Nada como
consultar as obras originais da Kardequiana. Com o advento da
internet, o fluxo de informações não fica
mais restrito às bibliotecas, a meia dúzia de colecionadores,
de pesquisadores e estudiosos que nem sempre tiveram espaço
ou oportunidade para divulgar e compartilhar seu acervo e produção.
Afirmamos isso a propósito da leitura da primeira edição,
digitalizada, de O Que é o Espiritismo,
opúsculo publicado por Allan Kardec em 1859, onde pudemos
perceber, em alguns detalhes contidos em seu final, informações
que modificaram nosso olhar da primeira obra da filosofia espírita:
O Livro dos Espíritos.
Esse opúsculo foi finalizado
em maio de 1859, provavelmente publicado em junho do mesmo ano
e divulgado na Revista Espírita
(julho de 1859) como a “nova obra do Sr. Allan Kardec”.
Até hoje, como é
de hábito, as editoras costumam divulgar seu catálogo
no final dos livros publicados. Kardec fazia o mesmo com suas
obras. Nas últimas páginas de O Que
é o Espiritismo, podemos notar a divulgação
do estatuto da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas
(SPEE), da Revista Espírita,
de várias obras espíritas, dentre elas a segunda
edição de O Livro dos Espíritos,
com um índice surpreendente.
A segunda edição
da primeira obra de Allan Kardec, definitiva, lançada em
18 de março de 1860, continha quatro livros na forma de
perguntas e respostas, com comentários e ensaios teóricos
de Allan Kardec. São 1019 questões (1)
distribuídas em 474 páginas. A primeira edição,
de 18 de abril de 1857, continha três livros, 501 perguntas
e 176 páginas.
Esclarece Kardec, no aviso à
segunda edição: “Esta reimpressão
pode pois ser considerada como uma obra nova, embora os princípios
não tenham sofrido qualquer mudança, há um
pequeno número de exceções, que são
mais complementos e esclarecimentos que verdadeiras modificações.”
(2)
Nesse mesmo texto, o fundador
do Espiritismo faz referência a O Livro dos
Médiuns, obra que seria publicada somente
em 1861: “Na primeira edição desta obra
[O Livro dos Espíritos], anunciamos uma parte suplementar.
Ela deveria se compor de todas as questões que aí
não puderam ter lugar ou que as circunstâncias ulteriores
e de novos estudos deveriam fazer nascer. Mas como elas são
todas relativas a qualquer uma das partes já tratadas e
das quais são o desenvolvimento, sua publicação
isolada não teria apresentado sentido algum. Preferimos
esperar a reimpressão do livro, para fundir tudo junto
e então aproveitamos para trazer, na distribuição
das matérias, uma ordem muito metódica, ao mesmo
tempo em que podamos tudo o que tivesse duplo emprego.”
(3)
E finaliza mostrando explicitamente
a relação de continuidade entre O Livro
dos Espíritos e O Livro dos Médiuns:
“O preceito relativo
às manifestações propriamente ditas e aos
médiuns, forma, de qualquer maneira, uma parte distinta
da filosofia e que pode ser objeto de um estudo especial. Esta
parte, tendo recebido um desenvolvimento considerável,
por consequência da experiência adquirida, acreditamos
dever fazer um volume distinto, contendo as respostas dadas sobre
todas as questões relativas às manifestações
e aos médiuns, além de numerosas observações
sobre o espiritismo prático. Esta obra formará a
continuação ou o complemento do Livro dos
Espíritos.” (4)
No Epílogo da primeira
edição de O Livro dos Espíritos,
há o esclarecimento de Allan Kardec acerca da complementação
desta obra, o anúncio suplementar: “A próxima
publicação, que será continuação
dos três livros contidos neste primeiro trabalho, compreenderá,
entre outros assuntos, os meios práticos pelos quais o
Homem pode conseguir neutralizar o Egoísmo, fonte da maioria
dos males que afligem a Sociedade. Toca este assunto as questões
de sua posição neste Mundo e de sua situação
no futuro da Terra. Nota. Esta segunda parte será publicada
por via de subscrição, e destinada às pessoas
que se inscreverem para esse efeito, fazendo-nos seu pedido por
escrito (sem compromisso nem pagamento antecipado).”
(5) No ano seguinte, em 1858, Kardec
publicaria “esta segunda parte” sob o título
de Instruções Práticas sobre as Manifestações
Espíritas, cumprindo assim o anúncio feito anteriormente.
Esse opúsculo introdutório teve apenas uma única
edição; após a publicação de
O Livro dos Médiuns (1861), ele
não foi mais reimpresso.
Quanto à nova edição
de O Livro dos Espíritos, a decisão
de Allan Kardec, após consultar sua esposa e os espíritos,
foi editorial. Ele agiu não somente como pedagogo, mas
como editor ao perceber que, ao invés de publicar uma obra
muito volumosa, difícil de manusear e consultar, seria
preferível desmembrá-la em dois volumes, cada qual
com um título, mas de conteúdos inter-relacionados.
Essa foi sua decisão editorial definitiva. No entanto,
pelo que podemos observar no final de O Que é
o Espiritismo, entre a primeira edição
(1857) e a segunda edição (1860) de O
Livro dos Espíritos, ele chegou a produzir
uma edição completa (1859), compacta, composta por
cinco livros. É o que poderíamos chamar de uma “edição
perdida” (6), uma verdadeira
raridade, cuja publicação não temos absoluta
certeza de ter sido feita.
O índice d’O
Livro dos Espíritos divulgado no final do
opúsculo em questão é composto pelos seguintes
livros: LIVRO PRIMEIRO (As causas primárias); LIVRO SEGUNDO
(Mundo espírita ou dos Espíritos); LIVRO TERCEIRO
(Leis morais); LIVRO QUARTO (Esperanças e consolações)
e LIVRO QUINTO (Manifestação dos Espíritos).
(7) Esta informação, pouco conhecida pelos estudiosos
do Espiritismo, demonstra cabalmente que O Livro dos
Médiuns é a segunda parte de O
Livro dos Espíritos, seu desdobramento editorial,
como se fosse o lado B de um disco de vinil, o segundo volume,
“a continuação ou complemento”, conforme
as próprias palavras do fundador do Espiritismo.
Como essa informação
foi publicada em junho de 1859, é possível que o
livro completo já tivesse sido composto na gráfica,
ainda em fase de revisão, cujas provas tipográficas
foram divulgadas no final do opúsculo citado, com a exposição
do índice detalhado. Fosse a obra publicada, certamente
Allan Kardec teria divulgado essa informação na
Revista Espírita. Em todo o
ano de 1859, não há nenhuma referência quanto
à nova edição da obra primeira da Doutrina
Espírita.
Se O Livro dos Espíritos
estava prestes a sair composto por cinco livros, o que fez Allan
Kardec mudar de ideia? Não temos uma resposta precisa.
Também não sabemos como era o conteúdo de
toda essa edição, muito menos do inusitado quinto
livro que quase foi acrescentado. Todavia, há um fato muito
relevante que, em nosso entendimento, deve ser considerado. O
naturalista Charles Darwin lançou sua revolucionária
obra A Origem das Espécies (On
the Origin of Species) em 24 de novembro de 1859, causando um
impacto fulminante em toda a Europa. Sempre antenado com as descobertas
científicas, Allan Kardec certamente leu esse livro e provavelmente,
por conta disso, ao ver a revolucionária teoria da evolução,
decidiu alterar o conteúdo de seu primeiro livro espírita,
adequando-o à nova descoberta. Ao compararmos a primeira
edição com a segunda observamos a nítida
diferença entre ambas quanto à evolução
do homem e dos animais. A segunda edição não
se choca com a teoria darwiniana:
Trata-se, obviamente, de uma hipótese.
Se tivéssemos acesso aos manuscritos e documentos de Allan
Kardec, dos originais de suas obras enviados à gráfica,
aos 50 cadernos ofertados pelo dramaturgo Victorien Sardou, que
ele analisou criteriosamente, dentre tantos outros documentos,
poderíamos compreender de modo mais aprofundado as decisões
editoriais e doutrinárias que ele tomou ao longo da elaboração
da Kardequiana.
O filósofo espírita
José Herculano Pires, na Introdução ao Livro
dos Espíritos, prefácio de sua tradução
desta primeira obra espírita, afirma que O
Livro dos Médiuns é a sua “sequência
natural”, o desenvolvimento do capítulo sexto até
o final do Livro Segundo: Mundo Espírita ou dos Espíritos
(8). Ora, se Herculano tivesse tido
acesso à primeira edição de O
Que é o Espiritismo, sua interpretação
seria bem outra. Em nosso entender, O Livro dos Médiuns
é muito mais do que a “sequência natural”,
ele é a cara-metade de O Livro dos Espíritos,
é a sua alma gêmea, forma com ele um todo indissolúvel,
uma obra única, síntese completa do pensamento espírita.
O Livro dos Médiuns,
publicado em janeiro de 1861, esgotou-se rapidamente. A segunda
edição, lançada em novembro daquele mesmo
ano, foi completamente modificada, como explica o Druida de Lyon:
“Esta segunda edição é muito mais
completa que a precedente; encerra numerosas e importantes instruções
e vários capítulos novos. Toda a parte que concerne
mais especialmente aos médiuns, à identidade dos
Espíritos, à obsessão, às questões
que podem ser dirigidas aos Espíritos, às contradições,
aos meios de discernir os Espíritos bons dos maus, à
formação de reuniões espíritas, às
fraudes em matéria de Espiritismo, recebeu notáveis
desenvolvimentos, frutos da experiência. No capítulo
das dissertações espíritas adicionamos várias
comunicações apócrifas, acompanhadas de observações
pertinentes, de modo a facultar os meios de descobrir o embuste
dos Espíritos enganadores, que se apresentam com falsos
nomes.” (9)
O fundador do Espiritismo, até
1868, promoveu modificações em quase todas as suas
obras, inclusive na Revista Espírita.
Quando comparamos as edições e observamos as alterações
realizadas, podemos compreender o processo não somente
histórico de elaboração da Kardequiana, mas
também as decisões editoriais, doutrinárias.
A comparação entre
a primeira e a segunda edição de O Livro
dos Médiuns (assim como de O
Livro dos Espíritos), considerando as experiências
editoriais e doutrinárias publicadas na Revista Espírita,
que era o seu laboratório de ideias, pode nos dar muitas
pistas e dicas das experimentações mediúnicas
que ele realizava, do diálogo com os espíritos,
do confronto de ideias, enfim, um quadro interessante e abrangente
a fim de compreendermos ainda mais o trabalho complexo e hercúleo
empreendido por Allan Kardec.
Este exercício nos oferece
um panorama detalhado do trabalho de Kardec, demonstrando que
ele não foi apenas codificador, mas, sobretudo um editor,
um cientista, o pedagogo por excelência e o verdadeiro fundador
da Doutrina Espírita.