Impregnado das ideias de progresso e
evolução, características do período em
que viveu, Kardec afirmava que Deus criara o mundo com dois elementos:
espírito e matéria, ambos regidos por uma lei natural
que os empurrava em direção ao progresso. Originalmente
simples e ignorantes, os espíritos evoluíam, através
de seu esforço e trabalho, no sentido de um aperfeiçoamento.
Seleção natural e competitividade na evolução
dos espíritos? Não. Mas eles eram, sim, diferentes. Podiam
ser “imperfeitos, bons e, no alto da escala, puros”. Os
planetas também evoluíam, passando de mundos imperfeitos
a regenerados e bons. E sua evolução se integrava à
dos espíritos. Não por acaso, espiritismo, evolucionismo
e socialismo utópico eram ideias que se hidratavam mutuamente.
Pierre Leroux, socialista francês, afirmava, por exemplo, que
as diversidades sociais eram explicadas pelo desenvolvimento humano
realizado através da existência. No fundo, a caminhada
para um mundo mais justo e fraterno estava na ordem do dia aqui ou no
além. E os veículos para chegar lá seriam a evolução
moral, a educação e a caridade.
Não eram somente os franceses que teriam influenciado os espíritas
brasileiros. No mundo anglo-saxão, muita coisa acontecia com
reflexos ao sul do continente. Tal como no Brasil, onde a doutrina floresceu
entre católicos, lá ela crescia entre protestantes. A
Guerra Civil americana funcionou como um rastilho de pólvora:
famílias que viam seus filhos partir e que, através de
fotos da imprensa, constatavam que eles haviam morrido de forma atroz,
queriam se comunicar com seus entes queridos.
Na própria Casa Branca, a mulher do então presidente Abraham
Lincoln, Mary Abbot, chorava o filho falecido no campo de batalha em
sessões assistidas pelo marido. Juntou-se a isso a luta de socialistas
e cooperativistas ingleses, como o líder Robert Owen, recentemente
convertido. Nos primórdios do socialismo, confiava-se num novo
princípio de organização social que incluía
a regeneração de tipo religioso. Todos acreditavam na
evolução dos seres humanos e dos sistemas econômicos
e políticos rumo a um mundo mais justo e melhor. Foi essa a época
das grandes rebeliões operárias sobre as quais o espiritismo
tinha um efeito moralizante e era apresentado como um antídoto
às paixões revolucionárias.
Kardec socialista? Não exatamente. A leitura de Fourier, o grande
defensor do cooperativismo, não faria dele um homem de esquerda.
Mas sim alguém profundamente interessado em reformas de educação
ou que sugeria, em lugar de tribunais de justiça, instâncias
que “encorajassem o bem”. Em ambos os lados do Atlântico
Norte, o espiritismo se associou à luta pelo divórcio,
pelo fim da escravidão e da pena de morte e pelos direitos da
mulher – “a inteligência não tem sexo”,
dizia Kardec.
Depois de proclamada a República, o espiritismo consolidou uma
doutrina de caridade e auxílio aos pobres, substituindo a filantropia
das elites católicas. Em 1880, no Nordeste, já circulavam
folhas como a Revista Mensal, de postura profundamente anticlerical,
enquanto o militar Manuel Vianna de Carvalho, maçom e espírita,
convocava para debates sobre um socialismo harmônico e pacífico.
No Sul, em Curitiba, o maçom Dario Vellozo fundou uma “Igreja
Pitagórica”, com mensagens éticas e discursos cosmológicos
pregando uma aliança entre Ocidente e Oriente e misturando teosofia,
kardecismo e ocultismo. E, no Rio Grande do Sul, nascia o evidentismo,
doutrina instituída por um libanês, Abílio de Nequete,
que unia elementos cristãos, kardecistas, bolcheviques e tecnocratas.
Muitos militantes do movimento operário gaúcho eram espíritas.
Em São Paulo, o anarquista Edgard Leuenroth juntou-se ao maçom
Benjamim Mota para fundar a Folha do Povo: “tribuna de
livre discussão, para uma investigação sincera
da verdade [...] eco às aspirações de nosso tempo”.
Já O Livre Pensador, jornal dirigido por Everardo Dias,
maçom, anarquista e espiritualista, se concentrava em defender
o espiritualismo e doutrinas afins. Com o jornal A Lanterna, Mota
foi mais fundo e atacava sem dó a Igreja Católica, por
sua hipocrisia e exploração da ignorância.
A confissão? Absurda e perigosa. Os jesuítas? Associados
à Inquisição, eram sinônimo de atraso máximo.
Só a educação salvaria, somada à moralidade
pública, ao trabalho e à ética de igualdade. Também
na capital paulista, fundavam-se lojas esotéricas e centros espiritualistas
que mantinham contato com correspondentes estrangeiros para o estudo
do magnetismo, ocultismo, psiquismo e espiritismo. Butiques importavam
livros, manuais e objetos mágicos, bem como divulgavam conhecimentos
de astrologia e clarividência.
À medida que o século XIX estertorava, as escolas de Direito
e Engenharia formavam profissionais que tinham para o país projetos
sociais em que não mais cabia a influência da Igreja. Ao
defender a separação oficial entre Estado e Igreja, a
Constituição de 1891 abriu espaço para ataques
a Roma e à propalada “infalibilidade papal”.
Deu-se um caldo: tanto o fantástico na literatura quanto as tendências
baseadas no kardecismo, no espiritualismo, no socialismo, no anarquismo,
na maçonaria, no racionalismo e no positivismo buscavam redefinir
o mundo. Procuravam ir em busca do novo. Ao imaginário “católico”,
rural e monarquista, opunham-se ideias que remetiam ao urbano, à
República, ao futuro e ao progresso. Combinação
de razão e de paixão, de sonho e realidade, de ciência
e crenças, de esperanças e medos, de maravilhas e técnicas,
elas, as novas ideias, hidrataram o novo século junto com a Belle
Époque.
Mary del Priore
baseado em “Do Outro Lado – a História do Sobrenatural
e do Espiritismo”.

Kardec estava longe de ser um socialista, mas acreditava
na evolução da Humanidade.
Fonte:
http://historiahoje.com/?p=4388
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