Foi no Instituto Celeste de Pitágoras que vim encontrar, nestes
últimos tempos, a figura veneranda de Sócrates, o ilustre
filho de Sofronisco e Fenareta.
A reunião, nesse castelo luminoso dos planos
erráticos, era, nesse dia, dedicada a todos os estudiosos vindos
da Terra longínqua. A paisagem exterior, formada na base de substâncias
imponderáveis para as ciências da atualidade, recordava
a antiga Hélade, cheia de aromas, sonoridades e melodias. Um
solo de neblinas evanescentes evocava as terras suaves e encantadoras,
onde as tribos jônias e eólias localizaram a sua habitação,
organizando a pátria de Orfeu, cheias de deuses e harmonias.
Árvores bizarras e floridas enfeitavam o ambiente de surpresas
cariciosas, lembrando os antigos bosques de Tessália, onde Pan
se fazia ouvir com as cantilenas de sua flauta, protegendo os rebanhos
junto das frondes ventustas, que eram as liras dos ventos brandos, cantando
as melodias da Natureza.
O palácio consagrado a Pitágoras tinha
aspecto de severa beleza, com suas colunas gregas à maneiras
das maravilhosas edificações da gloriosa Atenas do passado.
Lá dentro, agasalhava-se toda uma multidão
de Espíritos ávidos da palavra esclarecida do grande mestre,
que os cidadãos atenienses haviam condenado à morte, 399
anos antes de Jesus Cristo.
Ali se reuniam vultos venerados pela filosofia e pela
ciência de todas as épocas humanas, Terpandro, Tucidides,
Lísis, Esquines, Filolau, Timeu, Símias, Anaxágoras
e muitas outras figuras respeitáveis da sabedoria dos homens.
Admirei-me, porém, de não encontrar ali
nem os discípulos do sublime filósofo ateniense, nem os
juízes que o condenaram à morte. A ausência de Platão,
a esse conclave do Infinito, impressionava-me o pensamento, quando,
na tribuna de claridades divinas, se materializou aos nossos olhos o
vulto venerando da filosofia de todos os séculos. Da sua figura
irradiava-se uma onda de luz levemente azulada, enchendo o recinto de
vibração desconhecida, de paz suave e branda. Grandes
madeixas de cabelos alvos de neve molduravam-lhe o semblante jovial
e tranqüilo, onde os olhos brilhavam infinitamente cheios de serenidade,
alegria e doçura.
As palavras de Sócrates contornaram as teses
mais sublimes, porém, inacessíveis ao entendimentos das
criaturas atuais, tal as transcendência dos seus profundos raciocínios.
À maneira das suas lições nas praças públicas
de Atenas. Falou-nos da mais avançada sabedoria espiritual, através
de inquirições que nos conduziam do âmago dos assuntos;
discorreu sobre a liberdade dos seres nos planos divinos que constituem
a sua atual morada e sobre os grandes conhecimentos que esperam a humanidade
terrestre nos seu futuro espiritual.
É verdade que não posso transmitir aos
meus companheiros terrenos a expressão exata dos seus ensinamentos,
estribados na mais elevada das justiças, levando-se em conta
a grandeza dos seus conceitos, incompreensíveis para as ideologias
das pátrias no mundo atual, mas, ansioso de oferecer uma palavra
do grande mestre do passado aos meus irmãos, não mais
pelas vísceras do corpo e sim pelos laços afetivos da
alma, atrevi-me a abordá-lo:
- Mestre - disse eu -, venho recentemente da Terra distante,
para onde encontro possibilidade de mandar o vosso pensamento. Desejaríeis
enviar para o mundo as vossas mensagens benevolentes e sábias?
- Seria inútil - respondeu-me bondosamente -,
os homens da Terra ainda não se reconheceram a si mesmos. Ainda
são cidadãos da pátria, sem serem irmãos
entre si. Marcham uns contra os outros, ao som de músicas guerreiras
e sob a proteção de estandartes que os desunem, aniquilando-lhes
os mais nobres sentimentos de humanidade.
- Mas... - retorqui - lá no mundo há uma
elite de filósofos que se sentiriam orgulhosos de vos ouvir!...
- Mesmo entre eles as nossas verdades não seriam
reconhecidas. Quase todos estão com o pensamento cristalizado
no ataúde das escolas. Para todos os espíritos, o progresso
reside na experiência. A história não vos fala do
suicídio orgulhoso de Empédocles de Agrigento, nas lavas
de Etna, para proporcionar aos seus contemporâneos a falsa
impressão de sua ascensão para os céus? Quase todos
os estudiosos da Terra são assim; o mal de todos é o enfatuado
convencimento de sabedoria. Nossas lições valem somente
como roteiro de coragem para cada um, nos grandes momentos de experiência
individual, quase sempre difícil e dolorosa.
Não crucificaram, por lá, o Filho de Deus,
que lhes oferecia a própria vida para que conhecessem e praticassem
a Verdade? O pórtico da pitonisa de Delfos está cheio
de atualidade para o mundo. Nosso projeto de difundir a felicidade na
Terra só terá realização quando os Espíritos
ainda encarnados deixarem de ser cidadãos para serem homens conscientes
de si mesmos. Os Estados e as Leis são invenções
puramente humanas, justificáveis, em virtude da heterogeneidade
com respeito à posição evolutiva das criaturas;
mas, enquanto existirem, sobrará a certeza de que o homem não
se descobriu a si mesmo, para viver a existência espontânea
e feliz, em comunhão com as disposições divinas
da natureza espiritual. A Humanidade está muito longe de compreender
essa fraternidade no campo sociológico.
Impressionado com estas respostas, continuei a interrogá-lo:
- Apesar dos milênios decorridos, tendes a exprimir
alguma reflexão aos homens, quanto à reparação
do erro que cometeram, condenando-vos à morte?
- De modo algum. Mélitos e outros acusadores
estavam no papel que lhes competia, e a ação que provocaram
contra mim nos tribunais atenienses só podia valorizar os princípios
da filosofia do bem e da liberdade que as vozes do Alto me inspiravam,
para que eu fosse um dos colaboradores na obra de quantos precederam,
no planeta, o pensamento e o exemplo vivo de Jesus Cristo.
Se me condenaram à morte, os meus juízes
estavam igualmente condenados pela natureza; e, até hoje, enquanto
a criatura humana não se descobrir a si mesma, os seus destinos
e obras serão patrimônios da dor e da morte.
- Poderíeis dizer algo sobre a obra dos vossos
discípulos?
- Perfeitamente - respondeu-me o sábio ilustre
-, é de lamentar as observações mal avisadas
de Xenofonte, lamentando eu igualmente, que Platão, não
obstante a sua coragem e seu heroísmo, não haja representado
fielmente a minha palavra junto dos nossos contemporâneos e dos
nossos pósteros. A História admirou na sua Apologia
os discursos sábios e bem feitos, mas a minha palavra não
entoaria ladainhas laudatórias aos políticos da época
e nem se desviaria para as afirmações dogmáticas
no terreno metafísico. Vivi com a minha verdade para morrer com
ela. Louvo, todavia, a Antístenes, que falou com mais imparcialidade
a meu respeito de minha personalidade que sempre se reconheceu insuficiente.
Julgáveis então que me abalançasse, nos últimos
instantes da vida, a recomendações no sentido de que pagasse
um galo à Esculápio? Semelhante expressão, a mim
atribuída, constitui a mais incompreensível das ironias.
- Mestre, e o mundo? - indaguei.
- O mundo atual é a semente do mundo paradisíaco
do futuro. Não tenhais pressa. Mergulhando-me no labirinto da
História, parece-me que as lutas de Atenas e Esparta, as glórias
do Pártenon, os esplendores do século de Péricles,
são acontecimentos de há poucos dias; entretanto, soldados
espartanos e atenienses, censores, juízes, tribunais,
monumentos políticos da cidade que foi a minha pátria
estão hoje reduzidos a um punhado de cinzas!... A nossa única
realidade é a vida do Espírito.
- Não vos tentaria alguma missão de amor
na face do orbe terrestre, dentro dos grandes objetivos da regeneração
humana?
- Nossa tarefa, para que os homens se persuadam com
respeito à Verdade, deve ser toda indireta. O homem terá
de realizar-se interiormente pelo trabalho perseverante, sem o que todo
esforço dos mestres não passará do terreno puro
verbalismo.
E, como se estivesse concentrado em si mesmo, o grande
filósofo sentenciou:
- As criaturas humanas ainda não estão
preparadas para o amor e para a liberdade... Durante muitos anos, ainda,
todos os discípulos da verdade terão de morrer muitas
vezes!...
E, enquanto o ilustre sábio ateniense se
retirava do recinto, junto de Anaxágoras, dei por terminada a
preciosa e rara entrevista.
Fonte: CAMPOS,
Humberto; XAVIER, Francisco Cândido. Crônicas de além-túmulo,
Rio de Janeiro: FEB.

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