José Luís Caon é graduado em Letras,
Filosofia e Psicologia, especialista em Filosofia pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e mestre em Psicologia
Clínica pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul – PUCRS. Doutorou-se em Psicopatologia
pela Universidade Denis Diderot, Paris VII, na França. Lecionou
psicopatologia no Departamento de Psicanálise e Psicopatologia
do Instituto de Psicologia da UFRGS até 2003. Atualmente, dedica-se
à Psicanálise nos âmbitos da clínica, ensino,
supervisão, pesquisa e estudos.
IHU On-Line – O que quer dizer
a metapsicologia do perdão? O que ela envolve?
José Luís Caon –
Essa expressão – “metapsicologia do perdão”
– eu a inventei a partir de leituras comparativas de duas obras
de Sófocles e de duas obras de Freud : “Édipo
Tirano” e “Édipo em Colono” de Sófocles
e “O chiste e suas relações com o inconsciente”
(Freud, 1905c) e “Sobre o humor” (Freud, 1927d).
O estudo dessas obras e minhas vivências e experiência
de vida, também como “psicanalisante”, psicanalista
e pesquisador psicanalítico, me renderam alguns trabalhos.
Um deles que está publicado na Revista Veritas, vol. 43, n.
1, março de 1998, p. 81-90, justamente com o título
“Metapsicologia do perdão”.
Não é preciso ter sido educado no fundamentalismo católico
apostólico romano para se saber o que são a vivência
e a experiência da culpa e do perdão. Sófocles
aproveita o mito do Édipo para criar um drama célebre,
“Édipo Tirano” e, em seguida, extrai dele o ensinamento
que aparece em “Édipo em Colono”, onde Sófocles
faz Édipo aprender a reconciliação, o perdão
a si mesmo e, assim, encontrar a paz mental e terminar seus dias,
ficando de bem com sua história pessoal muito original. Sófocles
faz Édipo dar a volta por cima: parricida e incestuoso, Édipo,
duas vezes criminoso, vê que não passava de instrumento
e vítima de um destino cujo sentido pode ser outro, se lido
doutra maneira possível, maneira essa descoberta por Édipo,
como se vê Sófocles nos mostrando isso em “Édipo
em Colono”. Édipo consegue perdoar-se a si mesmo. Pelo
menos três vezes, Sófocles nos indica em “Édipo
em Colono” essa reviravolta na história de vida de Édipo.
1) No verso 273, ou p. 80, na tradução
de Paul Mazon, encontramos: “... c’est sans rien savoir
que j’en suis venu où j’en suis venu” (É
sem saber que eu cheguei aonde cheguei). 2) Nos versos 521-4, ou p.
100, em Paul Mazon, “J’ai subi, étranger, j’ai
subi le crime, bien contre mon gré, les dieux m’en soient
témoins. Rien dans tout cela ne fût volontaire”
(Eu padeci, estrangeiro, eu padeci o crime, bem contra minha vontade.
Os deuses me são testemunhas. Nada daquilo foi voluntário).
3) Versos 960-4, ou p. 118, em Paulo Mazon: “Ta bouche déverse
sur nous meurtres, mariages, malheurs de toute sorte, malheurs que
j’ai subis, hélas! Bien malgré moi, mais tel était
le bon plaisir des dieux...” (Tua boca [Creonte], esparrama
sobre mim e minha gente assassinatos, casamentos incestuosos, infelicidades
de todo o tipo, infelicidades que eu padecia, ai de mim! Mas tal era
a predestinação que agradava aos deuses).
Ferida narcísica
Igualmente Freud, pela via do processo do humor, auto-humor,
mostra que o eu não é somente castigado pelo supereu
(tradição), mas, também aprovado e encorajado
nas iniciativas e rebeldias. Não basta apropriar-se daquilo
que herdamos dos pais (tradição), como Freud, apoiando-se
em Goethe , nos repete; eles deviam dizer que é necessário
que também abandonemos radical e definitivamente aquilo que
não nos foi dado.
Por exemplo, observemos a criancinha que é levada diariamente
para a escola infantil pelos pais e depois lá buscada. Ela
aprende a dramatizar essas vivências e experiências de
separação. A criança inventa jogos dramáticos.
Por exemplo, o jogo de atirar longe um objeto para depois ir buscá-lo
e triunfar gozosamente na hora de encontrá-lo. Nesse jogo,
a criança, do “passivamento” que lhe permite suportar
a separação, passa à ativação da
separação pela via da dramatização simbólica.
Onde ela era objeto paciente e padecente, agora ela é sujeito
agente e triunfante. Nessa transformação, ela se “perdoa”
pela incapacidade inerente à vida de criança e, embora
num processo dramático, mas simbólico, ela transforma
o padecimento da separação em jogo aventuroso de separações.
Torna o percalço em pedra fundamental de início de aventura.
A culpa mais parece que é, ao mesmo tempo, uma gangrena psíquica
do perdão e da responsabilidade pessoais. E pode servir para
apontar a ferida narcísica que se deteriorou em pústulas.
Limpar o pus pode permitir que a ferida cicatrize, mas a limpeza somente
não é suficiente se a natureza (a psique) não
se dispuser ao processo da verdadeira cicatrização.
Aquilo que Sófocles ensina pelo “Édipo
em Colono”, Freud ensina pela abordagem ao chiste e ao humor.
De fato, o povo em sua sabedoria nos diz: “rir é o melhor
remédio”. Então, aderir a “risadarias”
curaria? Não tomemos ingenuamente o modelo explicativo do poeta
Sófocles e do arquipesquisador psicanalítico Freud como
o edifício mesmo.
Autoperdão
Podemos aceitar igualmente que a insubordinação
e mal-estar de Sófocles perante o destino se alinha à
insubordinação e mal-estar de Freud perante a civilização,
especialmente ocidental. Aquilo que para Sófocles aparece em
“Édipo Tirano”, como culpa, mal-estar, padecimentos
psíquicos sem sentido, em “Édipo em Colono”
aparece como autoperdão, reconciliação consigo
mesmo e com a própria história e, por que não,
uma certa felicidade psíquica. Isso dá sentido a esses
saberes, a psicanálise é um, que apostam que existe
vida antes da morte. Aquilo que para Freud aparece em “O descontente
na cilivização” (ou cultura) (Freud, 1930a), como
culpa, mal-estar, padecimentos psíquicos sem sentido, em “Humor”
(1927) aparece como autoperdão, auto-humor, reconciliação
consigo mesmo e com a própria história. É divertido
ouvir os descontentes pós-pós-modernos reunidos em happy
hours, que ainda se chamam de congressos, clamando contra os infortúnios
da civilização/cultura, ao redor de mesas bem servidas
com os melhores pastos e as melhores beberagens. O destino para Sófocles,
a civilização para Freud, são nossa tradição:
devemos nos apropriar daquilo que herdamos, responsabilizando-nos
por essa herança. Não devemos esperar encontrar aquilo
que não nos foi dado por herança. Mas podemos inventar!
O autoperdão é uma invenção a que cada
um pode se dedicar.
De fato, podemos tornar o percalço em pedra
angular e fundamento para nossas partidas originais e diferenciadoras.
Vimos que o “galo”, tema de vergonha, pôde se tornar
tema de orgulho de uma comunidade. Aprendemos que o “sabugo”,
objeto higiênico primitivo, pode tornar-se de assunto vergonhoso
em tema de orgulho. E assim galo e sabugo são erigidos em monumento.
Uma mesma cicatriz pode ser lida como sinal de vergonha ou como sinal
de orgulho. Mas o pus da gangrena será sempre pus. Pode ser
afastado, mas a ferida continua...
A “metapsicologia do perdão” é
uma contribuição da pesquisa psicanalítica em
que a culpa, esse mal menor (isto é, menos doloroso), é
substituído pela aceitação da ferida no Narciso
da gente, mal maior (isto é, mais doloroso), cuja cicatriz
mortifica a prepotência, a onipotência, a vaidade, enfim,
o nosso Narciso: não éramos mesmo lá aquela coisa
para termos podido evitar aquilo que só aceitaríamos
como culpa.
IHU On-Line – Qual é a importância
do perdão dentro das relações humanas?
José Luís Caon –
Essa pergunta é interessante. Mas as relações
humanas não são objeto da pesquisa psicanalítica:
o objeto da pesquisa psicanalítica é o inconsciente,
seja na concepção de Freud, seja na concepção
de Lacan , que é uma revolução a partir da revolução
de Freud. Quando um psicanalista fala das relações humanas
para o público, ele o faz como um cidadão que se apoia
nos conhecimentos da filosofia, da antropologia, da psicologia, da
pedagogia, da sociologia, etc.
IHU On-Line – Como podemos compreender a universalidade
da importância do perdão e a dificuldade em concedê-lo?
José Luís Caon –
Quem consegue se perdoar pode conseguir perdoar o outro, sem depender
de um catecismo de moral regional ou universal.
IHU On-Line – O que o perdão pode ensinar
à humanidade em termos de tolerância e convivialidade
em nosso mundo atualmente?
José Luís Caon –
O perdão, se for realmente perdão (autoperdão),
e não um entusiasmo compartido e “intersugestionado”,
é ele mesmo muito mais fruto de convívio e tolerância
do que causa de convívios e tolerância. Se a tradição,
o que herdamos dos pais, é convívio e tolerância,
perdoar-se é aceitar, relançar essa tradição
com alguma participação diferenciadora, isto é,
tirar algum proveito da tradição. Uma tradição
de intolerância e “inconvívios” pode ser
considerada tradição? Não seria antes estagnação
e necrose? O perdoar-se, como tal, poderia então aprofundar
e alargar os convívios e a tolerância. Nesse contexto
de tolerância e convivialidade, as relações humanas
serão necessariamente diferentes das relações
humanas num contexto de intolerância e hostilidade. O estar
bem consigo mesmo proporciona que boas relações humanas
sejam bem aproveitadas quando existem. Mas poderá proporcionar
que más relações humanas sejam aproveitas quando
as se têm? Parece que somos capazes de alguns atos de perdão,
para conosco mesmo e para com os outros, mas “o perdão”,
como um ato total e perene, isso me parece inconcebível.
IHU On-Line – Perdoar não significa
esquecer. Como o sujeito contemporâneo pode lidar com esse binômio
para que não haja a preponderância do rancor ou do esquecimento?
José Luís Caon –
Esquecer é um aspecto do viver, mas o “desesquecer”
é também um aspecto do viver. O esquecer está
para o “desesquecer” como o côncavo está
para o convexo. Esquecer mal e “desesquecer” mal repercutem
em muitos padecimentos, como os rancores calados, os ressentimento
secretos, e todas essas vivências e experiências dolorosas
para as quais até mesmo as palavras mais sentidas dos poetas
e dos falantes mais facundiosos só raramente conseguem nos
amparar. O esquecer e o “desesquecer”, como muitos sugerem,
podem ser mostrados a partir do desnudamento. Como sempre andamos
nus debaixo da roupa, por mais ou menos ocultadora que ela seja, ela
também revela menos ou mais a nudez. A concepção
de nudez para os índios que andam totalmente pelados não
pode ser a concepção de nudez que nós da “civilização”
temos. Seria um desafio muito curioso um grupo de dançarinas
totalmente nuas realizar um certame de striptease! Ora, as índias
que andam totalmente peladas devem saber fazer isso! Nós, esquecendo,
“desesquecemos” e, “desesquecendo”, esquecemos.
Este é um método que ultimamente tem sido muito fecundo
em diversos ramos de pesquisa de ponta, especialmente na psicanálise,
a psychoanalytische Forschung de Freud ou a recherche psychanalytique
de Lacan. Pesquisa psicanalítica não é uma granada
que o terrorista joga no pátio dos psicanalistas brasileiros;
é uma bússola que permite achar o caminho em referência
a um norte.
IHU On-Line – Em geral, perdoar tem uma fundamentação
religiosa para as pessoas. Como podemos compreender o mecanismo do
perdão naquele que não tem uma religião, uma
crença na transcendência?
José Luís Caon –
Perante as pesquisas teológicas, podemos guardar silêncio
essencial sem termos que professar ateísmo.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum
aspecto não questionado?
José Luís Caon –
Sim. Há pouco mais de 100 anos, a civilização
ocidental inventou a situação psicanalítica de
tratamentos. A confissão católica, a direção
espiritual, os aconselhamentos, as consultas médicas, as terapias
de apoio, as supervisões, os exames orais, os tribunais jurídicos,
embora se diga que nesses se privilegia o foro externo, neles também,
como nos outros procedimentos citados, se lida com aquilo que ressoa
na psique das pessoas: a angústia. A angústia das pessoas
é moeda que transita por todos esses espaços. Dostoievski
faz um personagem dizer mais ou menos o seguinte: há coisas
que somente contamos a um grande amigo na confiança de que
ele não nos traia; há coisas que tememos contar até
para nós mesmos; há coisas que nem para nós mesmos
somos capazes de contar. A escuta psicanalítica escuta preponderantemente
certos indícios que impedem ao “psicanalisante”
ser capaz de soltar a palavra dele mesmo. Até o presente, somente
a clínica psicanalítica é capaz desse procedimento.
E ela começou com Freud. E continua, sem triunfar, ao lado
da religião que sempre (?) triunfa. A psicanálise não
triunfa, apenas sobrevive, e sobreviverá enquanto houver pelo
menos um psicanalisante (o original e verdadeiro praticante da psicanálise).