Hermínio
C. Miranda
> Judas redimido
A figura histórica e humana de
Judas Iscariotes sempre exerceu grande fascinação sobre
meu espírito. Se bem que, aqui e acolá, se encontre na
literatura espírita referências ao infeliz Apóstolo,
muito pouco se conhece de seu posterior desenvolvimento espiritual.
Sabemos, certamente, por meio de revelações esparsas,
que Judas, condicionado como qualquer um de nós à sábia
e inflexível lei cármica, aqui voltou muitas vezes para
purgar suas falhas no sofrimento redentor. Estamos certos, também,
de que o Cristo não o abandonou à sua própria sorte,
nem pretendeu deixar que a pobre criatura, vítima de sua fraqueza,
ficasse mergulhada na amargura sem remissão do sofrimento eterno.
Neste, como em tantos outros pontos, a Doutrina que os Espíritos
nos ensinaram é muito mais humana e racional que as que aí
estão, miudamente trabalhadas pelos encarnados. É muito
mais reconfortante, e infinitamente mais de acordo com a moral cristã,
sabermos que o Espírito do Iscariotes, depurado de suas imperfeições,
evoluído moral e espiritualmente, está hoje entre os mais
chegados colaboradores do Senhor, do que imaginá-lo como trágica
ruína humana, batida pela miséria eterna.
Não seria Jesus, o gênio supremo da bondade e do amor,
que deixaria seu antigo discípulo perder-se nas estradas agrestes
da eterna agonia. Se nenhuma das ovelhas que o Pai lhe confiou se perderá,
como poderia perder-se justamente uma daqueles que o acompanhou pelas
rotas poeirentas da Terra Santa, que o ajudou, por algum tempo, a espalhar
aos quatro ventos sua mensagem de amor e humildade, que, bem ou mal,
sonhou com o Mestre os mesmos sonhos de universal fraternidade? Como
poderia Jesus condenar o antigo companheiro que, num momento de fraqueza
e invigilância, se deixou levar por enganadoras ilusões?
E, afinal de contas, se Jesus lhe perdoou e o ajudou a recuperar-se
para a glória espiritual, quem somos nós, imperfeitíssimas
criaturas, para arrastar na lama a figura do pobre irmão que
fraquejou? Tal como diria o Mestre: aquele que não tiver culpa
atire a primeira pedra.
Por outro lado, é preciso atentar nas circunstâncias daquele
impensado gesto. Judas não foi o único, nem mesmo o maior
responsável pela dolorosa tragédia da cruz. Foi mero instrumento
de forças enceguecidas pelo ódio irracional. Vencido pela
miragem do poder, com que lhe acenaram os inimigos do Cristo, ele se
prestou ao lamentável e infeliz papel de indicar, à sanha
destruidora dos algozes, aquele que o havia acolhido no círculo
mais íntimo de seus seguidores.
Seu espírito era fraco e imaturo. Sonhava com uma fatia de poder,
e se deixou fascinar. Era tão fraco que, consumado o gesto supremo
da traição, não encontrou em si mesmo forças
morais para enfrentar as consequências dramáticas do arrependimento.
O tremendo remorso que experimentou foi grande demais para as forças
do seu espírito, e, ainda uma vez, sucumbiu, escapando pela porta
falsa do suicídio, numa tentativa última de fugir de si
mesmo.
Mais uma vez se enganou o pobre e desorientado irmão. Libertara-se
do envoltório físico, mas não se libertara de suas
angústias. Muito pelo contrário: era justamente agora,
com a percepção mais aguçada, que de fato sofria
as insuportáveis aflições do remorso. E isso era
o princípio da redenção. Milhares, milhões
de vezes, teria que reviver a cena amarga do beijo portador da morte.
Jamais haveria de esquecer o doce olhar do Profeta divino, ao recebê-lo
como discípulo amigo e não como mensageiro da dor. Como
tudo aquilo continuava vivo nos seus olhos! Sim, porque ainda via, sentia
dores e sufocava e gemia e gritava desesperado. Estranho! Então
não morrera? Como é que a corda ainda lhe apertava a garganta
ressequida e os trinta dinheiros ainda lhe pesavam sobre o coração?
Sentia-se oprimido, miserável, perdido, sozinho, num mundo escuro,
desconhecido e sem limites. Acima daquela solidão opressiva,
pairavam os olhos meigos, puros, sublimes, de Jesus. Só então
pudera compreender toda a extensão insondável da sua falta.
Não nos foi dado ainda acompanhar, nos séculos que se
seguiram, a trajetória espiritual do pobre irmão Judas
Iscariotes. Não obstante, imaginamos quanto sofreu e lutou para
novamente poder fitar, com tranquila humildade e reconhecimento, os
olhos daquele que, certa vez, ajudara a crucificar.
Hoje, o antigo Apóstolo retomou seu lugar entre os seguidores
mais próximos do Cristo. Nas profundezas de seu coração
deve sentir-se amplamente recompensado de todas as dores que sofreu.
Algum dia, talvez permitam as entidades superiores que se revele ao
mundo essa história magnífica, para que, por meio de todo
o seu poder de sugestão, saibam as criaturas que mesmo a falta
mais negra não precipita o Espírito na desgraça
eterna, mas apenas retarda sua evolução para a Pátria
da Luz.
Deus não seria Deus se, pela falta cometida neste átimo
a que chamamos vida, fosse preciso viver uma eternidade de angústias
e sofrimentos. Assim, Deus não criaria almas, frágeis
na sua ignorância, para depois esmagá-las impiedosamente,
com o castigo eterno, pela falta ocasional. Se nos deu o livre-arbítrio,
acrescentou também a possibilidade de reparação,
sem o que não poderíamos jamais alcançar a glória
de poder colaborar em sua obra portentosa.
Já é tempo de trabalhar pela reabilitação
da figura do antigo Iscariotes. É necessário remover de
sua imagem histórica a superada mancha da traição
que pesa sobre sua memória. Ele não foi o primeiro ser
humano a errar nem será o último. Também não
foi o primeiro a resgatar seu erro, pagando até o último
ceitil, como diz a Lei, para retomar a caminhada para o Alto. Ele muito
sofreu para conquistar a sua paz e certamente saberá como ajudar-nos
a encontrar a nossa. Também temos pesados débitos a resgatar.
Não entregamos Jesus aos seus algozes; vezes sem conta, porém,
temos crucificado sua memória, vendido seus princípios,
falhado no cumprimento da moral que Ele pregou. Não estamos,
pois, em condições de atirar coisa alguma à nobre
face de Judas, o redimido.
_________
Transcrição parcial de
Reformador.
ano 77, n. 3, p. 5(49)-6(50) mar. 1959.
Fonte: http://www.souleitorespirita.com.br/reformador/destaque/judas-redimido
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