O que escreverei aqui não tem nenhum sentimento
de revanche.
Repito o que disse ao então Card. Joseph
Ratzinger, depois Papa Bento XVI, no final do julgamento a que fui
submetido no edifício da ex-Inquisição, à
direita de quem vem da Via della Concilizione no dia 7 de setembro
de 1984:
a última palavra sobre o significado da
Teologia da Libertação não a tem o Sr., Cardeal,
nem eu, mas a Deus e a verdade da história que, no seu
tempo, virá à luz.
E parece que está vindo à lume agora,
quando o atual Presidente da Congregação da Doutrina
da Fé o arcebispo (não é ainda Cardeal) Gerhard
Ludwig Müller escreveu um livro conjuntamente com
um dos fundadores da Teologia da Libertação o peruano
Gustavo Gutiérrez com o significativo título
"Da parte dos pobres: Teologia da Libertação,
Teologia da igreja", Padua 2013. Ai se confessa claramente
que o combate contra a Teologia da Libertação estava
ligada a interesse ideológicos, próximos do capitalismo
e do status quo imperante na América. Curiosamente, o combate
contra a Teologia da Libertação se fundava na acusação,
revelada como falsa, de que se inspirava no marxismo e representava
o cavalo de Tróia pelo qual entraria o marxismo na América
Latina. O corifeu desta falsificação foi o Card. Alfonso
Lopez Trujillo de Medellin, hoje falecido, e em sua medida, tambem
o Card. Eugênio Salles do Rio de Janeiro, também falecido.
Publico este texto especialmente para leitura daqueles que insistem
em acusar a Teologia da Libertação e a mim pessoalmente
de marxistas, comunistas e outras desqualificações.
A luz tem mais direito que as trevas. E aquilo que foi verdade naqueles
dias turbulentos em que éramos perseguidos pelos Orgãos
de Segurança dos Militares e publicamente difamados por nossos
próprios irmãos de fé, continua verdade hoje
e oxalá sempre:
os pobres gritam por serem oprimidos; pertence
à missão da fé cristã ouvir este grito
e fazer o que puder para que eles, conscientizados e organizados,
possam sair daquela infame situação que não
agrada a ninguém, nem a Deus.
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O movimento eclesial teológico da América Latina,
conhecido como "teologia da libertação",
que depois do Vaticano II encontrou eco em todo o mundo, deve
ser considerado, na minha opinião, entre as correntes mais
significativas da teologia católica do século XX?.
Quem consagra a Teologia da Libertação com esta elogiosa
e peremptória avaliação histórica não
é nenhum representante sul-americano das estações
eclesiais do passado. O "certificado" de validade chega
diretamente do arcebispo Gerhard Ludwig Müller,
atual Prefeito do mesmo dicastério vaticano - a Congregação
para a Doutrina da Fé - que durante os anos 1980, seguindo
o impulso do Papa polonês e sob a direção do
então cardeal Ratzinger, interveio com duas instruções
para indicar os desvios pastorais e doutrinais que também
incluíam os caminhos que as teologias latino-americanas haviam
tomado.
- A reportagem é de Gianni Valente
e publicada no sítio Vatican Insider, 21-06-2013. A tradução
é do Cepat. -
A avaliação sobre a Teologia da Libertação
não é uma declaração que escapou acidentalmente
ao atual custódio da ortodoxia católica. O juízo,
meditado, aparece nas densas páginas do volume do qual foi
tirada a frase: uma antologia de ensaios escrita a quatro mãos,
impressa na Alemanha, em 2004, e que agora está sendo publicada
na Itália com o título "Da parte dos pobres,
Teologia da Libertação, Teologia da Igreja" (Ediciones
Messaggero, Padua, Emi).
Atualmente, o livro irrompe como um ato para encerrar
as guerras teológicas do passado e os resíduos bélicos
que de tempos em tempos brilham para espairecer alarmas que representam
ora interesses, ora pretextos. O livro é escrito pelo atual
responsável pelo ex-Santo Ofício e pelo teólogo
peruano Gustavo Gutiérrez, pai da Teologia
da Libertação e inventor da própria fórmula
utilizada para definir essa corrente teológica, cujas obras
foram submetidas a exames rigorosos durante muito tempo pela Congregação
para a Doutrina da Fé em sua longa estação
ratzingeriana, embora nunca tenha sido condenado.
O livro representa o resultado de um longo caminho comum. Müller
nunca ocultou sua proximidade com Gustavo Gutiérrez,
que conheceu em 1998 em Lima durante um seminário de estudos.
Em 2008, durante a cerimônia para o doutorado honoris causa
concedido ao teólogo Müller pela Pontifícia Universidade
Católica do Peru, o então bispo de Regensburg definiu
como absolutamente ortodoxa a teologia de seu mestre e amigo peruano.
Nos meses anteriores à nomeação de Müller
como presidente do dicastério doutrinal, foi exatamente sua
relação com Gutiérrez que foi evocada por alguns
como prova da não idoneidade do bispo teólogo alemão
para o posto que ocupou (durante 24 anos) o então cardeal
Ratzinger.
Nos ensaios da antologia, os dois autores-amigos se complementam
reciprocamente. Segundo Müller, os méritos
da Teologia da Libertação vão além do
âmbito do catolicismo latino-americano. O Prefeito indica
que a Teologia da Libertação expressou no contexto
real da América Latina das últimas décadas
a orientação para Jesus Cristo redentor e libertador
que marca qualquer teologia autenticamente cristã, justamente
a partir da insistente predileção evangélica
pelos pobres. Neste continente, reconhece Müller, a pobreza
oprime as crianças, os idosos e os doentes, e induz muitos
a considerar a morte como uma escapatória. Desde as suas
primeiras manifestações, a Teologia da Libertação
obrigava as teologias de outras partes a não criar abstrações
sobre as condições reais da vida dos povos ou dos
indivíduos. E reconhecia nos pobres a própria carne
de Cristo, como agora repete o Papa Francisco.
Justamente com a chegada do primeiro Papa latino-americano surge
com maior força a oportunidade para considerar esses anos
e essas experiências sem os condicionamentos dos furores e
das polêmicas daquela época. Mesmo afastando-se dos
ritualismos dos mea culpa postiços ou das aparentes reabilitações,
hoje é muito mais fácil reconhecer que certas veementes
mobilizações de alguns setores eclesiais contra a
Teologia da Libertação eram motivadas por certas preferências
de orientação política mais que pelo desejo
de guardar e afirmar a fé dos apóstolos.
Os que pagaram a fatura foram os teólogos peruanos e os pastores
que estavam completamente submergidos na fé evangélica
do próprio povo, que acabaram triturados ou na sombra mais
absoluta. Durante um longo período, a hostilidade demonstrada
para com a Teologia da Libertação foi um importante
fator para favorecer brilhantes carreiras eclesiásticas.
Em um dos textos, Müller (que numa entrevista de 27 de dezembro
de 2012 havia expressado a hipótese do cenário de
um Papa latino-americano depois de Ratzinger) descreve sem meias
palavras os fatores político-religiosos e geopolíticos
que condicionaram certas cruzadas contra a Teologia da Libertação:
Com o sentimento triunfalista de um capitalismo que, provavelmente,
se considerava definitivamente vitorioso, refere o Prefeito do dicastério
doutrinal vaticano, misturou-se também a satisfação
de ter negado desta maneira qualquer fundamento ou justificação
da Teologia da Libertação. Acreditava-se que o jogo
com ela era muito simples, lançando-a no mesmo conjunto da
violência revolucionária e do terrorismo dos grupos
marxistas.
Müller também cita o documento secreto, preparado para
o presidente Reagan pelo Comitê de Santa Fé, em 1980
(ou seja, quatro anos antes da primeira Instrução
sobre a Teologia da Libertação), no qual se solicitava
ao governo dos Estados Unidos da América que agisse com agressividade
contra a Teologia da Libertação, culpada por ter transformado
a Igreja Católica em arma política contra a propriedade
privada e o sistema da produção capitalista.
É desconcertante neste documento, destaca Müller, a
desfaçatez com que seus autores, responsáveis por
ditaduras militares brutais e por poderosas oligarquias, fazem de
seus interesses pela propriedade privada e pelo sistema produtivo
capitalista o parâmetro do que deve valer como critério
cristão.
Após terem passado décadas de batalhas e contraposições,
justamente a amizade entre os dois teólogos (o Prefeito da
Doutrina da Fé e aquele que durante um tempo foi perseguido
pelo mesmo dicastério doutrinal) alimenta finalmente uma
ótica capaz de distinguir as obsoletas armações
ideológicas do passado da genuína fonte evangélica
que impulsionava muitas das rotas do catolicismo latino-americano
depois do Concílio.
Segundo Müller, Gutiérrez, com seus 85 anos (e que pretende
viajar à Itália e passar por Roma em setembro), expressou
uma reflexão teológica que não se limitava
às conferências nem aos cenáculos universitários,
mas que se nutria da seiva das liturgias celebradas pelo sacerdote
com os pobres, nas periferias de Lima. Ou seja, essa experiência
básica graças à qual, como disse sempre simples
e biblicamente o próprio Gutiérrez, ser cristão
significa seguir a Jesus. É o próprio Senhor, acrescenta
Müller ao comentar a frase de seu amigo peruano, quem nos dá
a indicação de nos comprometermos diretamente com
os pobres. Fazer prevalecer a verdade nos leva a estar do lado dos
pobres.
Gianni Valente
Domingo, 23 de junho de 2013