Introdução: o
papel das teorias na ciência
Há uma acepção
popular da palavra 'teoria' na qual teoria se opõe ao que
se considera "comprovado", "concreto", "real"
ou de utilidade prática. Por outro lado, assume-se com boas
razões que o conhecimento científico é o mais
rigoroso que possuímos, tendo também inegável
relevância prática, na medida em que está na
base da moderna tecnologia. O que o homem comum muitas vezes não
sabe é que todo o conhecimento científico é
codificado por meio de teorias.
De um modo geral, podemos entender
a ciência como possuindo dois grandes objetivos: 1) descrever
e predizer de forma sistemática os fenômenos de um
dado domínio; e 2) explicar esses fenômenos, possibilitando
a sua "compreensão". A consecução
de ambos esses objetivos requer a formulação de teorias
para o conjunto de fenômenos investigados. Nas ciências
formalizadas, como a Física e a Química, a capacidade
preditiva decorre em grande parte de um formalismo matemático
complexo, que permite calcular a ocorrência de certos fenômenos
a partir da ocorrência de outros. O poder de explicação,
por outro lado, parece depender da possibilidade de entender os
conceitos e leis da teoria como contrapartes teóricas de
uma realidade subjacente, formada de objetos com determinadas propriedades,
que interagem entre si segundo certos princípios.
Deve-se, pois, para fins de análise
filosófica da ciência, distinguir claramente os fenômenos
(aquilo que é imediatamente acessível aos nossos sentidos),
a teoria (conceitos, leis e formalismo) e a ontologia,
ou seja, os objetos reais que, em interação com nosso
aparelho sensorial, produzem em nós os fenômenos. Quando
se fala na interpretação de uma teoria científica
tem-se duas coisas em vista: 1) o estabelecimento de uma correspondência
entre os conceitos teóricos e os fenômenos; e 2) a
postulação de uma ontologia capaz de, à luz
da teoria, ser entendida como a realidade subjacente aos fenômenos.
Os entes dessa ontologia em geral cumprem o papel de causas dos
fenômenos, contribuindo assim para a nossa compreensão
de por que eles ocorrem e se inter-relacionam segundo as leis da
teoria.
A teoria quântica
Na década de 1920 surgiu
na física uma teoria que viria a se tornar o veículo
de quase todo o nosso conhecimento da estrutura da matéria:
a mecânica quântica (MQ). É ela que
nos fornece os recursos teóricos para descrever o comportamento
fundamental das moléculas, átomos e partículas
sub-atômicas, assim como da luz e outras formas de radiação.
Pode-se afirmar com segurança que a MQ é a teoria
científica mais abrangente, precisa e útil de todos
os tempos.
Não obstante seu extraordinário
sucesso preditivo, desde a sua criação a MQ apresentou
problemas de interpretação em grau sem precedentes
na história da ciência. A discussão completa
desses problemas requer conhecimentos especializados, não
podendo pois ser empreendida aqui. Procuraremos, no entanto, indicar
em termos simplificados as características conceituais da
teoria quântica que levaram ao seu surgimento, e apresentar
em linhas gerais as principais alternativas de solução
já propostas.
As dificuldades interpretativas
dessa teoria dizem respeito tanto à forma pela qual a teoria
se relaciona com os fenômenos quanto ao delineamento de uma
ontologia que lhe seja apropriada. A compreensão desse ponto
requer uma breve menção a duas noções
fundamentais das teorias físicas: a de estado e
a de grandeza física. De um modo geral, estados
são caracterizações básicas dos objetos
físicos tratados pela teoria. As grandezas físicas
são as propriedades mensuráveis desses objetos. Para
efeitos de comparação, podemos lembrar que na mecânica
clássica o estado de uma partícula de massa m
é representado por conjunto de seis números que especificam
sua posição e velocidade. Em função
desses números a teoria indica como calcular os valores de
grandezas físicas como a energia cinética, o momento
angular, etc.
Na mecânica quântica
os estados dos objetos são definidos de modo inteiramente
diverso, por meio das chamadas funções de onda.
É justamente dessa nova (e complexa) forma de representação
dos estados que surgem quase todos os problemas de interpretação
da teoria.
O problema da atribuição
de valores
Uma grandeza só terá
significado físico se pudermos atribuir valores
a ela. É isso que permitirá colocar a noção
em correspondência com os fenômenos, com a leitura de
aparelhos de medida. Neste ponto surge a primeira e mais fundamental
dificuldade interpretativa na MQ: Dados um estado quântico
e uma grandeza física quaisquer, em geral o formalismo
quântico simplesmente não atribui um valor à
grandeza! (Dissemos "em geral" porque há exceções.)
O problema é agravado pelo fato de que mesmo quando o estado
não fornece o valor de uma grandeza física, medidas
dessa grandeza sobre o objeto são inteiramente possíveis
e dão valores bem definidos. Parece, então, que
a teoria está falhando em uma de suas funções
essenciais, a predição dos fenômenos, dos resultados
de medida. Como interpretar essa situação? Há
duas posições possíveis:
a) A descrição quântica
do objeto é incompleta: não prevê valores
de grandezas perfeitamente mensuráveis;
b) Os valores dessas grandezas não
existem, ou não estão definidos antes que se efetue
a medida; a medida então criaria ou tornaria definidos os
valores, não sendo propriamente uma medida, no sentido usual
do termo: a mera revelação de uma propriedade preexistente
do objeto investigado.
Entre os fundadores da MQ, Schrödinger, de Broglie e, sobretudo,
Einstein, defenderam a posição (a); Bohr, Heisenberg
e praticamente todos os outros sustentaram (b), que se tornou a
posição dominante. Vejamos brevemente como essa divergência
básica se amplificou e ramificou ao longo das discussões
subseqüentes.
As interpretações
da mecânica quântica
a) Incompletude. Para mostrar
que a descrição quântica das propriedades dos
objetos é incompleta, Einstein, Podolsky e Rosen propuseram
um interessante argumento em 1935, o chamado "argumento de
EPR". Outro importante argumento para o mesmo fim foi proposto
no mesmo ano por Schrödinger, argumento hoje conhecido pelo
nome pitoresco de "gato de Schrödinger".
Não obstante a força desses argumentos e os abalos
que causaram no campo adversário, a tese da incompletude
não prevaleceu, por vários fatores. Primeiro, em 1932
von Neumann apresentou uma prova de que, aceitas certas premissas,
qualquer tentativa de completar a descrição quântica
seria matematicamente impossível. Depois, os argumentos foram
rebatidos informalmente pelos defensores da tese oposta. Por fim,
apesar dos problemas conceituais a MQ mostrou um poder preditivo
sem precedentes. Embora para cada estado quântico o formalismo
sempre deixe de especificar os valores de certas grandezas, atribui,
no entanto, probabilidades de que os valores sejam encontrados
empiricamente, por meio de medidas. É nessa atribuição
de probabilidades que a teoria revelou sua impressionante capacidade
preditiva.
Apesar disso tudo, os argumentos de EPR e de Schrödinger tornaram-se
o pivô da maior parte das discussões sobre os fundamentos
da teoria até nossos dias, levando a desdobramentos extremamente
ricos. Dentre eles, mencionamos a criação por David
Bohm, em 1952, de uma teoria mais completa que a MQ. (Esse fato
pressupôs, naturalmente, um bem sucedido questionamento da
relevância da prova de von Neumann.) Teorias desse tipo são
hoje ditas teorias de variáveis ocultas (TVOs).
Apesar de irem além da MQ na atribuição de
valores às grandezas físicas, coincidem com ela nas
predições probabilistas. Diversos pesquisadores mostraram
subseqüentemente, por meio de importantes teoremas algébricos,
que para reproduzirem as predições quânticas
as TVOs devem incorporar um traço conceitual inteiramente
não-clássico, o chamado contextualismo, que
significa que os valores das grandezas físicas podem refletir
não apenas as propriedades do objeto, mas também de
todo o seu "contexto". Foi esse traço que mais
tarde levou Bohm a desenvolver a idéia de que há um
holismo, ou "totalidade" no mundo.
Intrigado com o fato de a TVO de Bohm ser não-local,
ou seja, permitir que os valores atribuídos às grandezas
possam ser alterados instantaneamente por ações remotas,
John Bell conseguiu provar, em 1964, que toda TVO que reproduza
as predições estatísticas da MQ terá
necessariamente de ser não-local. Num admirável esforço
de investigação, os físicos experimentais conseguiram
mostrar que as predições quânticas relevantes
para essa questão são corretas. (O experimento mais
importante foi conduzido por Alain Aspect em 1982.) Qualquer tentativa
de complementar a MQ terá, portanto, de ser feita com a violação
do princípio da localidade - um preço teórico
que poucos físicos parecem dispostos a pagar.
b) Completude. A tese de que a MQ descreve tudo o que há
para ser descrito nos objetos físicos de que trata tem sido
apresentada em conjunção com diversas outras, dando
lugar a várias interpretações distintas da
teoria. Apontaremos as principais.
b1. Interpretação "ortodoxa". Por
ter sido elaborada por Bohr e seus colaboradores, essa posição
é também conhecida como "de Copenhague".
Não podemos fazer justiça aqui às sutilezas
e divergências existentes dentro dessa posição.
Uma das versões mais radicais sustenta que, ao contrário
de todas as demais teorias físicas, a MQ não tem como
objetivo descrever nenhuma realidade transcendente aos fenômenos.
Sua função seria apenas descrever e correlacionar
os fenômenos com o auxílio de um formalismo cujos conceitos
não devem ser entendidos como contrapartes teóricas
de uma realidade objetiva. Os filósofos chamam esse tipo
de posição de instrumentalismo. A teoria seria mero
instrumento de predição ou cálculo. Ao deixar
de tratar do plano ontológico, a teoria abdicaria por conseqüência
de sua função explicativa. Assim, nessa variante da
interpretação "ortodoxa" a MQ não
explicaria nada sobre o mundo real extra-fenomênico. Outra
versão pende para a posição filosófica
do idealismo. Neste caso, a teoria é entendida como se referindo
a uma realidade, mas esta deixa de ser entendida como objetiva:
ela seria relativa aos agentes de observação. A famosa
doutrina da "complementaridade" desenvolvida por Bohr
é parte dessa perspectiva.
b2. Interpretação das "potências".
Ao contrário da posição anterior, não
há aqui nenhum distanciamento da visão filosófica
do realismo científico, segundo a qual a ciência
objetiva a descrever uma realidade independente de qualquer observação
ou cognição. Aceita-se, no entanto, o desafio de reformular
radicalmente as concepções de realidade associadas
às teorias clássicas. Em particular, procura-se conceber
uma ontologia compatível com a informação contida
nas funções de onda quântica. Uma das conseqüências
seria a presença no mundo de objetos aos quais não
se poderiam atribuir o conjunto inteiro das propriedades clássicas.
Um elétron num estado quântico que não permita
o cálculo de uma velocidade (por exemplo) na realidade não
teria velocidade alguma; ou, alternativamente, deve ser concebido
como tendo uma infinidade de velocidades "potenciais".
O grande desafio dessa proposta está em determinar fisicamente
as condições em que essas "potências"
se atualizariam, e em descrever esse processo matematicamente. (A
sugestão "ortodoxa" de que é a própria
mensuração, qua ato de observação
por um agente consciente, que determina essa transição,
é rejeitada como subjetivista.) Esse programa comporta presentemente
algumas linhas de investigação bastante promissoras.
b3. Interpretação dos "muitos mundos".
Outra proposta que tem merecido a atenção de especialistas,
não obstante a estranheza que causa, é a de que todas
as propriedades que na posição anterior são
dadas como meramente potenciais de fato existem simultaneamente.
Como não observamos isso, ou sequer conseguimos conceber
tal coisa, sugere-se que cada um desses valores "existe"
num mundo diferente. Haveria, pois, uma multiplicidade infinita
de universos, que aumenta incessantemente. O caráter definido
de nossas observações se deveria ao fato de que nós
próprios existimos em versões múltiplas, e
em cada uma delas estamos associados a um conjunto definido de valores
das grandezas físicas dos objetos com os quais interagimos.
Concluindo...
Esta breve apresentação
indicou que mesmo a nossa mais poderosa e bem sucedida teoria física
não está isenta de dificuldades teóricas, conceituais
e filosóficas. Se é verdade que tais dificuldades
não têm obstado à aplicação prática
da teoria, revelam, por outro lado, as limitações
do intelecto humano na compreensão mais profunda da realidade
que nos cerca. Seu estudo incessante por parte de um pequeno, mas
prestigioso, grupo de cientistas tem contribuído de forma
expressiva para a descoberta de intrigantes características
da realidade, alargando, ao mesmo tempo, nossos horizontes de investigação.
Sugestões
de leitura:
Dos muitos livros de divulgação
sobre os fundamentos da MQ poucos são recomendáveis.
Entre os melhores incluiríamos: Squires, E. The Mystery of
the Quantum World (Bristol, Adam Hilger, 1986); d'Espagnat, B. A
la Recherche du Réel (Paris, Bordas, 1979; versão
inglesa: In Search of Reality, New York, Springer-Verlag, 1983);
Gribbin, J. In Search of Schrödinger's Cat (London, Corgi Books,
1984), edição em português: "À procura
do Gato de Schrödinger" (editora Presença, Lisboa,
Portugal); Herbert, N. Quantum Reality (London, Rider, 1985). Para
leitores mais avançados indicamos o excelente Le Réel
Voilé, de B. d'Espagnat (Paris, Fayard, 1994; também
disponível em inglês, The Veiled Reality.)
Silvio Seno Chibeni é professor
do departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Unicamp