Interpretando
a lei e vendo o direito canônico, o arcebispo escolheu um
modo inoportuno para marcar a posição da igreja
-----------------------------
A ADIÇÃO RESOLVIDA pelo reverendíssimo arcebispo
José Cardoso Sobrinho coroou seus 75 anos de vida com uma
notoriedade na qual se mesclam as parcelas humanas do título,
mais o direito canônico e o direito penal em um país
católico. Quanto ao primeiro, sabe o bispo que, na história,
a posição da Igreja Católica variou. A posição
mais branda surgiu no século 13, devido a uma interpretação
do Êxodo (21, 22, 23), modificada no século 16, quando
voltou à firme reprovação do aborto.
Fui pesquisar a matéria, em várias fontes jurídicas.
Também tratei de ver posições de outras igrejas
cristãs em mais de um país. Se o resultado interessar
ao leitor, aí vai. Artigo de Pio Cipriotti na "Enciclopédia
Del Diritto" (Giuffrè), tratando do assunto no direito
canônico, encontrou referência ao aborto terapêutico.
Neste, o risco para a mãe, equiparado a verdadeiro estado
de necessidade, abranda a punição, mas não
a exclui. Chega conforme as circunstâncias, à dispensa
da chamada "sententia lata", da excomunhão automática,
aplicada pelo bispo, para todos os que, diretamente, tiveram interferência
no abortamento. A interpretação radical predominou
para o bispo, afastada a mais branda, viável em circunstâncias
como as do estupro e as do sério risco para a vida da menina-gestante
de gêmeos aos nove anos de idade.
Fora do catolicismo, a opinião mais severa é partilhada
em segmentos muçulmanos da Nigéria, em que uma jovem
estuprada não teve acolhida para sua queixa, isento, porém,
o estuprador. Avaliações menos drásticas existem
em países cristãos em que predominam as religiões
protestantes. Contemplam, com maior abertura, o aborto terapêutico
e o desejado pela estuprada.
No Brasil, a lei é bem clara. No aborto praticado pela gestante
ou com seu conhecimento (Código Penal, art. 124), a pena
é de detenção de um a três anos. Nesse
caso, dá-se a interrupção da gravidez, sem
considerar o tempo decorrido desde a concepção ou
qualquer risco para a paciente. A lei brasileira distingue a conduta
para aborto praticado sem o consentimento da gestante (reclusão
de três a dez anos).
A forma mais agravada é a do parágrafo único
do artigo 126, cabível quando a gestante não é
maior de 14 anos ou é débil mental ou, ainda, se seu
consentimento para abortar é obtido mediante fraude, grave
ameaça ou violência.
O caso da menina estuprada está referido no artigo 128 do
Código Penal: não se pune o aborto praticado por médico,
considerado imprescindível para salvar a vida da gestante
ou na gravidez advinda de estupro. O abortamento deve ser precedido
pelo consentimento da gestante ou, sendo ela incapaz, de seu representante
legal.
O estupro, em nossa lei penal, é crime contra a liberdade
sexual, muito mais grave que o aborto. Consiste em constranger mulher
à conjunção carnal mediante violência
(real ou presumida) ou grave ameaça, sujeitando o autor à
pena de reclusão de seis a dez anos, nos termos da lei nº
8.072 /90, que alterou o artigo 213 do Código Penal.
Interpretando a lei e vendo o direito canônico, ao dizer que
o estupro pode ser perdoado, mas o aborto não, o arcebispo
escolheu um modo inoportuno para marcar a posição
da igreja. Esqueceu as alternativas da penitência e do perdão,
antes da excomunhão radical.