Neste site usarei de forma quase constante o termo "kardecismo",
ou "espiritismo kardecista",
me referindo à forma de espiritismo que tenta seguir as diretrizes
expostas por Allan Kardec em meados do século dezenove. Creio
que esse uso, apesar de bastante disseminado, requer alguns comentários
especiais.
Há dentro do espiritismo kardecista
uma polêmica que nem sempre é muito clara, e da qual muitos
espíritas nem mesmo participam (sabiamente, diga-se de passagem!).
Segundo alguns, só haveria um único espiritismo:
o espiritismo criado, ou melhor, "codificado" e sistematizado,
por Allan Kardec. Variações disso seriam deturpações,
mudanças, crenças derivadas, mais ou menos aceitáveis,
mas nunca podendo ser denominadas "espiritismo". Quaisquer
práticas similares que não sigam a "ortodoxia kardequiana"
deveriam ser definidas como "espiritualismo" ou "mediunismo",
mas nunca "espiritismo". Isso incluiria, por exemplo, toda
uma infinidade de matizes sincréticos que se pode observar em
grupos que mesclam as visões kardequianas com as tradições
e os conhecimentos vindos das religiões africanas.
Para as pessoas que professam essa idéia de
que "espiritismo é só aquele segundo preconizado
por Kardec, sem desvios", o termo "espiritismo kardecista"
ou "kardecismo" seria, conseqüentemente, redundância
e erro. Muitas vezes, elas reforçam seu argumento dizendo que
foi Kardec que criou o termo "espiritismo" e "espírita",
invocando, explícita ou implicitamente um certo direito a monopólio
do uso destes termos.
Creio que há algumas considerações
a serem expostas com relação a isso.
Em primeiro lugar, realmente parece ser correto dizer
que Kardec criou os termos "espírita" e "espiritismo".
Uma consulta a alguns dicionários etimológicos (que tratam
da origem das palavras de uma determinada língua, tentando registrar
o momento em que elas primeiramente apareceram) parece corroborar tal
afirmação. O "Dicionário Etimológico
Nova Fronteira da Língua Portuguesa" (de Antônio Geraldo
da Cunha e colaboradores, Rio de Janeiro - RJ, Editora Nova Fronteira,
1982.) registra: espiritismo - 1875, do Fr. spiritisme, o que indica
o aparecimento do termo no português brasileiro em 1875, remetendo
à origem anterior francesa.
De modo complementar, o dicionário etimológico
francês "Dictionaire Etymologique de la Langue Française"
(Albert Dauzat - 7e édition - Librairie Larousse - Paris, 1938
- Imprimerie Larouse, 1947) registra: spirite (1858, Legoarant), ellipse
de l'angl. sprit - rapper, esprit frappeur (spirit, du lat. spiritus).
Dér.: spiritisme (1872, L.), o que parece indicar uma origem
francesa para o termo "espírita", em meados do século
dezenove.
Corroborando os dados acima, o próprio Kardec
alude ao fato de ter criado tal termo, e de ter sido inclusive criticado
por isso por contemporâneos seus, devido à introdução
de "barbarismos", segundo alguns (ou "neologismos",
em uma apreciação técnica mais isenta). Em "O
Livro dos Espíritos", logo no primeiro parágrafo
da introdução, Kardec apresenta a obra por ele "codificada"
justificando o uso do termo "espiritismo": "Para se designarem
coisas novas são precisos termos novos... Os vocábulos
espiritual, espiritualista, espiritualismo têm acepção
bem definida... ...o espiritualismo é o oposto do materialismo.
Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria,
é espiritualista. Não se segue daí, porém,
que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações
com o mundo visível. Em vez das palavras espiritual, espiritualismo,
empregamos, para indicar a crença a que vimos de referir-nos,
os termos espírita e espiritismo...".
Igualmente, Kardec discorre da seguinte maneira em
"O que é o Espiritismo ?"
(página 66 da edição 38; Federação
Espírita Brasileira). Em hipotético diálogo com
um cético, Kardec recebe a seguinte pergunta: "Pergunto-vos,
em primeiro lugar, qual a necessidade da criação de novos
termos: espírita e espiritismo, para substituir: espiritualista
e espiritualismo, que são da língua vulgar e por todos
compreendidos? Já ouvi alguém classificar tais termos
de barbarismos.".
Finalmente, em "Obras Póstumas"
(página 381; edição 27 - F.E.B.): "Criamos
a palavra Espiritismo, para atender às necessidades da causa,...".
Muita coisa leva a crer que realmente Kardec, ou o
movimento espírita francês de meados do século passado
a ele intimamente ligado, criou os termos espírita e espiritismo.
Há, contudo, algumas peculiaridades com relação
a essa criação que fazem com que tais termos possam, de
todo direito, ter um uso e uma significação bem mais elástica
do que querem os kardecistas ortodoxos mais extremados.
Em primeiro lugar, ao criar-se o termo espírita,
e espiritismo, foram utilizados radicais "vivos" da língua
francesa. É muito comum nos meios científicos evitar-se
tal prática, preferindo-se o uso de radicais que remetam à
língua grega antiga, ou ao latim (às vezes rotuladas de
"línguas mortas"), de modo a garantir um certo monopólio
com relação ao termo que se criou, e de modo também
a manter tais termos distantes do "domínio público"
e das flutuações semânticas da língua viva
onde o novo termo está aparecendo. A regras de taxonomia, nomeando
e classificando as diversas espécies de seres vivos, são
um exemplo disso.
Na verdade, o próprio Kardec parece ter tido
justamente isso em mente, criando um termo que pudesse ser claramente
entendido e utilizado por qualquer francês de sua época.
Na mesma Introdução de "O Livro dos Espíritos"
(primeiro parágrafo) já citada mais acima, Kardec afirma
claramente: "...empregamos, para indicar a crença a que
vimos de referir-nos, os termos espírita e espiritismo, cuja
forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso mesmo, apresentam
a vantagem de serem perfeitamente inteligíveis,...".
Fica claro que Kardec, ou o movimento espírita
ao qual ele estava ligado, quis criar um termo que tivesse um caráter
"público". É contraditório querer criar
um termo com feições públicas num momento inicial
e, posteriormente, querer dar a tal termo um uso monopolizado (como
querem alguns kardecistas, e como, aparentemente, quis o próprio
Kardec mais para o fim de sua vida...).
O segundo problema na criação dos termos
espiritismo e espírita, que aliás complementa o que foi
dito logo acima, é que juntamente com sua "criação"
veio sua "definição" nas obras iniciais da "codificação"
kardequiana. Na introdução de "O Livro dos Espíritos",
primeiro parágrafo, Kardec afirma: "Diremos, pois, que a
doutrina espírita ou o Espiritismo tem por princípio as
relações do mundo material com os Espíritos ou
seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão
os espíritas, ou, se quiserem, os espiritistas.".
Também, em "O que é o Espiritismo
?" (página 66, edição 38 - F.E.B.) Kardec
responde em seu hipotético diálogo com um cético:
"De há muito tem já a palavra espiritualista uma
acepção bem determinada; é a Academia que no-la
dá: Espiritualista, aquele ou aquela pessoa cuja doutrina é
oposta ao materialismo. Todas as religiões são necessariamente
fundadas sobre o espiritualismo. Aquele que crê que em nós
existe outra coisa, além da matéria, é espiritualista,
o que não implica a crença nos Espíritos e nas
suas manifestações. Como o podereis distinguir daquele
que tem esta crença? Ver-vos-eis obrigado a servir-vos de uma
perífrase e dizer: É um espiritualista que crê ou
não crê nos Espíritos.".
E ainda na mesma obra "O que é
o Espiritismo?", página 59, em hipotético
diálogo com um visitante crítico, Kardec responde: "Em
resumo, senhor, todos têm completa liberdade de aprovar ou censurar
os princípios do Espiritismo, de deduzir as conseqüências
boas ou más que lhes aprouver, porém a consciência
impõe ao crítico a obrigação de não
dizer o contrário do que ele sabe que é; ora, para isso,
a primeira condição é não falar do que não
conhece.". Kardec chega a dar uma definição extensa
do que é o espiritismo neste livro, quando, na página
50 - preâmbulo, ele afirma (as letras maiúsculas são
conforme aparecem no próprio livro): "O ESPIRITISMO É,
AO MESMO TEMPO, UMA CIÊNCIA DE OBSERVAÇÃO E UMA
DOUTRINA FILOSÓFICA. COMO CIÊNCIA PRÁTICA ELE CONSISTE
NAS RELAÇÕES QUE SE ESTABELECEM ENTRE NÓS E OS
ESPÍRITOS; COMO FILOSOFIA, COMPREENDE TODAS AS CONSEQÜÊNCIAS
MORAIS QUE DIMANAM DESSAS MESMAS RELAÇÕES. Podemos defini-lo
assim: O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza,
origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações
com o mundo corporal.".
É importante ressaltar que as definições
expostas nos três parágrafos acima se deram em uma época
em que o espiritismo já se encontrava extremamente bem desenvolvido.
Se referem aos dois primeiros livros da "codificação",
"O Livro dos Espíritos" e "O que é o Espiritismo?".
O Livro dos Espíritos é uma obra que desenvolve os aspectos
científico, filosófico, e moral (religioso) do espiritismo
em um nível de profundidade bastante pleno. Do meu ponto de vista,
muito pouco se acrescentou além dele. Não se justificaria,
portanto, definições imaturas a respeito do tema.
Como pode alguém querer criar um termo com características
"públicas", lhe dar uma definição bastante
flexível (nessas definições iniciais do termo "espiritismo"
se enquadrariam sem nenhum problema qualquer adepto do umbandismo brasileiro,
já que Kardec restringe o significado de "espírita"
apenas ao fato de crer-se na existência dos espíritos e
na possibilidade de comunicação com eles) e posteriormente
querer reverter tal situação?
Na verdade, isso é o que é pretendido
pelos que negam a umbandistas, por exemplo, o direito de (e o acerto
ao) se auto intitularem "espíritas". Isso
também foi o que pretendeu Kardec mais para o fim de sua vida,
quando afirmou, em um tom um tanto quanto metódico e autoritário:
"Criamos a palavra Espiritismo, para atender às necessidades
da causa; temos, pois, o direito de lhe determinar as aplicações
e de definir as qualidades e as crenças do verdadeiro espírita."
("Obras Póstumas"; página 381; edição
27, F.E.B.). Nessa ocasião, Kardec deixou à mostra algumas
de suas contradições internas, além de expor uma
faceta de sua personalidade por vezes excessivamente metódica
e autoritária (características essas que sem dúvida
exerciam efeitos maléficos em determinadas situações,
mas também benéficos em muitas outras, e que além
disso eram bastante compatíveis com a época e o lugar
onde viveu Kardec).
Creio que toda essa situação que cerca
a criação dos termos "espiritismo" e "espírita"
torna justo e acertado denominarmos de "Espiritismo"
qualquer atividade ou prática científico-religiosa que
tenha por base os pré-requisitos inicialmente expostos por Kardec,
ou seja: que haja uma crença na existência de espíritos;
e " que haja uma crença na possibilidade de comunicação
com eles.
Tal fato, conseqüentemente, levaria à conclusão
ou ao ponto de vista de haver várias "correntes"
ou "linhas" diferentes dentro do que se poderia chamar de
Espiritismo. Uma linha que tente se aproximar o máximo
possível dos postulados desenvolvidos por Kardec ao longo de
sua vida deveria, portanto, ser com maior precisão denominada
de "kardecismo". E é obedecendo a tais requisitos de
precisão e clareza que utilizo o termo "kardecista"
em meus artigos ao me referir a tal vertente do espiritismo.
É curioso assinalar que
talvez quem tenha utilizado pela primeira vez o termo "espiritismo
kardecista" foi justamente um dos principais seguidores
imediatos de Kardec, Henri Sausse, autor da Biographie
d'Allan Kardec (que consta da edição brasileira do livro
"O que é o Espiritismo" editado pela FEB), tendo fundado
em 1915 o jornal "Le Spiritisme Kardéciste" (citado
no livro "Allan Kardec, Pesquisa Bibliográfica e Ensaios
de Interpretação"; de Zeus Wantuil e Francisco Thiessen;
volume 3 - página 300 - FEB).
Finalmente, é importante ressaltar que registros
dicionarizados da língua portuguesa no Brasil incluem verbetes
como "kardecismo" e "kardecista" já
de longa data. Em "Novo Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa" (segunda edição, Editora Nova Fronteira,
1986), temos: kardecismo - Doutrina religiosa de Allan Kardec; kardecista
- 1. pertencente ou relativo a Allan Kardec ou ao kardecismo. 3. adepto
do kardecismo. E em "Enciclopédia Universal" (Editora
Pedagógica Brasileira LTDA, - São Paulo - 1969) temos:
kardecismo - Doutrina de Allan Kardec, espiritismo; kardecista - aquele
que adota as doutrinas de Allan Kardec. Relativo a kardecismo.
E como seria naturalmente esperado dentro de qualquer
movimento ou atividade humana, o próprio kardecismo possui
determinadas subdivisões. Um exemplo curioso disso pode
ser encontrado no site do Grupo Espírita Bezerra de Menezes -
São José do Rio Preto - SP (http://www.novavoz.org.br/).
Neste site pode ser encontrada uma página remetendo a "temas
polêmicos" (http://www.novavoz.org.br/reforma-03.htm)
e dentre os artigos abordando tais temas polêmicos há
um em especial que critica uma das vertentes do espiritismo kardecista,
os "laicos", como são denominados no artigo (http://www.novavoz.org.br/os_laicos.htm).
Os autores da página, por sua vez, seriam adeptos da "reforma",
sendo "reformistas".
Espero que a maioria dos kardecistas julgue o assunto
deste artigo, as polêmicas e minúcias expostas aqui, sem
importância. Na verdade é isso que eu mesmo penso a respeito
disso.
Acho importante, contudo, discorrer sobre esse tema
para buscar um certo grau de exatidão no uso de determinadas
palavras neste site, e também por sentir que existe freqüentemente,
por parte dos que querem o monopólio do uso dos termos "espiritismo"
e "espírita", uma postura de injustificável
desvalorização para com o ponto de vista de outros grupos,
dissimulada em explicações erroneamente construídas
quanto à etimologia e correção no uso de tais termos.
Fonte: http://geocities.yahoo.com.br/criticandokardec
Júlio César de Siqueira Barros - Moro no Rio de Janeiro,
onde me criei e nasci (em 1963). Tenho alguma formação
acadêmica nas áreas de Língua Inglesa e Biologia,
em especial Bacteriologia Clínica, área em que concluí
um mestrado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o que acabou
me possibilitando um bom contato com questões como: origem da
vida, genética, evolução, filosofia e história
da ciência.
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