As crianças brasileiras estão
em toda parte. Nas ruas, à saída das escolas, nas praças,
nas praias. Sabemos que seu destino é variado. Há aquelas
que estudam, as que trabalham, as que cheiram cola, as que brincam,
as que roubam. Há aquelas que são amadas e outras, simplesmente
usadas. Seus rostinhos mulatos, negros, mestiços enfim, desfilam
na televisão, nos anúncios da mídia, nos rótulos
dos mais variados gêneros de consumo. Não é a toa
que o comércio e a indústria de produtos infantis vêm
aumentando progressivamente sua participação na economia
nacional, assim como a educação primária tanto
quanto o combate a mortalidade infantil são permanentes temas
da política nacional. O bem estar e o aprimoramento das relações
pais e filhos são assunto constante de psicólogos, sociólogos,
psicanalistas, enfim, de especialistas que além de trazer uma
contribuição inédita para a melhor inserção
da criança na sociedade, reproduzem seus conhecimentos em revistas
e teses, propondo uma nova ética para a infância.
No mundo atual, essas mesmas crianças passaram de reis a ditadores.
Muitas de suas atitudes parecem-nos incompreensíveis. Quase hostis.
Uma angústia sincera transborda das interrogações
que muitos de nos se faz sobre o que seja a infância ou a adolescência.
E como se as tradicionais cadeias de socialização tivessem,
hoje, se rompido. Socialização na qual os laços
de obediência, de respeito e de dependência do mundo adulto,
acabaram sendo trocadas por uma barulhenta autonomia. Influência
da televisão? Falta de autoridade dos pais? Pobreza e exclusão
social de uma imensa parcela de brasileiros? Mais. E se tudo isso secretasse,
nas margens da sociedade, uma brutal delinquência juvenil, ou,
mesmo se entre as famílias mais equilibradas nas quais a presença
dos pais e o excesso de amor substituem a educação, gerando
um profundo mal estar feito de incompreensão e brigas?
Ora essa quase onipresença infantil nos obriga, pois, a algumas
questões. Terá sido sempre assim ? O lugar da criança
negra na sociedade brasileira terá sido sempre o mesmo ? Como
terá ela passado do anonimato para a condição de
cidadão, com direitos e deveres aparentemente reconhecidos ?
Numa sociedade desigual e vincada por transformações culturais,
teremos, ao longo dos tempos, recepcionado nossas crianças da
mesma forma ? Sempre choramos, do mesmo jeito, a sua perda? Que marcas
trazem as crianças de hoje, daquelas que as antecederam no passado?
Mas há, também, questões mais contundentes tais
como, por que somos insensíveis às crianças negras
que mendigam nos sinais? Por que as altas taxas de mortalidade infantil
pouco nos interessam? Essas respostas, entre tantas outras, só
a historia pode dar. Não será a primeira vez que o saudável
exercício de «olhar para traz» irá ajudar
a iluminar os caminhos que agora percorremos, entendendo melhor o porquê
de certas escolhas feitas por nossa sociedade.
No final do século passado, o trabalho infantil continuava sendo
visto pelas camadas subalternas, como “a melhor escola”.
Pais pobres, com renda inferior a meio salário mínimo,
exigem que seus filhos trabalhem para incrementar os rendimentos do
grupo familiar. “O trabalho – explica uma mãe pobre
– é uma distração para a criança.
Se não estiverem trabalhando vão inventar moda, fazer
o que não presta. A criança deve trabalhar cedo”.
E pior, hoje, afogados pelo trabalho, quase 60% desses pequenos trabalhadores,
no Nordeste, são analfabetos e entre eles a taxa de evasão
escolar chega à 24%; no sul do pais o cenário não
é muito diferente. Trabalhando em lavouras domésticas
ou na monocultura, as crianças interrompem seus estudos na época
da colheita, demonstrando que estar inscrito numa escola primaria, não
significa poder frequentá-la plenamente. Assim, o trabalho, como
forma de complementação salarial para famílias
pobres ou miseráveis, sempre foi priorizado em detrimento da
formação escolar. Neste quadro, a criança negra
e analfabeta, tornava-se uma espécie de testemunha muda, silenciosa,
de seu tempo.
Como contar a história da criança negra no Brasil? As
lições devem começar em casa: mestre Gilberto Freyre,
em 1921, manifestava seu desejo de “escrever uma história
do menino- da sua vida, dos seus brinquedos, dos seus vícios
– brasileiro, desde os tempos coloniais até hoje. Já
comecei a tomar notas na biblioteca de Oliveira Lima, – anotava,
ele - nos cronistas coloniais, nos viajantes, nas cartas dos jesuítas.
Sobre meninos de engenho, meninos do interior, da cidade. Os órfãos
dos colégios dos jesuítas. Os alunos dos padres. Os meninos
mestiços. De crias da casa grande. De afilhados de senhores de
engenhos, de vigários, de homens ricos, educados como se fossem
filhos por esses senhores. É um grande assunto. E creio que só
por uma história deste tipo – história sociológica,
psicológica, antropológica e não cronológica
– será possível chegar-se à uma ideia sobre
a personalidade do brasileiro. É o menino que revela o homem”.
Ora, o historiadores brasileiros têm que partir de constatações
bem concretas, tiradas, na maior parte das vezes, das fontes documentais
com as quais trabalham e da sua observação crítica
da realidade para contar sua própria história.
Resgatar o passado significa, primeiramente, dar voz aos documentos
históricos, perquirindo-os nas suas menores marcas, exumando-os
nas suas informações mais concretas ou mais modestas,
iluminando as lembranças mais apagadas. E pela voz de médicos,
professores, padres, educadores, legisladores que obtemos Informações
sobre a infância, no passado; essa fala obriga, contudo, o historiador
a uma crítica e a uma interpretação de como o adulto
retrata o estereotipo da criança ideal, aquela saudável,
obediente, sem vícios, a criança que é uma promessa
de virtudes.
Mas face a essas vozes adultas é preciso colocar-se algumas questões:
será que, numa sociedade historicamente pobre e vincada tanto
pela mestiçagem quanto pela mobilidade social, conseguimos construir
tal modelo de criança? Médicos e legisladores do inicio
do século acreditavam que sim. Eis porque acabaram por criar,
a fim de transformá-la, instituições de confinamento
onde ao invés de encontrar mecanismos de integração,
a criança “não ideal”, achou os estigmas definitivos
de sua exclusão. Ela passou de “menor da rua” para
“menor de rua” com todas as consequências nefastas
implícitas nesse rótulo. Se no passado, esse sinal de
Caim significou sofrimentos de todos os tipos de perseguição
policial, elas reagem, hoje, pela afirmação cada vez maior
a sua exclusão.
Outro problema para o estudioso da historia da criança negra:
para cruzar com tais representações teríamos restos
do que foi a infância no passado? Será que o clima dos
trópicos deixou sobreviver os restos materiais destas pequenas
vidas, tais como berços, brinquedos, roupas, ou essas ausências
apenas confirmam o quão fugaz é a passagem entre o tempo
da infância e aquele do mundo adulto? Diferentemente de europeus
ou americanos cujas culturas produziram, desde as épocas mais
tardias, imagens, objetos e representações que nos contam
sobre a infância, no Brasil temos que estar alertas a outro tipo
de fonte para responder a essas questões. São, todavia
sensíveis memorialistas como Pedro Nava, capazes de fazer reviver
em seus textos, as cores, sons e cheiros do passado, que sugerem ao
historiador um programa de pesquisas capaz de orientá-lo na busca
do que tenha sido, para muitas crianças anônimas, ser simplesmente
criança num país marcado por diferenças raciais
e diferenças de condição social, mas vincado, igualmente,
por uma identidade dada pela pobreza material que atingia ricos e pobres,
escravos e livres. Ouçamos o que ele nos diz:
«O fumo e a bosta de cavalo
postos na ferida umbilical foram os mesmos para todos; os que escaparam
e os que morreram do mal de sete dias. A boneca de pano velho e marmelada
foi chupada por todos os meninos de Minas. Conhecidos ou não
(…) íntimos ou sem costume, uns com os outros –
somos queijo do mesmo leite, milho da mesma espiga, fubá da
mesma saca. Todos usamos o mesmo cagadoiro pênsil sobre o chiqueiro
onde os porcos roncam (..) Os mesmos oratórios de três
faces com o calvário encima e o presépio em baixo. Os
mesmos registros de santos enchendo as paredes para impedir os mesmos
demônios e os mesmos avante nas das noites de Minas. (…)
Eram amigos como irmãos.. ».
Assim, os cuidados com o corpo, a alimentação,
o brinquedo, as formas de religiosidade, os laços familiares
se constituem em grandes linhas de pesquisa que atravessariam, de um
lado a outro, a sociedade brasileira, guardadas, certamente, as proporções
e as especificidades dos diferentes grupos raciais, sociais e regionais.
Através de temas presentes na memória e na recordação,
associados à coleta de documentos capazes de nos aproximar da
vida da criança no passado, podemos tentar reconstituir o seu
quotidiano. Da técnica de pré-digestão de alimentos,
embebidos na saliva dos adultos, à tradição da
culinária africana, do pirão de leite com farinha seca
e açúcar bruto; das brincadeiras entre os pés de
cana e de café, à chupar fruta sob as árvores;
do simbolismo dos ritos de batismo, primeiro entre escravos e livres,
aos atuais “ungimentos” ou batismos em casa; também
de outros simbolismos, aqueles em torno dos enterros: os nas biqueiras
da casa, para criança pagã ou o cortejo dos anjos carregando
pequenos caixões ataviados de papel prateado até as fotografias
dos mortos nos colos de sua mães; dos banhos de rio, em Recife,
aos banhos de mar, no Rio de Janeiro; de um mundo entrelaçado
ao dos adultos e aos familiares, onde desfilavam os rostos dos avos,
de tios e primos, de vizinhos e onde o levar e trazer recados, bem como
a conversa eram nas recordações de um memorialista, “imprescindíveis
como a água, a farinha e o amor”.
Por fim, parece-nos evidente que querer conhecer mais sobre a trajetória
histórica dos comportamentos, das formas de ser e de pensar em
relação às nossas crianças negras, é
também uma forma de amá-las, todas e indistintamente,
melhor.
Fotografia de Marc Ferrez, Instituto Moreira Sales

“O jantar numa casa brasileira”, de
Debret.
Fonte:
http://historiahoje.com/?p=4352
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