O Espiritismo
nunca teve a pretensão de assumir o lugar social da Igreja.
Pode parecer uma proposição inútil, no entanto,
trata-se de uma questão carente de esclarecimento quando
vemos o crescente interesse pelo Espiritismo nas redes sociais,
nas várias áreas de atuação social,
do cinema à academia, dos programas de auditório
à literatura de autoajuda.
O projeto kardequiano tem como
objetivo final “a influência sobre a ordem social”,
último estágio da propagação espírita,
numa prospecção discutível, mas respeitável,
totalmente pertinente como argumento contrário à
ideia de que o Espiritismo seria uma filosofia de alienados, mais
preocupados com o além do que com o aqui e agora.
Lugar social, no caso em questão,
não é sinônimo de “lugar ao sol”,
no sentido de conquista de espaço pessoal, nem de um espaço
geopolítico, físico, arquitetônico. Lugar
social é o lócus das manifestações
sociais, espaço abstrato, o palco onde os segmentos sociais
se expressam, se articulam, se inter-relacionam, entram em confronto,
em conflito.
No caso, em relação
ao Espiritismo, quando nos referimos a lugar social, queremos
dizer que sendo um movimento de natureza social, torna-se praticamente
impossível compreende-lo sem considerar o contexto em que
se desenvolveu e se desenvolve. Por ter sido fundado no século
19, em França, país católico, e por tocar
em questões que ao longo do tempo foram usurpadas pelas
religiões cristãs, especialmente a católica,
a reação clerical contra essa filosofia espiritualista
nascente seria inevitável. A Igreja, zelosa pelo patrimônio
espiritual do qual se considera representante-mor, entendeu que
o Espiritismo representaria um inimigo, uma presença incômoda
que poderia desbancar a instituição do lugar social
do qual havia se consolidado, em função também
de sua decadência como protagonista das transformações
culturais e sociais de seu tempo. O mesmo ocorreria no Brasil,
de modo semelhante, no início do século 20.
Na polêmica com o Abade
Chesnel, que se referiu ao Espiritismo como uma “nova religião”
em Paris, Kardec esclarece na “Revista Espírita”
(1858), de modo magistral, a natureza não-religiosa do
Espiritismo e seus objetivos, completamente contrários
à visão capciosa de Chesnel. Esse debate também
é reproduzido, de modo alegórico, em “O Que
é o Espiritismo”, no diálogo com o padre.
Quando Denizard Rivail decidiu
partir para um estudo hermenêutico e exegético da
teologia católico-cristã, ele não tinha a
menor pretensão de rivalizar com a Igreja, de querer mostra
“mais serviço”. Ele não queria usurpar
o lugar social da Igreja, E muito menos apresentar o Espiritismo
como uma alternativa neocristã ou simplesmente fundar uma
religião paracristã, o cristianismo redivivo. Cabe
ressaltar que a postura de Rivail em relação à
religião sempre foi marcada pela tolerância e a alteridade.
O Espiritismo não é
a “ressurreição” do Cristianismo e menos
ainda a sua “reencarnação”, porque possui
identidade própria, independente historicamente de qualquer
religião ou corrente filosófica.
Cristianismo redivivo? Ora, não
se põe remendo novo em pano velho. É uma visão
equivocada, nunca foi explícita. Kardec jamais reafirmou
tal pretensão. Na verdade, as pretensões do Espiritismo
eram muito mais arrojadas do que simplesmente se mostrar como
um cristianismo recauchutado. Começa pelo fato do fundador
do Espiritismo considera-lo como a Terceira Revelação,
o Consolador Prometido por Jesus de Nazaré. Haveria pretensão
maior do que esta?
Os livros posteriores a “O
Livro dos Espíritos” e “O Livro dos Médiuns”
podem parecer uma tentativa de se vincular epistemologicamente
o Espiritismo ao cristianismo, o que em tese, daria razão
ao Abade Chesnel. Todavia, o conteúdo dessas obras demonstra
o oposto disso. Já ouvi muitas lamentações,
afirmações levianas sem muito sentido quanto ao
fato de Denizard Rivail ter escrito tais livros. Não foi
uma concessão histórica ou filosófica. Há
estudiosos espíritas que consideram essas obras inúteis
e perniciosas ao progresso do Espiritismo, principalmente “O
Evangelho Segundo o Espiritismo”. Isso apenas demonstra
que não estudaram essas obras e se leram, não entenderam.
“O Céu e o Inferno”,
por exemplo, longe de ser apenas um ensaio teológico ou
hermenêutico, é obra importantíssima, por
exemplo, para o entendimento de aspectos relacionados à
filosofia do direito, especialmente do direito natural sob a ótica
espírita, contendo estudos e pesquisas sobre as condições
existenciais pós-morte e que ainda não foram retomadas
pelos pesquisadores espíritas. O clássico estudo
realizado pelo erudito cubano Fernando Ortiz (1881-1969), intitulado
“A Filosofia Penal dos Espíritas”, é
quase todo baseado em “O Céu e o Inferno”,
um dos livros menos lidos de Kardec. Ortiz , mesmo não
sendo espírita, demonstra que compreendeu o Espiritismo,
muito mais do que os espíritas ainda prisioneiros da mentalidade
mágica e religiosa.
O livro mais lido da Kardequiana,
“O Evangelho Segundo o Espiritismo”, tem uma introdução
primorosa, que vale por quase toda a obra, demonstrando que não
se trata simplesmente de um simples desenvolvimento de As Leis
Morais. Vai muito além disso. Para Allan Kardec, a moral
espírita é semelhante à moral cristã.
Entretanto, em toda a leitura desse livro, em que pese o uso,
amiúde indevido e incômodo da terminologia cristã,
o que vemos é a superação da visão
moralista da teologia. A ética espírita é
superior, em termos axiológicos, à ética
cristã.
As pretensões de Kardec
eram muito mais amplas do que apresentar a Doutrina Espírita
como um catolicismo mais sofisticado, exótico. O Espiritismo
para Kardec teria todas as condições de ser o elo,
a conexão, a ligação entre ciência
e religião. Ele entendia que o conflito entre essas duas
formas de conhecimento poderia ser resolvido a partir das proposições
espíritas, que tocam em todos os ramos do conhecimento,
“da física e da metafísica”.
Denizard Rivail via o Espiritismo
como um auxiliar das religiões e, mais ainda, ele o imaginava
como o secundador do processo de transformação social.
O Espiritismo não cria a renovação social,
mas serve como alavanca, como um suporte filosófico-moral,
ético para essa transformação. Isto sim é
uma proposta pretensiosa, muito mais do que simplesmente posar
como uma forma neocatólica ou neocristã sofisticada
de se pensar o mundo.
Kardec, em seu ufanismo compreensível
para a época, imaginou ainda que o Espiritismo seria a
grande coqueluche do século vindouro. Como sabemos, não
foi bem isso que aconteceu, ao contrário. No início
do século 20, o Espiritismo morreu na França, “morreu
na praia” e “reencarnou” nos países do
Terceiro Mundo com uma feição toda religiosa, na
grande maioria dos casos.
Digo, na grande maioria dos casos,
porque não foi como religião que o Espiritismo se
implantou, inicialmente, em Cuba, Venezuela e Argentina. Tal fato
demonstra que a configuração religiosa desenvolvida
no Brasil se deu fundamentalmente em função de fatores
culturais e sociológicos, porque a natureza epistemológica
do Espiritismo não lhe concede as características
de um pensamento religio-látrico. O que torna compreensível
a histórica polêmica entre místicos e científicos
no movimento espírita brasileiro do século 19, que
prossegue até os dias atuais.