Elias I. Moraes
> O Espiritismo e a "Ideologia de Gênero"

As redes sociais têm repercutido fortemente a discussão
sobre se a Escola deve ou não incluir na sua pauta as conclusões
a que têm chegado nesses últimos 50 anos a Psicologia,
a Sociologia e a Antropologia a respeito do conceito de Identidade
de Gênero. Na visão de muitos Pedagogos, trabalhar
desde a infância o entendimento de que os conceitos de homem
e de mulher são uma construção social, e
que a sociedade deve reconhecer a existência de outras orientações
de gênero, pode evitar o preconceito, a homofobia e a violência
contra mulheres e minorias não heterossexuais.
Essa proposta foi fortemente rechaçada pela bancada Evangélica
no Congresso Nacional, que não pretende reconhecer a diversidade
sexual como parte da natureza humana e nem a igualdade da mulher,
tida biblicamente como inferior. Assim é que foi criado
o termo pejorativo e sem cunho científico de “Ideologia
de Gênero”, utilizado de maneira irônica e sob
a forma de deboche, visando denegrir a imagem desse movimento
do mundo da Ciência. Afirmam existir por trás disso
uma tentativa de erotização das crianças
e de destruição do conceito de família -
a família tradicional, no caso -, associando essas discussões
a questões políticas e ideológicas atualmente
em pauta.
Como argumentos são apresentados recortes de trechos do
Guia Escolar publicado pelo MEC totalmente distorcidos,
fora do seu contexto. De outras vezes, vídeos com afirmações
pseudo-científicas ou baseadas em abordagens tendenciosas,
distanciadas de qualquer preocupação espiritual
com os graves problemas sociais envolvidos na questão,
sobretudo despreocupados com a violência de gênero,
que tem causado sofrimento e mortes a tantas pessoas e famílias.
É óbvio que não vamos encontrar referências
específicas a respeito deste assunto nas obras básicas
da Doutrina Espírita, até porque se trata de fenômenos
sociais que só recentemente têm recebido a atenção
do meio científico. Entretanto, é importante considerar
que as religiões dominantes possuem posições
claramente definidas nesse sentido desde alguns séculos.
E, infelizmente, posições extremamente preconceituosas,
sem nenhuma sintonia com a proposta do Espiritismo e com o pensamento
de Jesus.
Como ponto de partida é importante considerar que não
existe fundamento espírita que valide qualquer tipo de
discriminação das pessoas sob qualquer pretexto,
especialmente com base na sua orientação sexual,
seja ela qual for. Ao contrário, temos plena consciência
de que um mesmo espírito pode renascer tanto em corpo masculino
quanto feminino, de acordo com as suas necessidades de aprendizado,
e de que não faz sentido atribuir maior relevância
à questão sexual do que à capacidade que
a pessoa apresenta de “amar a Deus acima de todas as coisas
e ao próximo como a si mesmo”.
Recentemente o palestrante espírita Haroldo Dutra, em entrevista
concedida ao portal Estudo Espírita em Ação,
questionado a respeito do assunto, manifestou o seu entendimento
de que “essa questão demanda reflexões de
múltiplos níveis” devido à complexidade
envolvida. No seu entendimento, primeiramente é preciso
“tomar cuidado para criar um problema que não existe”,
já que algumas pessoas reencarnam sem problemas de gênero.
E explicou: “se eu estabeleço uma regra geral querendo
uniformizar, eu acabo trazendo uma confusão onde ela inexiste”.
Cabe, a princípio, reconhecer a relevante contribuição
prestada pelo palestrante ao movimento espírita, bem como
o seu sólido conhecimento doutrinário. Mas nem por
isso se pode cobrar dele conhecimentos específicos da área
da Sociologia ou da Pedagogia, ou que ele tenha conhecimento do
teor da proposta que pretende tratar da questão de gênero
nas escolas e dos seus objetivos. Nesse sentido, convém
esclarecer que o projeto não pretende “uniformizar”
e nem promover qualquer tipo de “confusão”.
Ao contrário, o que se pretende é refletir sobre
o fato de que cada pessoa é um ser diferente e, promovendo
o respeito a essa diversidade, fazer face à cultura de
violência de gênero, ou seja, aquela que é
exercida contra mulheres, gays e transsexuais, sem nenhum outro
motivo que não seja o fato de pertencerem a esse gênero.
Depreende-se, da fala do palestrante, que ele entende que o problema
“inexiste” do ponto de vista da criança que
“está com o gênero muito bem definido”.
Esquece-se, no entanto, de que há pessoas e famílias
sofrendo discriminação, preconceito e violência
por parte exatamente dessas crianças que estão com
o gênero “muito bem definido”, o que faz do
Brasil um dos cinco países com maior quantidade de ocorrências
de violência de gênero no mundo.
Há outros palestrantes espíritas que, em abordando
também o assunto, fizeram coro à preocupação
manifestada por críticos da proposta no sentido de que
discutir gênero na escola poderia gerar “confusão”
na mente das crianças. Não é o que as pesquisas
demonstram. Ao que tudo indica, esse receio deve-se muito mais
ao preconceito do que a qualquer dado concreto obtido por meio
de pesquisas sérias sobre o assunto.
Estudos envolvendo filhos de casais homoafetivos mediante adoção,
ou filhos de casais heteroafetivos quando um dos pares assume
posteriormente a sua condição de homoafetividade,
dentre outros, já fornecem elementos suficientes para se
concluir que esse receio é infundado. Não se observa
nessas crianças nenhum tipo de conflito que possa ser atribuído
a essa causa específica e nem há qualquer evidência
de que discutir gênero possa influenciar uma pessoa na direção
de um comportamento sexual diferente daquele que traduz sua experiência
espiritual recente.
Ao contrário, existem diversos estudos que apontam graves
prejuízos pessoais e coletivos de uma educação
heteronormativa, como é a atualmente oferecida, pelo simples
fato de que ela reproduz e mantêm a cultura de preconceito
de gênero, alimentando o quadro de violência observado
contra a mulher e contra a comunidade LGBTT. [1]
Um dos prejuízos, que não
pode ser ignorado, afeta especialmente os alunos LGBTT que, de
fato, são a minoria. Trata-se do baixo aproveitamento escolar
nas fases do ensino fundamental, devido às constantes ações
de bulliyng, a alta evasão escolar e o elevado
índice de tentativas de suicídio no ensino médio
em decorrência da violência com que são agredidos
todos os dias no ambiente da escola, nas ruas e no próprio
ambiente familiar. Como decorrência desse aprendizado prejudicado,
grande número de pessoas LGBTT é condenada a uma
situação de sub-emprego e até mesmo de prostituição
como meio de sobrevivência, já que muitos são
expulsos do ambiente familiar por falta de uma compreensão
adequada da sua condição por parte da sua própria
família.
O palestrante Haroldo Dutra, fazendo uma analogia com o adágio
popular, entende que não se deve mexer “em time que
está ganhando”. Este, em particular, é um
argumento complicado, porque dá a impressão de que
há times em jogo e que um deles está ganhando. Qual
seria, então, o “time” que está ganhando?
O dos heterossexuais? E o que é “ganhar” e
“perder” nessa equação de sofrimento
e de morte? O fato de pertencer ao grupo opressor pode ser entendido
como estar “ganhando”? Nesse jogo de sofrimento e
morte podemos aceitar com naturalidade a existência de “perdedores”?
Pelo contrário, é exatamente sobre esse grupo, ou
seja, sobre o “time que está ganhando”, que
se propõe sejam realizadas as campanhas de esclarecimento
a respeito da educação de gênero, para que
eles não venham a se constituir, em futuro breve, em opressores
de uma população em condições de minoria,
comprometendo-se diante das Leis Divinas.
Por fim, há ainda um argumento bastante presente na fala
de diversos palestrantes, que é o de que “o papel
da educação sexual compete à família
no ambiente do lar”.
Será que os defensores dessa proposta acreditam mesmo que
todas as famílias da atualidade estão preparadas
para orientarem seus filhos em relação à
sexualidade, à homofobia e temas relacionados? Será
que eles têm conhecimento de que o principal ambiente em
que ocorrem abuso e violência contra a mulher e contra homossexuais
é o da própria família? Em uma sociedade
onde mulheres e homossexuais estão sendo agredidos e mortos
todos os dias, inclusive pelos seus próprios pais, deve-se
reservar à família, com exclusividade, o papel da
educação?
Ou, por outro ângulo, devem os professores e a Escola permanecerem
em silêncio quando 13 mulheres e pelo menos 1 homossexual
são assassinados a cada dia no Brasil? Sem contar os inúmeros
casos de violência não letal como agressões
físicas, estupros, inclusive estupro conjugal, abortos
forçados, e o próprio assédio sexual, que
tem sido banalizado como se fosse um “direito do homem”
sobre as mulheres?
E o que as obras básicas da Doutrina Espírita dizem
a esse respeito?
Embora a Escola propriamente dita não tenha sido objeto
da atenção de Kardec, os espíritos afirmam
que “só a educação poderá reformar
os homens”. Para eles a sociedade tem uma parte de responsabilidade
nos problemas sociais, e tem o dever de “velar pela educação
moral de seus membros”. Na sua perspectiva, a melhoria das
condições sociais de vida no nosso planeta depende,
sobretudo, da educação.[2]
Não nos referimos, porém,
à educação moral pelos livros e sim à
que consiste na arte de formar os caracteres, à que incute
hábitos, porquanto a educação é
o conjunto dos hábitos adquiridos. Considerando-se a
aluvião de indivíduos que todos os dias são
lançados na torrente da população, sem
princípios, sem freio e entregues a seus próprios
instintos, serão de espantar as consequências desastrosas
que daí decorrem?[3]
Na condição
de ex-aluno da escola de Pestalozzi e de professor devotado, Kardec
vê com muita clareza o papel da educação na
transformação da sociedade. Para ele,
O egoísmo,
verme roedor, continua a ser a chaga social. É um mal
real, que se alastra por todo o mundo e do qual cada homem é
mais ou menos vítima. Cumpre, pois, combatê-lo,
como se combate uma enfermidade epidêmica. Para isso deve-se
proceder como procedem os médicos: ir à origem
do mal. Procurem-se em todas as partes do organismo social,
da família aos povos, da choupana ao palácio,
todas as causas, todas as influências que, ostensiva ou
ocultamente, excitam, alimentam e desenvolvem o sentimento do
egoísmo. Conhecidas as causas, o remédio se apresentará
por si mesmo. Só restará então destruí-las,
senão totalmente, de uma só vez, ao menos parcialmente,
e o veneno pouco a pouco será eliminado. Poderá
ser longa a cura, porque numerosas são as causas, mas
não é impossível. Contudo ela só
se obterá se o mal for atacado em sua raiz, isto é,
pela educação. Não por essa educação
que tende a fazer homens instruídos, mas pela que tende
a fazer homens de bem. A educação, convenientemente
entendida, constitui a chave do progresso moral.[4]
Para que
o progresso social aconteça e se instale na Terra um ambiente
que tenha como base os princípios de “Liberdade,
Igualdade e Fraternidade”, é preciso eliminar “das
leis, das instituições, das religiões, da
educação até os últimos vestígios
dos tempos de barbárie”. [5]
É preciso que todos compreendamos, como o próprio
Haroldo Dutra observa, que “cada ser é um mundo à
parte”, e que deve ser respeitado na sua condição.
E isso só será possível pela Educação.
Portanto, uma postura espírita condizente com a proposta
dos espíritos e com o Evangelho de Jesus não pode
limitar-se simplesmente a uma posição ideologizada
da questão de gênero, manifestando-se contra ou a
favor de tal ou tal proposta apenas por ela estar ligada a este
ou aquele partido, a esta ou aquela “ideologia”. É
preciso analisar cuidadosamente a questão sob todos os
seus aspectos, em especial sobre aqueles que se referem à
dor humana que precisa ser conhecida, compreendida e aplacada.
E isso é responsabilidade de todos nós.
________________________________________
[1] Vide o estudo Produção científica
sobre adoção por casais homossexuais no contexto brasileiro,
que consolida as principais publicações a esse respeito,
na revista Estudos de Psicologia, vol. 18 nº 3, Natal, Jul/Set
2013.
[2] Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões
796, 815, 872, 914. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[3] Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão
685. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[4] Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão
917. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[5] Kardec, Allan. Obras Póstumas, pag. 287. Ed. FEB, Rio
de Janeiro/RJ, 2005.
Fonte: http://espiritismo-fronteiras.blogspot.com.br/2017/10/o-espiritismo-e-ideologia-de-genero.html
topo
|