Denúncias do "maldito"
Sua história já foi contada em papel
e película, mas nunca as palavras ou as cenas replicadas
apagaram de Austregésilo Carrano Bueno as
lembranças dos três anos e meio em que ficou internado
em instituições psiquiátricas do Paraná.
Neste período, foi submetido a 21 eletrochoques e a medicamentos
pesados, que, como ele descreve, o deixaram em uma "prisão
química". A revolta com o fato de ter sido torturado
e aviltado e com a perda de anos da juventude foi canalizada para
a elaboração do livro "Canto dos Malditos",
que deu origem ao premiado filme "Bicho de Sete Cabeças",
de Laís Bodanzky. Apesar das denúncias e do sucesso
da obra cinematográfica – ou por causa disso –,
Carrano passou a ser alvo de ações judiciais que não
só cassaram seu livro, mas querem impedi-lo de continuar
fazendo as denúncias que ele vem verbalizando.
A primeira ação havia sido iniciada
por ele próprio – "entramos com a primeira ação
indenizatória por erro psiquiátrico na história
forense brasileira", como gosta de lembrar – em 1998
e acabou tendo um desfecho contrário a Carrano: ele foi condenado
a pagar R$ 60 mil. A segunda veio logo depois – iniciada por
aqueles que chama de "lobby psiquiátrico" e pelos
familiares dos psiquiatras que trataram dele – e conseguiu
que o "Canto dos Malditos" fosse calado. A terceira terá
julgamento no próximo dia 23 de maio, em Curitiba. Se derrotado,
Austregésilo Carrano Bueno não poderá mencionar
publicamente os nomes dos hospitais psiquiátricos e dos médicos
contra os quais faz denúncias, sob pena de pagar R$ 5 mil
por dia, ou ir preso.
Membro do Movimento da Luta Antimanicomial,
Carrano, tanto quanto seus companheiros, teme que a possível
condenação não seja só um ato de injustiça
contra o autor, ou um cerceamento à sua liberdade de expressão.
O receio é que a decisão represente, também,
um retrocesso na batalha pela reforma psiquiátrica que exigem,
como prevê a lei 10.216, de 2001. "É contra essa
falsa psiquiatria financista e aviltante que nós do Movimento
da Luta Antimanicomial lutamos", diz Carrano, em entrevista
exclusiva à Rets onde fala abertamente sobre os interesses
econômicos que estão por trás de suas condenações
e da permanência do modelo, segundo ele, arcaico dos hospitais
psiquiátricos brasileiros. O autor fala ainda das seqüelas
físicas e psicológicas que os anos de internação
lhe deixaram, sobre como se voltou para a área da cultura,
a necessidade de punir devidamente os erros de psiquiatras (o que
a legislação não prevê atualmente), as
condições subumanas de dentro dos hospícios
e sobre como foi reviver a sua história depois do lançamento
do filme. "Não assisto mais. É muita emoção",
diz ele.
[No final da entrevista, há informações
sobre como se mobilizar para ajudar Austregésilo Carrano
Bueno, no julgamento do dia 23.]
Rets - Você vai ser julgado
no próximo dia 23 de maio. Qual é a acusação?
Quem move a ação contra você?
Austregésilo Carrano
Bueno - Essa é a terceira ação contra
mim. A primeira foi quando eu entrei com a primeira ação
indenizatória por erro psiquiátrico na história
forense brasileira. Isso foi em 13 de maio de 1998, ou seja, há
cinco anos. Acabei sendo condenado a pagar R$ 60 mil aos meus torturadores,
aos donos das instituições psiquiátricas onde
fiquei confinado, sendo cobaia. Em 1999, por pressão do lobby
psiquiátrico, prescreveram minha ação –
o que foi inconstitucional: eu era menor e crime de tortura contra
menor não prescreve. Por exemplo, se você tem 18 ou
19 anos, atropela alguém, quem responde é o seu pai,
sua mãe. Ou seja, abaixo de certa idade, você é
tratado de modo diferente. Comigo não foi assim. Por quê?
Agora, o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh –
que também é deputado federal – pegou a primeira
ação e levou para Brasília, para o Superior
Tribunal Federal. Levou também a segunda ação
que foi movida contra mim – a cassação do meu
livro, que foi julgada em abril de 2001. Na verdade, a primeira
ação puxou a outra: eles se sentiram vitoriosos tendo
uma decisão favorável na primeira ação
e se acharam no direito de me processar por injúria e difamação.
Ainda mais depois do sucesso estrondoso do filme "Bicho de
Sete Cabeças", que recebeu 43 prêmios nacionais
e oito internacionais. Meu livro acabou sendo cassado em 2001. Foi
a primeira vez que uma obra literária foi cassada desde a
ditadura.
Agora, no próximo dia 23, vou ser julgado
pela terceira vez, também por acusações desse
lobby psiquiátrico. Eles querem que eu fique calado e não
mencione em público ou na imprensa o nome do Hospital Espírita
de Psiquiatria Bom Retiro – primeiro onde fui internado –,
da Federação Espírita do Paraná –
que é dona do Bom Retiro –, ou os nomes dos médicos-psiquiatras
que me torturaram (como o nome do doutor Alexandre Ceshi, que hoje
em dia é o diretor do Hospital Psiquiátrico Bom Retiro.
Eu já havia sido paciente dele em outro hospital psiquiátrico
em que fui internado, o Hospital Neuropsiquiátrico do Paraná,
conhecido como San Julian). Caso contrário, toda vez que
eu mencionar, exigem R$ 5 mil por dia de indenização
ou que eu seja preso.
Serei julgado na 5º Vara Cível do Fórum
de Curitiba, capital do Paraná, pelo Juiz de Direito Dr.
Sigurd Roberto Bengtsson. E, como já fui condenado nos outros
dois processos e todos esses processos estão interligados,
as minhas chances são muito pequenas, a não ser que
eu consiga um apoio popular nacional muito grande.
Rets - Que interesses estão
por trás da exigência de seu silêncio nestes
processos judiciais?
Austregésilo Carrano
Bueno - Os hospitais psiquiátricos são especializados
em loucura, e não na cura. É uma questão que
envolve interesses econômicos altíssimos. Trata-se
da terceira maior despesa do SUS, uma verdadeira mina de ouro que
ultrapassa meio bilhão de reais por ano. Consomem mais de
R$ 700 milhões para drogar, torturar e matar pessoas. É
pura exploração financeira dos nossos impostos, é
roubalheira, falcatrua da mais grosseira e aviltante a nós,
contribuintes. Esta hotelaria em hospitais psiquiátricos
é arcaica. Por contrato, o SUS paga automaticamente o mínimo
de 35 dias. A internação é prorrogada, também
automaticamente, pelo contrato.
A revisão desse contrato dos hospitais psiquiátricos
com o SUS é de extrema urgência. É falcatrua
esse contrato onde o benefício econômico vai direto
para os empresários da loucura, os donos e sócios
de hospitais psiquiátricos. Toda a Rede de Trabalhos Substitutivos
aos Hospitais Psiquiátricos (que nós defendemos no
Movimento Antimanicomial) – montada no mais simples município
do Brasil, com qualidade, respeito, humanização, reintegração
e muito convívio social e o resgate dos direitos totais de
cidadão – irá consumir apenas 50% do custo que
é pago em hotelaria em hospitais psiquiátricos.
Rets - Você recebe ameaças?
Austregésilo Carrano
Bueno - Já recebi, sim. Coisas como "você
está estimulando as pessoas a processarem os hospitais e
psiquiatras". E eu: "Quem está falando?".
Não respondiam. Ou coisas como "quando você sair
à rua, olhe para trás". Mas eu não vou
parar.
Rets - Uma vez você declarou
que o livro não foi escrito para prejudicar nenhum médico
em especial, mas para denunciar aquilo que chamou de “tortura
da falsa psiquiatria”, ajudar na luta pela reforma psiquiátrica
e exigir indenização justa para as vítimas.
Que resultados já foram obtidos na Justiça?
Austregésilo Carrano
Bueno - O meu livro não foi feito para prejudicar
nenhum psiquiatra. Foi para mostrar o que se passa dentro dos hospitais
psiquiátricos. É um livro com pele, real, onde boto
o nome da minha família. Assim, acaba mencionando nomes das
pessoas que estiveram envolvidas com o que eu passei. A partir daí,
usaram os diálogos dos pacientes no livro para argumentar
que eu estava denegrindo a imagem dos psiquiatras citados. Mas não
é.
A minha intenção é dizer: "Olhem,
tá acontecendo isto aqui". É um grito de socorro.
O livro pede que as pessoas olhem para a situação
em que indivíduos ficam à mercê de receitas
de psiquiatras. Aliás, psiquiatras cometas. Chamava de cometas
os médicos que nos atendiam, pois passavam poucos minutos
por dia nos hospitais. O resto do tempo ficávamos com enfermeiros,
técnicos em enfermagem e, às vezes, com pessoas que
nem isso eram. Eram simplesmente pessoas do bairro ou da região
contratadas para trabalharem ali, sem nenhum preparo para isso.
Não sou contra a psiquiatria, a saúde mental. Sou
contra esse modelo arcaico, cruel e criminoso que vem se aplicando
no Brasil, que é você confinar pessoas em hospitais
psiquiátricos.
Quanto aos resultados práticos, dentro do
histórico forense brasileiro, não existe ação
como a que eu iniciei. Alguém tem que levantar esta bandeira.
Essa perseguição indecente – como classifico
o que estão fazendo comigo – só faz chamar mais
atenção para a questão. Quanto mais me perseguem,
mais chama atenção para o que tem que mudar.
Rets - Fica claro que você
atribui a erros de psiquiatras o fato de ter sido internado. Mas
você guarda algum tipo de ressentimento de seu pai? [Foi o
pai de Carrano quem decidiu interná-lo. Depois de descobrir
que o filho fumava maconha, ele pediu conselho a um amigo, que recomendou
a internação. No hospital psiquiátrico, o diagnóstico
médico foi de esquizofrenia]
Austregésilo Carrano
Bueno - No meu caso, tinha 17 anos, ia prestar vestibular
para comunicação. Toda aquela fantasia, aquela esperança.
Hoje poderia estar aí, ser seu colega de trabalho. Mas não.
De repente você cai dentro de um chiqueirão onde é
tratado em condições subumanas. Tudo aquilo me foi
tirado, cortado. Me deixaram urinando e defecando em mim mesmo.
E tudo por causa de um baseadinho, que é normal um jovem
experimentar.
Na legislação sequer se toca na questão
do erro médico-psiquiátrico. Isso faz com que não
tenhamos juízes aptos para julgar esses casos, nem advogados
especializados. A decisão do psiquiatra não é
questionada, ele fica como o todo poderoso enquanto o judiciário
fica de braços cruzados. As pessoas não vêem
o que acontece dentro desses hospitais psiquiátricos: tem
estupros, assassinatos, pessoas se escondem para enganar a Justiça...
E essa é minha luta, é mostrar o que acontece lá
dentro. Por que crime psiquiátrico, no Brasil, não
é punível?
É ignorância do nosso Judiciário
com as questões referentes aos métodos usados e abusados
dentro das nossas instituições psiquiátricas
Rets - Falando dos aspectos de
saúde, você foi vítima de eletroconvulsoterapia.
Que conseqüências e seqüelas pode deixar nas pessoas?
Isso é usado ainda hoje nos hospitais psiquiátricos?
Austregésilo Carrano
Bueno - É, sim. Agora, em 10 de julho de 2002, teve
sua aprovação pelo CFM (Conselho Federal de Medicina)
para uso irrestrito, dependendo apenas da opinião do psiquiatra
para a sua aplicação. Um atraso nas questões
da reforma psiquiátrica que defendemos. Esta é a explicação
técnica da voltagem do eletrochoque: “Eletroconvulsoterapia
(ECT) é aplicada nas têmporas na freqüência
de ondas quadradas que varia de 25 mil Coulombs até 500 mil
Coulombs, de cada pulso elétrico de 0,5, 1,0 ou 2,0 millissegundos,
duração que varia de 0,2 a 0,8 segundos”. Na
prática, é a fritura do cérebro. E agora, aqui
no Brasil, incentivamos uso irrestrito nos nossos pacientes. No
papel há algumas exigências que sabemos que não
serão cumpridas.
A volta da eletroconvulsoterapia irá torturar,
traumatizar, inutilizar e até matar. E o real interesse da
volta da aplicação do eletrochoque em nossas instituições
psiquiátricas é apenas um: engordar as contas bancárias.
O SUS vai pagar ao profissional psiquiatra as aplicações
de eletroconvulsoterapia, mais uma fonte de renda fácil.
Isto é um absurdo e um crime. É risco de vida a qualquer
paciente que hoje estiver internado em algum hospital psiquiátrico
no Brasil. Isto é muito sério. Na época em
que estive internado, faziam-se muitas experiências com seres
humanos com o uso do eletrochoque. Era época da ditadura
militar, onde muitos presos políticos e indesejáveis
ao sistema ditador desapareceram dentro das instituições
psiquiátricas, morreram ou ficaram abobados, irrecuperáveis
pela queima de neurônios pelo uso do eletrochoque.
O tratamento pode fraturar o fêmur, a coluna,
o maxilar; provocar lesões cerebrais irrecuperáveis,
em grande parte pela queima e fritura de neurônios; parada
cardíaca nas aplicações; e levar a morte. São
dados provados cientificamente. Este tratamento, somado à
prisão dupla a que somos submetidos – a física
e a química –, nos tira a razão, e muitos de
nós somos transformados em verdadeiras bestas humanas, não
sabemos mais quem e o que somos. Outro risco constante é
a perda total da sua razão. O mais grave é que a aplicação
desse terrível meio de tortura depende apenas da vontade
do psiquiatra.
Foram 21 eletrochoques aplicados em mim, a seco,
numa voltagem de 180 watts, podendo chegar a 460 watts.
Rets - Dentre choques, maus tratos,
desprezo, tortura e demais situações que passou enquanto
esteve internado, o que mais te aviltou – se é que
é possível apontar alguma coisa em particular? Ou
seja, o que mais te causa revolta, que lhe foi roubado e você
não poderá recuperar de maneira nenhuma?
Austregésilo Carrano
Bueno - Tem uma frase do Rodolfo Konder [que foi exilado
duas vezes durante a ditadura, tornando-se depois jornalista, cronista,
chegando a ser Secretário de Cultura de São Paulo],
quando entrevistado pelo Amaury Jr., este tinha perguntado ao Rodolfo
se, depois de ter feito tanta coisa, de ter sido tanta coisa, se
ele não se cansava. Ele respondeu: "Amaury, quando se
é torturado, você não esquece". Tem vezes
em que eu fecho os olhos e me vejo trancado no quarto, amarrado,
com o enfermeiro vindo tirar esparadrapo da minha perna, eu cuspindo
nele e ele me dando tapa na cara. São coisas que você
não esquece. Eu perdi minha juventude, a fantasia que tinha
na época, aqueles momentos da minha vida. Durante anos, uns
cinco anos, as pessoas chegavam na minha casa e eu me escondia,
tinha medo. Fora isso, tem as seqüelas físicas. Tenho
só 12 dentes na boca, uma fissura na base craniana, perdi
parte da visão. São coisas que a gente não
esquece nunca.
Rets - Mas, só falando com
você, não parece que você tenha seqüela
nenhuma.
Austregésilo Carrano
Bueno - Graças a Deus eu tenho bom humor. Sou artista,
formado em Artes Cênicas pelo curso do Teatro Guaíra
de Curitiba. Dirigi minha revolta para outras coisas, para a luta
antimanicomial, para escrever.
Rets - Falando nisso, você
canalizou sua revolta com o que passou para a luta antimanicomial
e para a literatura, a cultura, já tendo publicado dois livros.
Está preparando mais algum? Todos eles abordam a temática
dos hospitais psiquiátricos e da reforma psiquiátrica?
Austregésilo Carrano
Bueno - Depois de "O Canto dos Malditos", publiquei
um segundo livro, chamado "Textos - Teatro", de 1994,
que são seis peças para teatro. Não é
vendido em livrarias por falta de editoras que se interessem por
livros de peças de teatro. Deste livro, três peças
já foram montadas e um texto foi premiado na ECO 92, onde
competi com o texto “Vamos Acabar com a Natureza”.
Estou escrevendo o terceiro livro, "Filhos
da noite", que é uma ficção baseada em
fatos reais. Trata-se de uma prostituta que se envolve com um garoto
de programa. A partir daí, o livro conta o que se passa na
noite de uma grande cidade, como São Paulo, Curitiba, Brasília
etc. O livro aborda questões como prostituição
infantil e tráfico de drogas. E depois fala também
da vida dentro de uma delegacia (não dentro de um presídio,
como fez "Carandiru"). A vida lá é horrível,
eu sei, pois cheguei a ser preso em brigas de juventude. São
30, 40 pessoas presas dentro de uma cela de delegacia e acabam passando
três, quatro anos lá dentro, em lugares que não
são desenhados para isso. Devo lançar no final desse
ano.
Rets - Você gostou do filme
“Bicho de Sete Cabeças”?
Austregésilo Carrano
Bueno - Gostei muito do filme, é maravilhoso. É
um trabalho de sensibilidade muito grande da Laís Bodanzky.
Meu livro é um lago, e ela conseguiu pescar os aspectos mais
importantes. É um trabalho difícil de expor uma realidade
pouco familiar às pessoas. E ela fez muito bem, as pessoas
acabam o filme tendo vivenciado, acreditando na história.
A Laís teve muita sensibilidade.
Rets - Como foi a sensação
de reviver todo esse sofrimento ao assistir ao filme?
Austregésilo Carrano
Bueno - Eu me emociono muito. Normalmente, dou palestras
pelo país, em universidades etc. E costuma-se passar o filme
primeiro e só depois acontece a minha palestra. Eu saio,
não assisto mais. É muita emoção.
Rets - Quais são os principais
pontos da Reforma Psiquiátrica e da lei federal 10.216, de
2001 (que prevê a extinção progressiva dos manicômios)
– duas das principais bases do Movimento da Luta Antimanicomial?
Austregésilo Carrano
Bueno - Somos a favor da Rede de Trabalhos Substitutivos,
montada há mais de 14 anos e apoiada pela Organização
Mundial da Saúde. As pessoas não seriam internadas,
a não ser quando estivessem em crise ou surto. A internação
seria em leitos de hospital geral, por no máximo sete dias.
Somos a favor dos hospitais-dia, aonde as pessoas que precisam de
tratamentos de saúde mental vão durante o dia e voltam
para suas casas à noite. Defendemos ainda a criação
e utilização dos Naps e Caps (Núcleos e Centros
de Atenção Psicossocial), que não são
hospitais psiquiátricos, são casas alugadas longe,
fora do espaço físico dos hospitais psiquiátricos,
nada que lembre um hospício. O paciente, chamado de usuário,
é levado a passar o dia. Acompanhado por equipes de interprofissionais,
à noite retorna ao convívio familiar e social. As
pessoas que não estão em crise poderiam ficar, socializar-se,
almoçar, namorar, politizar-se, receber a atenção
adequada de psicólogos, assistentes sociais etc. Ou seja,
poderiam receber um tratamento digno. Queremos ainda a criação
de Centros de Convivência e Cooperativas, que funcionam em
parques, praças e centros culturais, onde a produção
artística e cultural dos pacientes pode ser vendida e o lucro
é dividido entre eles, os usuários. Queremos ainda
o atendimento de psiquiatria e psicologia em postos de saúde.
Esses são os pontos principais.
Só se deve internar quando a pessoa está
em crise, e existe uma definição para isso: é
quando a pessoa está colocando em risco a vida dela ou a
de terceiros. Agora, se a pessoa está falando da lua, ou
diz que acabou de falar com o [Ayrton] Senna, ela não está
prejudicando ninguém, nem a ela mesma. Então, por
que internar, prender? Precisamos aprender a conviver com as diferenças.
Só que, como sempre, esbarra-se nos donos de hospitais psiquiátricos,
que são a terceira maior receita do SUS, aquela história.
Toda a Rede de Trabalhos Substitutivos aos hospitais psiquiátricos,
montada no mais simples município do Brasil, com qualidade,
respeito, humanização, reintegração
e muito convívio social, e o resgate de seus direitos totais
de cidadão irão consumir apenas 50% do custo que é
pago em hotelaria em hospitais psiquiátricos. Por isso os
donos de hospícios são contra essa rede, pois iremos
tirar a galinha dos ovos de ouro, que é a hotelaria em hospitais
psiquiátricos por longos meses. Nas nossas internações
no caso de crise/surto, são apenas sete dias e não
o mínimo de 35 dias acordado com o SUS.
É contra essa falsa psiquiatria financista
e aviltante que nós do Movimento da Luta Antimanicomial lutamos.
Não contra a verdadeira psiquiatria, que se preocupa em tratar,
respeitar, valorizar e lutar para sociabilizar o paciente. Segundo
dados do Ministério da Saúde, 80% dos pacientes internos
em hospitais psiquiátricos morrem lá dentro ou viram
moradores condenados, como numa prisão perpétua. Em
1998, junto com representantes da Assembléia Legislativa
de São Paulo, nós do Movimento da Luta Antimanicomial
denunciamos 30 mil covas clandestinas na Colônia Psiquiátrica
do Juqueri em São Paulo. Covas com quatro, cinco tipos de
esqueletos, ossos de pernas, cabeça e outros membros ósseos
de outros corpos.
Rets - O que está sendo
feito e como as pessoas podem contribuir para que você não
seja condenado no dia 23?
Austregésilo Carrano
Bueno - É evidente que, se eu for o vencedor desta
ação, abriremos um precedente para as centenas ou
milhares de vítimas desses empresários da loucura.
Os interesses superam a minha indenização, eles são
também muitos outros. O que se pode fazer para reverter esta
perseguição indecente que o lobby da psiquiatria e
familiares dos mesmos vêm fazendo em cima da minha pessoa
e de minha obra? Pode divulgar ao máximo esse absurdo. Enviar
e-mail, cartas, telegramas, telefonemas, abaixo-assinados repudiando
essas ações e condenações impostas a
mim à 5ª Vara Cível do Fórum de Curitiba,
ao presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, ao
Supremo Tribunal Federal, em Brasília, para ONGs nacionais
e internacionais, associações de direitos humanos.
Como serei julgado na 5º Vara Cível do Fórum
de Curitiba, seria muito interessante enviar e-mail para a Presidência
do Tribunal de Justiça do Paraná. O endereço
é prestj@tj.pr.gov.br.
Quem quiser fazer abaixo-assinados deve encaminhá-los
para o seguinte endereço: Rua José Culpi, nº
437, Santa Felicidade, Curitiba, PR, CEP 82400-370. O ideal é
que se faça isso antes da data do julgamento. Fico aberto
a sugestões que possam nos ajudar nessas ações
e também para acharmos alguma maneira de sensibilizar o jurídico
nacional e abrirmos precedentes na questão forense brasileira,
cobrando responsabilidades aos crimes psiquiátricos. Para
quem quiser consultar os meus processos, os números são:
1º ação, em que fui condenado a pagar sessenta
mil reais: Ação nº 154970-0/02, segunda instância,
Tribunal de Justiça do Paraná (estamos tentando levar
o processo para o Supremo Tribunal Federal, em Brasília).
A 2º ação, onde cassaram minha única fonte
de renda, o livro “Canto dos Malditos”, é de
nº 154/2001 e está na 8ª Vara Cível, Fórum
de Curitiba, Paraná. A 3ª ação, proibindo
meu direito à liberdade de expressão oral e escrita
em qualquer meio de comunicação, tem o nº 839/2001
e será julgada na 5º Vara Cível, às 14
horas do dia 23. O juiz responsável pelo julgamento será
o Dr. Sigurd Roberto Bengtsson.