A busca pelo conhecimento de si e a abordagem
holística do ser humano e do mundo são apenas alguns
dos aspectos comuns entre psicanálise e budismo
Que pode haver em comum entre uma tradição
religiosa de 25 séculos nascida na Índia uma sociedade
de castas altamente hierarquizada e marcada pela visão holística
do mundo e uma prática clínica inventada na Europa há
pouco mais de 100 anos, surgida como expressão de uma cultura
laica, racional e individualista? Se prestarmos atenção
aos percursos históricos, aos vocabulários, a práticas
e rituais e a certos objetivos específicos desses dois campos,
podemos ver budismo e psicanálise como universos muito distintos:
de um lado espiritualidade, contemplação e desapego ao
eu, de outro teorias leigas, dispositivos clínicos e uma prática
voltada para a ampliação da capacidade normativa do sujeito.
No entanto, um olhar mais atento perceberá que por trás
das aparentes diferenças há algumas afinidades muito importantes.
Podemos citar pelo menos quatro.
O
ponto de partida na experiência: tanto o budismo quanto a psicanálise
partem da descrição e compreensão da experiência
para desvelar a Natureza , o funcionamento do eu e para encontrar formas
mais interessantes de lidar com os problemas. Aí se percebe um
colorido fenomenológico comum a ambas as tradições
porque seu centro (o que está sempre em questão, sendo
observado e descrito) não é uma suposta natureza objetiva,
acabada e independente é a experiência de si, do mundo,
das relações com os outros, o modo como vivenciamos e
interagimos com esses fenômenos.
A ênfase na ação: embora tenham
produzido teorias complexas e arquiteturas conceituais muito sofisticadas,
budismo e psicanálise são fundamentalmente saberes ligados
a práticas, formas de intervir na existência. Tal como
a filosofia era vista na Antigüidade, budismo e psicanálise
são hoje instrumentos para agir no mundo, mais do que para simplesmente
conhecê-lo. De ambos se poderia dizer o que o filósofo
francês Georges Canguilhem disse a propósito da produção
de conhecimento na medicina: o pathos precede o logos. É porque
sofremos que somos instados a criar formas de descrever o eu, o mundo
e a vida de modo que possamos transformar nossa existência, tornando-a
mais interessante e digna de ser vivida.
O horizonte ético: em ambas as tradições,
a reflexão teórica e as práticas delas decorrentes
apontam necessariamente para uma mudança nas referências
que configuram a maneira de conceber e viver a vida. O conhecimento
de si está a serviço da transformação de
si, voltada para a construção de uma vida mais criativa
e livre de condicionamentos. Tanto no budismo quanto na psicanálise
não faz sentido separar epistemologia e ética. Conhecer
muito bem a história e os conceitos da doutrina de Buda não
faz de ninguém budista. O que define alguém assim é
a sua experiência (busca da iluminação por meio
da compreensão do vazio e do cultivo da compaixão) e não
os fundamentos teóricos que alguém é capaz de dominar.
De modo semelhante, é possível que alguém freqüente
o divã por anos a fio, a ponto de dominar o uso dos conceitos
freudianos para descrever a si mesmo e suas relações com
a vida sem que isso signifique que análise tenha de fato ocorrido.
Esta só acontece quando tem lugar uma reorganização
psíquica que testemunha uma transformação no modo
como o sujeito se posiciona frente a seu desejo, a seus ideais e às
expectativas e injunções que incidem sobre ele.
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Sofrimentos
nos impulsionam a procurar maneiras de descrever o funcionamento
humano e a relação com o mundo; alguns tentam encontrar
as respostas na religião |
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A perspectiva ecológica: tanto o budismo como
a psicanálise rompem dualidades muito típicas do modo
de pensar tradicional no Ocidente, que opõe sujeito e objeto,
cérebro e mente, corpo e ambiente, interno e externo, eu e outro.
Na perspectiva dos herdeiros de Buda e de Freud, cérebro, mente
e mundo são vistos não como realidades independentes,
mas como aspectos ou pontos de vista de uma mesma realidade, descritos
com vocabulários diferentes. Estão, portanto, completamente
imbricados uns nos outros, interagindo e influindo reciprocamente o
tempo todo. A mente ou a experiência subjetiva emerge da ação
do corpo no ambiente, é inscrita corporalmente (embodied) e está
ancorada (embedded) no mundo físico e simbólico com o
qual sustenta uma relação de afetação recíproca
permanente. Budismo e psicanálise são, portanto, incompatíveis
tanto com descrições mentalistas (nas quais o corpo é
mero suporte da atividade do espírito) quanto com o reducionismo
materialista, no qual a experiência de si é reduzida a
seus correlatos biológicos ou físicos (depressão
nada mais é do que disfunção de neurotransmissores).
É curioso observar como a ênfase na ação
e nesta visão holística ou ecológica vem encontrando
ressonância e tendo sua importância confirmada por estudos
em várias áreas do conhecimento científico: investigações
empíricas da psicologia do desenvolvimento, estudos sobre percepção
com base nas teorias ecológicas do self, pesquisas neurocientíficas
sobre a plasticidade neuronal e o impacto do ambiente na arquitetura
cerebral, entre outros.
Além disso, budismo e psicanálise são
campos plurais que abrigam tradições, movimentos e correntes
de pensamento e de prática que se diferenciaram bastante. Depois
de 25 séculos de existência, o primeiro desenvolveu grande
número de escolas, hoje distribuídas basicamente em três
grandes linhas. A psicanálise, com seus cento e poucos anos,
também se desdobrou em algumas vertentes, das quais as mais relevantes
atualmente são a lacaniana, a winnicottiana e a kleiniana.
AS TRÊS MARCAS DA EXISTÊNCIA
Para o budismo, a análise da experiência
de si, ou do eu, deve começar pela compreensão das três
marcas da existência: a primeira é a impermanência
(anitya), ou seja, a transitoriedade e a natureza condicionada de todos
os fenômenos (do eu, dos objetos do mundo, de qualquer experiência,
ou sentimento). Tudo o que existe é impermanente devido a sua
natureza composta, o que significa que tudo depende de causas e condições
para existir. Se essas cessarem, cessam também os fenômenos.
Tudo está sujeito a aparecer e desaparecer.
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Para a
filosofia budista, tudo o que existe é impermanente: pessoas,
objetos, experiências e sentimentos; quando mudam as causas,
os fenômenos cessam |
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A ausência de substância inerente, ou de
existência independente, é a segunda marca da existência
(anatman), também traduzida por não-substancialidade,
não-essencialidade, ou não-eu. Como temos dificuldade
em lidar com a impermanência e a não-substancialidade dos
fenômenos e das formas, nos agarramos a eles, acreditamos e apostamos
em sua permanência e substância.
Este apego é fonte de dukkha, outra marca da
existência e a primeira das Quatro Nobres Verdades – pedra
fundamental do budismo. Dukkha tem sido traduzido como sofrimento, mas
a melhor sinônimo talvez seja insatisfatoriedade. A existência
é inevitavelmente experimentada de forma alternada como boa ou
má, feliz ou triste, promissora ou decepcionante. Tanto na alegria
como na felicidade se encontram fontes de possíveis tristezas
e dores (a perda de um ser querido, o fim de um amor). A experiência
cíclica de satisfação e insatisfatoriedade é
inevitável, já que desejos e anseios surgem naturalmente
como decorrência do contato dos sentidos com o mundo ao redor.
Este movimento (trishna, que significa sede, ânsia) compõe
a segunda das Nobres Verdades (a causa da insatisfação),
que é sucedida pelas duas outras Nobres Verdades: a percepção
de que é possível superar o ciclo de sofrimento cíclico,
e a compreensão do meio para alcançar esta liberação:
o Caminho Óctuplo.
Com base nestas noções fica claro que
para o budismo o eu, como todos os fenômenos, não tem substância,
é uma combinação de vários elementos e tem
uma natureza condicionada, sem essência e mutável. Trata-se
de uma experiência em movimento, não uma entidade independente.
Resulta da articulação de cinco elementos, os chamados
cinco skandhas (amontoado, pilha, coleção): a forma (materialidade
física do corpo), as sensações (causadas pelo contato
com o mundo, ao qual não somos neutros), as percepções
(discriminações decorrentes desses contatos), as formações
mentais (disposições, conceituações, tendências
da ação) e a consciência. Os skandhas são
fluxos da existência que, uma vez articulados, produzem a experiência
de si. Embora descritos separadamente, eles são na verdade um
mesmo movimento, ou partes de um processo em curso. O eu, portanto,
é vazio de essência própria. Aquilo que percebemos
e veiculamos como personalidade, idiossincrasias, identidade e compulsões
são na realidade efeitos da combinação desses agregados.
É por causa de nossa ignorância (avídya, não-visão)
sobre a natureza condicionada dos fenômenos que somos levados
a atribuir solidez e permanência ao eu e a suas propriedades.
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Para o
filósofo Slavoj Zizek o budismo é a prática
ideal para os tempos neoliberais:cada vez mais se aproxima das
neurociências e já não é visto como
fenomêno exótico |
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“Estudar o budismo é estudar o eu; estudar
o eu é esquecer-se do eu; esquecer-se do eu é reconciliar-se
com todos os seres.” A frase atribuída ao grande mestre
zen do século XIII Dogen condensa muitas noções
centrais do budismo: seu núcleo e ponto de partida é a
análise da experiência (e seu aspecto mais sensível
e fundamental é a experiência de si); ao compreender sua
natureza não-substancial e transitória, abrimos caminho
para uma transformação da experiência, na qual já
não nos submetemos cegamente às causas e aos efeitos que
nos atingem incessantemente; conquistamos um grau maior de liberdade
em relação aos nossos próprios condicionamentos;
por fim, ao reconhecermos a interligação e interdependência
de todos os fenômenos e de todos os seres, podemos nos posicionar
de modo diferente em relação a eles, sendo mais livres,
mais criativos e mais compassivos. Assim, conhecimento, prática
e posicionamento ético se imbricam naturalmente.
FICÇÃO DO EU
Para Freud, o eu é uma ficção necessária
à ação. Em todas as suas versões, a psicanálise
se baseia no desenvolvimento complexo dessa idéia. Na descrição
freudiana, o ser humano é um animal que nasce prematuramente,
em condição de dependência absoluta, desde cedo
busca o amparo e a proteção necessários à
sobrevivência, e é instado a responder a solicitações
e injunções dos meios físico, biológico
e cultural. O complexo processo de constituição de um
eu capaz de se reconhecer como sujeito frente aos outros começa
com os primeiros movimentos e ações do bebê, passa
pelo mergulho da criança no universo das significações
propiciadas pelo equipamento lingüístico e pela conquista
de um lugar na cadeia de gerações e na divisão
dos sexos e segue por toda a vida, ao longo da interminável trajetória
de construção de narrativas e identificações
com as quais o indivíduo dota de sentido sua existência
pessoal.
A experiência de si, aos olhos da teoria freudiana,
é o resultado complexo, mutante e inacabado de um equilíbrio
instável entre um enorme conjunto de fatores, que vão
das exigências conflitantes de instâncias internas (id,
ego, superego), às difíceis mediações entre
desejos inconscientes e normas sociais internalizadas, mecanismos de
defesa contra a angústia, necessidades psicossomáticas
e demandas produzidas culturalmente, e assim por diante. O eu da psicanálise
é, portanto, fragmentado, governado por forças que não
domina, uma montagem mais ou menos bem-sucedida que leva o sujeito a
agir no mundo, buscar satisfações e lidar de alguma maneira
com o desamparo, a angústia e o desejo. Ele é, para usar
uma expressão do filósofo Daniel Dennett, um centro de
gravidade: não tem substância, tudo nele deriva dos efeitos
produzidos pelas interações com os outros aspectos significativos
de sua história, com o ambiente natural e simbólico que
o circunda, com as expectativas e desejos projetados sobre ele (mesmo
antes que tivesse nascido, no desejo inconsciente dos pais). O eu é
uma imagem (daquilo que vejo refletido no olhar do outro, daquilo que
suponho poder causar no outro) e uma trajetória (de identificações,
de configurações sintomáticas, de posicionamentos
subjetivos frente aos outros) que resultam dessas interações
e permitem ao sujeito projetar-se em um futuro.
Freud definiu a psicanálise como uma teoria do
funcionamento subjetivo, um método de investigação
da vida mental e uma forma de tratamento do sofrimento psíquico.
Apesar da origem médica, ele sempre recusou a subordinação
de sua criação às expectativas curativas da psicologia
e da medicina. Em sua abordagem da experiência subjetiva não
há lugar para uma normalidade cuja restituição
seria o objetivo da prática clínica. Como somos em verdade
montagens, arranjos sintomáticos mais ou menos bem-sucedidos,
o que o dispositivo analítico pretende não é a
simples redução ou eliminação de sintomas
ou do sofrimento (isto se consegue de muitas outras maneiras, de sugestão
a medicamentos), mas uma ampliação da normatividade do
sujeito, ou seja, de sua capacidade de se reposicionar subjetivamente,
de ser mais espontâneo e criativo na vida de que desfruta, não
se fixando excessivamente a imagens do eu, respostas sintomáticas
ou estereotipias da ação que limitam e estreitam seu horizonte
existencial.
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Alguns estudiosos dizem
que somos montagens, arranjos sintomáticos mais ou menos
bem-sucedidos
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Este reposicionamento é alcançado na medida
em que o dispositivo analítico oferece ao sujeito as condições
para que ele se reconheça como autor de sua própria existência.
Ao implicar-se no próprio sintoma que aparecia antes como um
alien estranho e desconhecido a assombrá-lo, o sujeito amplia
a percepção dos vários elementos e fatores que
incidiram sobre seu percurso pessoal, sobre o papel de suas escolhas
(conscientes ou inconscientes) na construção do eu que
ele é, da vida que experimenta e do mundo que habita. Assim ele
se habilita ao desprendimento de si, a ocupar sua existência com
gestos mais espontâneos e menos autocentrados, mais criativos
e menos auto-indulgentes. Deste ângulo, portanto, percebe-se que
a psicanálise e o budismo se afirmam, por caminhos distintos,
como saberes que visam a transformação da existência
e como práticas que buscam a liberdade.
INTERESSE RENOVADO
Budismo e psicanálise ocupam posições
diferentes no cenário contemporâneo. O primeiro é
a religião ou prática espiritual que mais se expande no
mundo, impulsionada por diversos fatores: a diáspora tibetana
que espalhou mestres treinados por todo o Ocidente, o ativismo cosmopolita
do Dalai Lama (a despeito do cerco promovido por autoridades chinesas),
o apelo que as práticas corporais das espiritualidades asiáticas
têm para culturas que privilegiam a atenção e o
cuidado com o corpo, a posição não proselitista
e não dogmática adotada pelos praticantes, a crítica
às pretensões racionalistas da cultura ocidental etc.
Nas últimas décadas o budismo tem sido
também alvo do interesse de certos ramos de ponta da ciência,
em especial do campo das neurociências, interessadas em explorar
a enorme riqueza de observações empíricas que sustentam
os conceitos budistas sobre a mente. Porém, de um modo que não
chega a ser surpreendente, o sucesso acarreta também embaraços:
em muitos contextos a prática budista virou moda. É chique
deixar-se fotografar em posição de lótus e exibir
em casa estátuas ou imagens do seu repertório iconográfico.
Há 25 séculos a serviço do desapego aos objetos
e ao desprendimento de si, o budismo se vê freqüentemente
transformado em técnica de otimização do desempenho
com vistas ao sucesso individual. O filósofo Slavoj Zizek chegou
a afirmar, provocativamente, que o budismo (do mesmo modo que outras
espiritualidades orientais como o taoísmo) havia se tornado a
ideologia ideal para os tempos neoliberais. De qualquer modo, ele vive
hoje um processo de intensa difusão na cultura ocidental, tem
sido menos visto como fenômeno asiático exótico
e vem dialogando cada vez mais tanto com religiões ocidentais
quanto com as ciências, em especial as neurociências.
A psicanálise, por sua vez, vive um momento de
transição. Passada a década de 90, em que sofreu
todo tipo de vaticínio sobre sua morte por obsolescência
teórica e inutilidade prática, recrudesce o interesse
por ela, tanto do lado das neurociências como da psicologia do
desenvolvimento e as ciências da cognição. Abrem-se
para a psicanálise territórios que haviam permanecido
praticamente fechados durante quase todo o século passado, especialmente
nos países do Leste europeu e na China. Por outro lado, um reposicionamento
de seu lugar vem ocorrendo na sociedade ocidental. Se na cultura psicológica
e da sentimentalidade ela ocupou papel de destaque na clínica
mental e no campo social, na atual cultura somática e das sensações
esse lugar está sendo disputado por outros dispositivos terapêuticos
e teorias centrados no corpo e na capacidade de controlar, cognitiva
ou quimicamente, disfunções e transtornos o que possui
um claro efeito dessubjetivante, na medida em que tendem a desimplicar
o sujeito de sua experiência. Hoje a psicanálise tornou-se
um dos poucos campos nos quais os indivíduos ainda são
interpelados não como meros seres biológicos ou agentes
sociais, mas na condição de sujeitos. Por isso ela anda,
por assim dizer, na contramão da cultura hegemônica. O
que para uns pode parecer uma perda – o fascínio social
de outrora se reduziu –, para outros é uma vantagem: a
psicanálise retoma cada vez mais o caminho da investigação
clínica, fonte mais fecunda de toda sua originalidade e interesse.
O diálogo entre budismo e psicanálise
jamais foi tão intenso. Nunca houve tantas oportunidades para
exploração de suas afinidades e diferenças. E isso
interessa não só a seus praticantes, mas a todos os que
se voltam à ampliação da caixa de ferramentas (como
diria Wittgenstein) para lidar com a experiência de si e suas
vicissitudes.
TRADIÇÕES
BUDISTAS |
Única
remanescente das primeiras escolas, o budismo Theravada (“caminho
dos anciãos”) predomina há séculos no
Sri Lanka, Indonésia, Malásia e Sudeste asiático.
Suas principais características são a ênfase
na vida monástica, na disciplina individual em direção
à iluminação e na concepção da
natureza humana como obstáculo a ser ultrapassado.
O
budismo Mahayana (“grande veículo”) originou-se
na Índia e de lá se deslocou, a partir do século
II, para a China, onde encontrou o taoís-mo. Daí
disseminou-se para o leste da Ásia, tendo muita força
no Japão, Vietnã e Coréia do Sul. Em contraste
com o ascetismo doutrinário theravada, a tradição
mahayana tem uma perspectiva mais universalista e inclusiva. Sua
ênfase não está na busca individual pela iluminação,
mas no esforço do bodhisatva de se dedicar ao objetivo
de iluminação de todos os seres. Outra diferença
é a concepção mahayana segundo a qual todos
os seres têm potencial para atingir a iluminação.
A natureza humana não é vista como obstáculo
a ser vencido: há uma “natureza búdica iluminada”
na humanidade, que precisa, por assim dizer, ser reencontrada
por meio do rompimento do véu de aparência dos fenômenos,
e não propriamente alcançada pelo esforço
de superação. A escola mahayana mais conhecida é
o Zen, cujas características essenciais são a recusa
violenta a intelectualizações e estratégias
gradativas de caminho espiritual. Suas práticas fundamentais
são o zazen (meditação contemplativa que
visa colocar o praticante em contato direto com a realidade),
o uso (na vertente Rinzai) do koans, na busca do satori (realização
súbita da iluminação).
O budismo Vajrayana (“veículo do
diamante”), ou budismo tântrico, é uma extensão
do Mahayana e se caracteriza pela adoção de certas
técnicas e práticas próprias. Está
presente no Tibete, Nepal, Butão, Mongólia e, com
a diáspora provocada pela invasão do Tibete, tem
seu centro em Dharamsala, norte da Índia, sede do governo
no exílio, de onde o Dalai-Lama projeta sua presença
no mundo. Por se caracterizar por um profundo esoterismo, o budismo
Vaj-rayana é cheio de símbolos, imagens e práticas
devocionais, além de ensinamentos secretos, passados direta
e oralmente pelo mestre ao discípulo. Em contraste com
o Zen, algumas de suas práticas são explicitamente
voltadas para o exercício ou cultivo da compaixão
como a metta bhavana, uma forma de meditação dirigida
ao abandono de sentimentos de apego e aversão e o desenvolvimento
da amorosidade ou da fraternidade.
Com a difusão no Ocidente, o budismo tem
dialogado com tradições filosóficas locais,
resultando na construção de versões contemporâneas
e ocidentais, como o budismo agnóstico defendido por Stephen
Batchelor, que propõe uma descrição dos ensinamentos
budistas de corte mais secular e existencialista que religioso. |
ESCOLAS
PSICANALÍTICAS |
Os três
maiores protagonistas no cenário psicanalítico pós-freudiano
são Melanie Klein, Donald Winnicott e Jacques Lacan. Cada
um desenvolveu o legado freudiano a seu modo, acrescentando contribuições
originais na teoria e na clínica. Klein ampliou o alcance
da psicanálise ao pesquisar a vida mental dos bebês
e propor inovações no tratamento de crianças
(como o uso da brincadeira como forma de atingir complexos inconscientes),
e ao fundar a análise das relações objetais,
centro de sua investigação teórico-clínica.
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Réplica do consultório
de Freud, em Viena: Klein, Winnicott e Lacan ampliaram a teoria
psicanalítica, que hoje vive momento de transição |
Winnicott, que inicialmente se alinhava com Klein,
aos poucos se desprendeu de sua influência e enfatizou a
importância dos primórdios da vida psíquica
infantil, uma fase na qual as relações de objeto
ainda estão por se formar, decisiva no processo de amadurecimento
pessoal. Essa etapa seria anterior às relações
ditadas pela lógica pulsional, e seu motor não seria
propriamente a sexualidade (uma tese, portanto, que o distingue
de Freud), mas outra força econômica do psiquismo:
a agressividade primária, mais próxima da vitalidade
dos tecidos que das tramas conflitivas interpessoais, que só
emergem posteriormente. Leitor e admirador de Charles Darwin,
Winnicott construiu uma psicanálise de forte matiz naturalista,
em que noções como as de desenvolvimento, maturação
e psique-soma são centrais. Tanto na teoria como na prática,
sua ênfase está na idéia de continuidade na
vida psíquica, em que os traumas são situações
nas quais essa continuidade é ameaçada. Sua obra
tem sido alvo de interesse renovado nos últimos anos.
Lacan voltou-se para a lingüística
de Saussure e para a antropologia de Lévi-Strauss para
produzir uma versão estruturalista da psicanálise,
com um grande número de inovações teóricas
(a tríade real, simbólico e imaginário; o
objeto a; a noção de lalíngua etc.) e um
remanejamento profundo do dispositivo clínico (o tempo
lógico, a lógica do significante). Na perspectiva
lacaniana, o que se põe como central na transformação
da vida subjetiva é a descontinuidade, a precipitação,
o salto – situações traumáticas podem
ser constitutivas e não ameaçadoras. Recentemente
vem sendo valorizada a última parte de sua obra, em que
o estruturalismo e a importância concedida à linguagem
cederam lugar a uma reflexão sobre o campo do pré-reflexivo
ou do não-discursivo na vida subjetiva. |
Fonte: Revista Mente e Cérebro
Benilton Bezerra Jr. é psiquiatra, psicanalista
e professor do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (UERJ).