1.
Introdução
Muito se tem discutido nos meios espíritas a questão
da cientificidade do Espiritismo. Embora Allan Kardec a tenha abordado
de forma precisa e completa, alegam alguns que desenvolvimentos
recentes na ciência e em linhas não-espíritas
de pesquisa dos fenômenos a que chamam "paranormais"
trouxeram novidades ao palco dos debates. Neste trabalho procuraremos
investigar o aspecto científico do Espiritismo e a alegação
acima, recorrendo à filosofia da ciência contemporânea,
e, mais especificamente, aos estudos do filósofo americano
Thomas Kuhn.
A filosofia da ciência é
o ramo da filosofia que se ocupa da análise do conhecimento
científico: seus fundamentos, sua abrangência, sua
especificidade, sua evolução. De maior relevância
para os nossos presentes propósitos é a questão
do chamado critério de demarcação entre ciência
e não-ciência, ou pseudo-ciência. Essa questão
interessou de perto a todos os filósofos que se dedicaram
ao estudo da ciência, havendo se destacado com o surgimento
da ciência moderna, nos séculos 16 e 17. Nessa época,
as investigações científicas, especificamente
no domínio daquilo que hoje chamamos física, conduziram
a um notável incremento no poder preditivo e explicativo
da ciência, com as contribuições de Galileo,
Huygens, Descartes e Newton, entre outros.
Difundiu-se então a idéia,
antecipada por Francis Bacon, de que o sucesso
da ciência se devia à adoção de um método
especial, o chamado método científico.
A aplicação desse método é que demarcaria
a ciência genuína das atividades não-científicas.
A explicitação, compreensão e elaboração
do método científico passou a constituir tópico
de pesquisa dos filósofos (que, em muitos casos, eram os
próprios cientistas a divisão mais ou menos nítida
entre a ciência e a filosofia é recente).
Em uma
descrição aproximada, pode-se afirmar que a questão
do método científico recebeu uma resposta mais ou
menos uniforme desde o século 16 até meados de nosso
século, quando então começou a ser posta em
dúvida. Embora fosse muito útil, não dispomos
de espaço aqui para apresentar as idéias centrais
da concepção clássica de ciência e das
críticas que recentemente levaram à sua substituição.
{nota 1} Diremos apenas que essa concepção clássica
é ainda a que predomina entre o público leigo, e,
em boa parte, entre os cientistas, havendo, pois, um descompasso
entre eles e os filósofos e historiadores da ciência
contemporâneos.
Em seus traços mais gerais,
a visão clássica da ciência assume que uma disciplina
científica é aquela que parte de um processo longo
de coleta de dados, ou seja, de observação dos fenômenos.
Desses dados resultariam então as leis gerais que regem os
fenômenos. Reunidas, essas leis formariam as teorias científicas.
O progresso da ciência se daria pelo acréscimo de novas
observações, das quais resultariam leis adicionais,
que iriam se incorporando às teorias.
No processo assim esquematizado
são essenciais as seguintes assunções: 1) Na
etapa de coleta de dados não intervém nenhuma diretriz
teórica: as observações são neutras;
2) Igualmente, as leis resultam dos fenômenos por um método
neutro, objetivo e infalível; e, 3) As novas leis descobertas
ao longo da evolução da ciência são sempre
complementares, nunca incompatíveis, com as leis já
estabelecidas.
A articulação suprema
dessa concepção tradicional de ciência se deu
no bojo do programa filosófico do positivismo lógico,
que floresceu nas décadas de 1920 a 1940. Esse programa alcançou
níveis admiráveis de sofisticação formal
e teórica, vindo a exercer uma profunda e duradoura influência
sobre a classe científica. Já em 1934, porém,
o filósofo austríaco, mais tarde naturalizado britânico,
Karl Popper publicou um livro intitulado A
Lógica da Descoberta Científica (Popper 1968),
contendo críticas incisivas à concepção
clássica, lógico-positivista de ciência. Tais
objeções passaram em grande parte desapercebidas até
o final da década de 1950, quando apareceu uma versão
inglesa do livro, e o programa do positivismo lógico já
havia experimentado por mais de duas décadas um processo
vigoroso de auto-crítica.
Mais uma
vez, limitações de espaço não nos permitem
expor aqui as críticas de Popper, ou sua concepção
de ciência, conhecida hoje por falseacionismo. Observamos
apenas que, a seu turno, o falseacionismo topou com restrições
mais ou menos severas, levantadas por outros filósofos da
ciência. Dentre eles, os mais importantes são Thomas
Kuhn, Imre Lakatos e Paul Feyerabend. {nota
2} Em trabalhos anteriores (Chibeni 1984, 1988 e 1991), tivemos
a ocasião de tratar da filosofia da ciência
de Lakatos, em conexão com a questão da ciência
espírita. Agora, tentaremos abordar essa mesma questão
à luz das idéias kuhnianas da ciência. Salientamos,
desde já, que para que fosse levado a cabo de maneira satisfatória,
esse empreendimento exigiria uma exposição detalhada
da filosofia de Kuhn, o que evidentemente não pode caber
nas dimensões de um artigo. Pretendemos, pois, que o que
se vai seguir seja tomado apenas como uma motivação
para estudos ulteriores.
2. Esboço da filosofia
da ciência de Kuhn
Kuhn começou sua carreira acadêmica como físico
teórico, interessando-se depois por história da ciência.
Ao longo das importantes investigações que empreendeu
acerca das teorias científicas passadas, realizadas segundo
uma nova perspectiva historiográfica, que procura compreender
uma teoria a partir do contexto de sua época, e não
do ponto de vista da ciência de hoje, Kuhn se deu conta de
que a concepção de ciência tradicional não
se ajustava ao modo pelo qual a ciência real nasce e se desenvolve
ao longo do tempo. Essa percepção da inadequação
histórica das idéias usuais sobre a natureza da ciência
o conduziu, finalmente, à filosofia da ciência. Seus
estudos nessa área apareceram publicados de modo mais amplo
em seu livro de 1962, A Estrutura das Revoluções
Científicas. Esse trabalho viria a exercer uma influência
decisiva nos rumos da filosofia da ciência. Embora em uma
linguagem aparentemente acessível, Kuhn avança nele
teses bastante sofisticadas sobre o conhecimento científico
e o conhecimento em geral, que receberam críticas filosóficas
diversas ao longo dos anos. Naturalmente, este não é
o lugar para adentrarmos essas discussões. Limitar-nos-emos
a expor simplificadamente alguns dos pontos destacados por Kuhn
e que se tornaram reconhecidos, com esta ou aquela alteração
menor, pela quase totalidade dos filósofos da ciência.
Felizmente, são esses pontos mais consensuais os que maior
relevância têm para os nossos propósitos neste
artigo.
A espinha dorsal da concepção
kuhniana de ciência consiste na tese de que o desenvolvimento
típico de uma disciplina científica se dá ao
longo da seguinte estrutura aberta:
fase pré-paradigmática
> ciência normal > crise > revolução
>
nova ciência normal
> nova crise > nova revolução ...
Daremos agora uma explicação
simplificada das noções envolvidas nessa cadeia evolutiva
de uma ciência.
A fase pré-paradigmática
representa, por assim dizer, a pré-história de uma
ciência, aquele período no qual reina uma ampla divergência
entre os pesquisadores, ou grupos de pesquisadores, sobre quais
fenômenos dever ser estudados, e como o devem ser, sobre quais
devem ser explicados, e segundo quais princípios teóricos,
sobre como os princípios teóricos se inter-relacionam,
sobre as regras, métodos e valores que devem direcionar a
busca, descrição, classificação e explicação
de novos fenômenos, ou o desenvolvimento das teorias, sobre
quais técnicas e instrumentos podem ser utilizados, e quais
devem ser utilizados, etc. Enquanto predomina um tal estado de coisas,
a disciplina ainda não alcançou o estatuto de científica,
ou seja, não constitui uma ciência genuína.
Uma disciplina se torna uma ciência
quando adquire um paradigma, encerrando-se a fase pré-paradigmática
e iniciando-se uma fase de ciência normal. Este é o
critério de demarcação proposto por Kuhn para
substituir o critério da concepção clássica
(esboçado na seção anterior). O termo 'paradigma'
tem uma acepção bastante elástica no texto
original de Kuhn, e não podemos aqui adentrar as sutilezas
de seu significado. Em seu sentido usual, pré-kuhniano, o
termo significa 'exemplo', 'modelo'. Assim, amo, amas, ama, amamos,
amais, amam é um paradigma da conjugação do
indicativo presente dos verbos regulares da Língua Portuguesa
terminados em 'ar'.
Kuhn percebeu que a transição
para a maturidade, para a fase científica, de uma disciplina
envolve o reconhecimento, por parte dos pesquisadores, de uma realização
científica exemplar, que defina de maneira mais ou menos
clara os principais pontos de divergência da fase pré-paradigmática.
A mecânica de Aristóteles, a óptica de Newton,
a química de Boyle, a teoria da eletricidade de Franklin
estão entre os exemplos dados por Kuhn de paradigmas que
fizeram algumas disciplinas adentrar a fase científica.
É difícil explicitar,
especialmente em poucas palavras, os elementos que entram na formação
de um paradigma. Kuhn sustenta mesmo que essa explicitação
nunca pode ser completa. A razão disso é que o conhecimento
de um paradigma é, em parte, tácito, adquirido pela
exposição direta ao modo de fazer ciência determinado
pelo paradigma. Assim, por exemplo, é somente fazendo óptica
à maneira de Newton que se pode conhecer completamente o
paradigma óptico newtoniano, ou fazendo eletromagnetismo
à maneira de Maxwell que se pode conhecer completamente o
paradigma eletromagnético.
No entanto, podemos, a título
de balizamento, considerar como partes integrantes de um
paradigma: uma ontologia, que indique o tipo de coisa fundamental
que constitui a realidade; princípios teóricos fundamentais,
que especifiquem as leis gerais que regem o comportamento dessas
coisas; princípios teóricos auxiliares, que estabeleçam
sua conexão com os fenômenos e as ligações
com as teorias de domínios conexos, regras metodológicas,
padrões e valores que direcionem a articulação
futura do paradigma; exemplos concretos de aplicação
da teoria; etc.
Um paradigma fornece, pois, os fundamentos
sobre os quais a comunidade científica desenvolve suas atividades.
Um paradigma representa como que um "mapa"
a ser usado pelos cientistas na exploração da Natureza.
As pesquisas firmemente assentadas nas teorias, métodos e
exemplos de um paradigma são chamadas por Kuhn de ciência
normal. Essas pesquisas visam, principalmente, a extensão
do conhecimento dos fatos que o paradigma identifica como particularmente
significativos, bem como o aperfeiçoamento do ajuste da teoria
aos fatos pela articulação ulterior da teoria e pela
observação mais precisa dos fenômenos.
Um ponto importante destacado por
Kuhn é que enquanto o "mapa" paradigmático
estiver se mostrando frutífero, e não surgirem embaraços
sérios no ajuste empírico da teoria, o cientista deve
persistir tenazmente no seu compromisso com o paradigma. Embora
a ciência normal seja uma atividade altamente direcionada,
e em um certo sentido seletiva, essa restrição é
essencial ao desenvolvimento da ciência. É somente
centrando sua atenção em uma gama selecionada de fenômenos
e princípios teóricos explicativos que o cientista
conseguirá ir fundo no estudo da Natureza. Nenhuma investigação
de fenômenos poderá ser levada a cabo com sucesso na
ausência de um corpo de princípios teóricos
e metodológicos que permitam seleção, avaliação
e crítica do que se observa. Aqui se nota um dos principais
enganos da concepção clássica de ciência,
que imaginava ser possível fazer observações
neutras. Nas concepções contemporâneas, reconhece-se
que fatos e teorias estão em constante relação
de interdependência, como que em "simbiose", os
primeiros sustentando as últimas e estas contribuindo para
a sua seleção, classificação, concatenação,
predição e explicação. De posse de um
corpo de princípios teóricos e regras metodológicas,
o cientista não precisa a cada momento reconstruir os fundamentos
de seu campo, começando de princípios básicos
e justificando o significado e uso de cada conceito introduzido,
assim como a relevância de cada fenômeno observado.
Kuhn entende a ciência normal
como uma atividade de resolução de "quebra-cabeças"
(puzzles), já que, como eles, ela se desenvolve segundo regras
relativamente bem definidas. Só que na ciência os quebra-cabeças
nos são apresentados pela Natureza. Ao longo da exploração
de um paradigma pode ocorrer que alguns desses quebra-cabeças
se mostrem de difícil solução. O dever do cientista
é insistir no emprego das regras e princípios paradigmáticos
fundamentais o quanto possa. Utilizando a analogia, não vale,
por exemplo, cortar um canto de uma peça do quebra-cabeça
para que se encaixe em uma determinada posição. Mas
no caso da ciência esse apego ao paradigma, que é essencial,
como indicamos acima, não pode ser levado ao extremo. Quando
quebra-cabeças sem solução a que Kuhn denomina
anomalias se multiplicam, resistem por longos períodos aos
melhores esforços dos melhores cientistas, e incidem sobre
áreas vitais da teoria paradigmática, chegou o tempo
de considerar a substituição do próprio paradigma.
Nestas situações de crise, membros mais ousados e
criativos da comunidade científica propõem alternativas
de paradigmas. Perdida a confiança no paradigma vigente,
tais alternativas começam a ser levadas a sério por
um número crescente de cientistas. Instala-se um período
de discussões e divergências sobre os fundamentos da
ciência que lembra um pouco o que ocorreu na fase pré-paradigmática.
A diferença básica é que mesmo durante a crise
o paradigma até então adotado não é
abandonado, enquanto não surgir um outro que se revele superior
a ele em praticamente todos os aspectos.
Quando um novo paradigma vem a substituir
o antigo, ocorre aquilo que Kuhn chama de revolução
científica. Grande parte das teses filosóficas sofisticadas
desse autor que se tornaram alvo de polêmicas entre os especialistas
ligam-se ao que ele assevera acerca das revoluções
científicas. Conforme já alertamos, não adentraremos
esse assunto aqui. O esquema geral da natureza da ciência
que apresentamos acima representa a contribuição mais
consensual de Kuhn à filosofia da ciência, e pode também
ser identificado, com adaptações, principalmente terminológicas,
na filosofia da ciência de Lakatos, a segunda das duas mais
sistemáticas e importantes tentativas contemporâneas
de compreensão da ciência.
3.
O paradigma espírita
Neste ponto o leitor familiarizado com a história do Espiritismo
e que tenha lido, estudado, meditado e compreendido a obra de Allan
Kardec já terá percebido o embasamento de nossas teses
principais: a obra de Kardec constitui um genuíno paradigma
científico, e esse paradigma representa, até hoje,
a única diretriz segura ao longo da qual se podem desenvolver
pesquisas científicas acerca dos fenômenos espíritas
e do aspecto espiritual do ser humano em geral.
A explicitação completa
dessas teses exigiria que percorrêssemos toda a história
do Espiritismo, toda a obra kardequiana, e as tentativas de estudo
dos fenômenos espíritas fora do paradigma espírita.
Evidentemente, não há espaço aqui para encetarmos
tal empreendimento. Indicaremos apenas alguns pontos mais salientes,
para motivar aqueles que queiram refletir sobre o assunto.
Como repetidamente enfatizou o próprio
Kardec, alguns dos fatos mais significativos que serviram de base
para as suas pesquisas eram conhecidos, embora de modo impreciso
e obscuro, desde os primeiros tempos da civilização
humana. No entanto, transparece claramente que, não obstante
tenham sempre sido objeto de estudo por parte de indivíduos
e doutrinas, não havia, até o advento do Espiritismo,
um paradigma científico que os concatenasse e integrasse
em um corpo de princípios teóricos precisos e abrangentes,
acompanhados de métodos, critérios e valores que definissem
rumos confiáveis ao longo dos quais a sua investigação
pudesse caminhar. Foi a fase pré-paradigmática das
pesquisas do espírito.
Tal fase encerrou-se com o trabalho
de Allan Kardec. Ele nos legou um paradigma admiravelmente coerente,
abrangente, empiricamente adequado e heuristicamente fértil,
que não deixa nada a desejar aos mais bem sucedidos paradigmas
das ciências ordinárias, como a termodinâmica,
o eletromagnetismo, as teorias da relatividade, a mecânica
quântica, etc.
Como uma
indicação geral e aproximada, podemos dizer que O
Livro dos Espíritos estabeleceu a ontologia e os princípios
teóricos básicos; O Livro dos Médiuns
e a segunda parte de O Céu e o Inferno efetuaram a conexão
com a base experimental; O Evangelho segundo o Espiritismo e a primeira
parte de O Céu e o Inferno exploraram as repercussões
filosóficas do paradigma no campo da ética; {nota
3} A Gênese, os Milagres e as Predições
segundo o Espiritismo e ensaios diversos nas Obras Póstumas
e Revista Espírita aprofundaram vários pontos da teoria,
sendo que a Revista constitui também valioso repositório
de relatos experimentais.
Imperioso notar que a teoria
espírita se faz acompanhar daqueles elementos vitais de um
legítimo paradigma científico, e que nem
sempre são inteiramente explicitáveis: critérios,
métodos e valores que norteiam a busca, descrição
e avaliação tanto de fatos como de princípios
teóricos auxiliares. E mais: Kardec nos forneceu em profusão
exemplos concretos de problemas resolvidos pela teoria espírita,
verdadeiros modelos a serem seguidos na abordagem de outros problemas.
Vemos, em consonância com as concepções de Kuhn,
que tais aplicações exemplares da teoria desempenham
de fato grande papel na assimilação da real essência
do Espiritismo. Aqueles que não se debruçaram sobre
eles, e inspecionaram os princípios espíritas apenas
"de fora", e muitas vezes mesmo de forma fragmentária,
encontram-se incapacitados de bem julgar o paradigma kardequiano;
não adquiriram aquilo que Kuhn (seguindo Michael Polanyi)
chama de conhecimento tácito da ciência espírita.
Examinando a história
do Espiritismo após Kardec, vemos que o paradigma
por ele iniciado prosseguiu o seu desenvolvimento, dentro de uma
bem sucedida tradição de ciência normal. Léon
Denis, nos primeiro tempos, e depois Bezerra, Emmanuel,
André Luiz, Yvonne Pereira, Philomeno de Miranda,
entre outros, foram pesquisadores encarnados ou desencarnados que
se destacaram na extensão do paradigma em sua pureza original.
Uma questão que naturalmente
pode ser suscitada pela comparação do paradigma espírita
com os paradigmas das ciências ordinárias é
a das revoluções científicas.
A história mostra a ocorrência de revoluções
em quase todas as áreas da ciência, e se poderia perguntar
se o Espiritismo não estaria também sujeito a uma
revolução. Essa é uma questão delicada,
e no pouco espaço que nos resta aqui não lhe podemos
fazer justiça plena. Nossa resposta comporta duas observações
principais, que esboçamos a seguir.
Primeiro, o exame isento e criterioso
da situação mostra de forma inquestionável
que o Espiritismo não experimenta, nem jamais experimentou,
qualquer processo de acumulação de anomalias, e muito
menos em seus pontos essenciais, acumulação essa que
constitui, segundo Kuhn, um pré-requisito para o desencadeamento
de uma crise, capaz de justificar a proliferação de
teorias alternativas, e, eventualmente, a substituição
do paradigma. Aproveitamos para notar aqui que, em vista disso,
incorreram em erro científico aqueles que, já desde
os primeiro tempos, têm desenvolvido suas pesquisas fora do
paradigma espírita. Não há razões científicas
para essa atitude, que só contribui para a dispersão
de esforços tão prejudicial ao avanço do conhecimento,
como mostrou Kuhn.
A segunda parte de nossa resposta
passa pela observação de que, dada a natureza específica
do paradigma espírita, não se deve esperar que tenha
um dia que ser abandonado ou modificado em seus princípios
fundamentais. A razão disso é que, exceto por alguns
princípios reguladores abstratos, tais princípios
encontram-se muito próximos do nível fenomênico,
de modo que, utilizando-nos da nomenclatura filosófica, poderíamos
classificar a teoria espírita como essencialmente fenomenológica.
O exemplo mais claro de uma teoria desse tipo nas ciências
ordinárias é a termodinâmica, desenvolvida em
meados do século 19. Por ser fenomenológica, ela goza
de uma alta estabilidade diante do progresso de outras áreas
da ciência, havendo atravessado incólume as radicais
mudanças de paradigma ocorridas na física nas primeiras
décadas de nosso século. Essa característica
da termodinâmica exerceu grande atração sobre
Einstein (entre outros), que procurou desenvolver sua teoria especial
da relatividade em moldes fenomenológicos.
Em termos simplificados, podemos
tentar esclarecer esse ponto dizendo que nas teorias não-fenomenológicas
(ditas teorias construtivas), que são a maioria das teorias
da física e da química, o "grau de teoricidade"
dos princípios é muito maior ; eles estão bem
mais distantes da observação empírica direta.
Em tal caso, o caminho que vai dos fenômenos até os
princípios teóricos é bastante tortuoso, passando
por uma série de teorias auxiliares, necessárias,
por exemplo, para tratar do funcionamento e interpretação
dos dados fornecidos pelos aparelhos envolvidos. Nessas circunstâncias,
a segurança com que os princípios podem ser asseridos
fica evidentemente reduzida; há, em geral, possibilidades
plausíveis de explicação dos mesmos fenômenos
por princípios teóricos diferentes. A história
da física e da química ilustra bem a vulnerabilidade
de suas teorias construtivas, que vão sendo substituídas
de tempos em tempos.
No caso dos princípios espíritas
básicos, como a existência e sobrevivência do
espírito, o livre-arbítrio, a lei de causa e efeito,
a reencarnação, etc., a situação é
bastante diversa. Sua confirmação independe totalmente
de aparelhos, conforme bem enfatizou Kardec, o que é uma
enorme vantagem do ponto de vista epistemológico, pelas razões
esboçadas acima. São proposições da
mesma classe epistêmica que, digamos, as proposições
de que o Sol existe, de que o fogo queima, a cicuta envenena, etc.
Notemos que a inferência espírita diante de um fenômeno
de efeitos intelectuais não difere em nada das inferências
que fazemos a partir dos fenômenos ordinários. Quando,
por exemplo, o carteiro traz à nossa casa um papel no qual
lemos certas frases, não nos acudirá a idéia
de que elas não foram escritas por um determinado amigo,
quando relatam fatos, contêm expressões e veiculam
pensamentos peculiares e íntimos. Exatamente o mesmo se dá
com os variados e abundantes casos de psicografia de que somos testemunhas.
Não constitui exagero, pois, afirmar-se que a constatação
cuidadosa de uns poucos casos dessa espécie é suficiente
para eliminar qualquer dúvida quanto ao princípio
básico da Doutrina Espírita, a existência e
sobrevivência do espírito.
Como se isso não bastasse,
a base experimental do Espiritismo incorpora ainda muitos outros
tipos de fenômenos, como a psicofonia, a xenoglossia, as materializações,
vidência, a pneumatografia e a pneumatofonia, etc. Além
desses fenômenos, que formam uma classe específica,
a dos fenômenos espíritas, o Espiritismo apóia-se
também em inúmeros fenômenos ordinários.
Referimo-nos, por exemplo, às nossas inclinações
e sentimentos, às peculiaridades de nosso relacionamento
com as pessoas que nos cercam, aos acontecimentos marcantes de nossa
vida, aos distúrbios da personalidade, aos efeitos psicossomáticos,
aos sonhos, à evolução das espécies
e das civilizações, etc. Entendemos que a desconsideração
desse vasto corpo de evidências a favor do Espiritismo constitui
séria omissão por parte de seus críticos e
daqueles que tentam fazer ciência não-espírita
do espírito.
Em outro artigo (Chibeni 1988; ver
também Chibeni 1986) procuramos mostrar que Kardec possuía
um senso científico e filosófico que caminhava muito
adiante de seu tempo, identificando corretamente as características
de uma verdadeira ciência, e desenvolvendo suas pesquisas
de acordo com elas. Isso fica claro tanto da análise de sua
obra, como de inúmeras declarações explícitas
suas sobre a natureza da ciência, o que torna ainda mais lamentável
a busca de uma ciência do espírito fora do paradigma
kardequiano, busca essa que prossegue até nossos dias, quando
os avanços da filosofia da ciência já puderam
mostrar cabalmente onde ela de fato se encontra.
1. Para um esboço desses
pontos, ver Chibeni 1984. [volta]
2. Suas obras mais representativas
são Kuhn 1970, Lakatos 1970 e Feyerabend 1978. Para uma exposição
mais ou menos acessível das idéias principais desses
filósofos e da concepção clássica de
ciência, ver Chalmers 1978. [volta]
3. Sobre a ética espírita
e sua fundamentação na ciência espírita,
ver Chibeni 1985. [volta]