorias que o definem como síntese
e desse modo o tomam como um homem do seu tempo. Para concretizar
esta reflexão, as unidades de investigação científica
mencionadas decidiram avançar com o debate feito nos planos
histórico, filológico, arqueológico, filosófico,
e até mesmo teológico, dando-lhe forma através
da investigação que originou uma série de estudos,
cujo principal objectivo é contextualizar a figura e a obra
de Paulo de Tarso. Para isso, os centros universitários referidos
«convocaram» um grupo de investigadores nacionais, que
aceitaram o desafio e avançaram com problemáticas que
contribuíram para a discussão em torno do valor e importância
do Apóstolo das Nações nos fundamentos da Cultura
Ocidental.
É o conjunto das propostas então apresentadas que reunimos
neste volume. Os textos que o integram podem ser agrupados em três
grandes blocos: os que tratam de questões biográficas
e de contexto sócio-cultural do tempo de Paulo de Tarso; os
que abordam problemáticas do pensamento teológico-filosófico
do apóstolo; e os que estudam a problemática da tradição,
influência e recepção de Paulo nas mais variadas
expressões culturais e épocas, da Antiguidade à
Contemporaneidade. Assim, no primeiro bloco incluímos as investigações
de Rodrigo Furtado (Paulo de Tarso: em torno da origem),
Abel N. Pena (De Tarso na Cilícia à Roma Imperial.
A educação de Saulo), Maria do Céu Fialho
(Paulo no caminho de Damasco), José A. Ramos (Paulo
de Tarso: a conversão como acto hermenêutico), Nuno
Simões Rodrigues («Eis Spanian». Paulo de Tarso
na Hispânia), Amílcar Guerra (A Lusitânia
no tempo de Paulo de Tarso: tópicos do mundo provincial em
fase pós-tiberiana) e Delfim F. Leão (Paulo
de Tarso e a justiça dos homens. Helenismo e impiedade religiosa
nos «Actos dos Apóstolos»). Ao segundo grupo
pertencem os trabalhos de Paula Barata Dias (Paulo e a controvérsia
dos alimentos permitidos aos cristãos: a mesa entre dois mundos),
Maria Ana Valdez (A caminho da Nova «Aeon»: tolerar
ou aturar? O que teria Paulo em mente?) e Ana Paula Goulart (Moisés
e Paulo em busca de um povo). O terceiro e último conjunto
de textos é constituído pelas reflexões e conclusões
de Paulo Sérgio Ferreira (Séneca e Paulo de Tarso:
conjecturas em torno de uma correspondência incerta), Cláudia
Teixeira (Os Actos apócrifos de Paulo e Tecla: aspectos
da sua recepção e interpretação),
Cristina Sobral («In uirtute signorum»: Paulo de Tarso
na hagiografia medieval), Luís U. Afonso (São
Paulo na Arte portuguesa da Idade Média), Arnaldo do Espírito
Santo (O Apóstolo na obra de Vieira) e António
Cândido Franco (Paulo de Tarso e Teixeira de Pascoaes).
Com a sua publicação, as reflexões então
apresentadas pelo grupo de investigadores ficam acessíveis
a todo o público. Os organizadores do volume, que coordenaram
os trabalhos, esperam assim fazer justiça ao Apóstolo,
ao que ele significa para a nossa cultura e ainda ao facto de ter
sido um pensador com o objectivo de intervir no seu mundo e no seu
tempo, mas que não se ficou por aí. Longe disso. Recordando
as suas próprias palavras:
Os coordenadores
José Augusto Ramos
Maria Cristina de Sousa Pimentel
Maria do Céu Fialho
Nuno Simões Rodrigues
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Fonte: https://dspace.uevora.pt/rdpc/bitstream/10174/7001/1/s.paulo.pdf