Índia, início dos anos 1970. Um grupo de mulheres em situação
de rua, sofrendo a ameaça de despejo sem qualquer tipo de assistência,
começou a juntar pequenas quantias, moedas e aquilo que "sobrava".
A pequena poupança serviria de respaldo no tão temido
momento. O medo, que gerou iniciativa, também abriu perspectivas.
Elas perceberam que poderiam juntar valores e se organizar. Assim começou
um movimento que foi se expandindo na Índia, tomando a África
e chegando ao Brasil. Sem imaginar, essas mulheres criaram uma rede,
com metodologia própria de sobrevivência, que auxilia outras
pessoas nestas regiões do planeta. Como resultado nasceu a Rede
Internacional de Ação Comunitária –
Interação, uma associação
sem fins lucrativos cujo objetivo principal é promover a integração
social em assentamentos precários através de três
eixos principais: a poupança comunitária, o auto-recenseamento
e intercâmbio de experiências. A rede também
dá suporte técnico em negociações e incentivo
à participação feminina.
No Brasil, a Interação nasceu da iniciativa
de um grupo multidisciplinar de oito profissionais, a maioria funcionários
públicos afastados, atuantes na área de habitação
popular. É uma Organização da Sociedade Civil de
Interesse Público (OSCIP), instituída em dezembro de 2004.
A assistente social com experiência em moradia, favelas e loteamentos
irregulares, Sandra Simões, conta que a proposta foi elaborada
há dois anos e somada à idéia da organização
não-governamental africana Slums Dwellers International (SDI),
uma rede independente de organizações em um número
crescente de países do sul. "Todas elas são, a princípio,
formas de mobilização e organização, para
que as pessoas tenham autonomia e protagonismo nas mudanças das
condições de vida", explica Sandra.
A atuação da Interação,
através desta parceria internacional com a SDI, consiste em promover
a articulação entre a população residente
em assentamentos precários ou favelas, equipes de governo, instituições
financeiras e representantes do setor privado em geral. A rede,
SDI, é formada por federações de associações
comunitárias e outras iniciativas populares em processo de estabelecer
uma federação. Vinculados a essas federações
existe um grupo de profissionais compromissados em oferecer suporte
técnico no combate à pobreza urbana. Sandra, sócio-fundadora
da Interação Brasil, é uma delas e garante que
este é um movimento vitorioso. "Eles conseguem hoje discutir,
têm metas estabelecidas, conseguem sentar e conversar com o governo."
Sandra conta que o grupo conheceu o trabalho da SDI
em 2003, quando uma força tarefa da Organização
das Nações Unidas (ONU) esteve em São Paulo para
discutir boas práticas de programas de urbanização
de favelas e regularização com objetivo maior da segurança
na posse. "Essa força-tarefa está ligada aos Objetivos
do Milênio (ODM). Eu estava na prefeitura, a maioria das pessoas
que compõem essa ong já tiveram ou ainda tem atuação
no poder público, e estabelecemos esse contato. A partir de 2004
começamos a estruturar a organização ligada a essa
ong-mãe, que fica na África do Sul. Uma rede que está
presente em 24 países na Ásia, África e agora vindo
para América, com a proposta de se expandir para a América
Latina." Até então ninguém utilizava essa
metodologia no Brasil.
O projeto começou em abril de 2005. Primeiro
através do contato com as prefeituras, que deveriam manifestar
interesse em abrir espaços para que o grupo tentasse implantar
o trabalho. "A questão habitação envolve necessariamente
o poder público, sem ele você não resolve, não
dá encaminhamento. Não precisa começar com o poder
público, mas tem que envolver", justifica Sandra.
O segundo passo foram visitas às comunidades
para apresentar a proposta e constatar interesse da comunidade. A assistente
social conta que procuraram áreas precárias sem nenhum
tipo de movimento organizado, nenhum suporte de organização.
"Optamos começar por áreas que estavam esquecidas,
não só pelo poder público, mas que não tinham
relações de vizinhança, nem vínculos. Fomos
conhecer áreas de Osasco e Várzea Paulista", explica.
O trabalho está começando em São Paulo (SP), Santos
(SP) e Sorocaba (SP), os dois últimos em parceria com outras
organizações.
Sandra destaca ainda que o poder público
deve atuar respeitando a participação dos moradores, fazendo
parcerias com os moradores e interagindo. "Ter parcerias,
ouvir do morador ou daquela comunidade qual a melhor alternativa para
resolver a questão. Em nossa opinião a melhor forma. Primeiro
porque quando você envolve a pessoa percebe a solução
mais adequada, nem sempre é a mais barata, a mais bonita, mas
é a que melhor atende as necessidades dessa comunidade. E segundo
que as pessoas se apropriam daquilo que foi feito, e aquilo não
se deteriora com o tempo, não vira um bairro com uma favela do
lado de novo, ou vende e vai embora. Tudo que é discutido em
conjunto fica mais próximo das necessidades e facilita o poder
público que vai fazer uma coisa que as pessoas vão de
fato se sentirem atendidas, contempladas".
Para o psicólogo Altemir Almeida,
também sócio-fundador da Interação Brasil,
a proposta da organização é de fortalecimento das
relações desses moradores com o poder público.
"Eles saem da condição passiva de reclamar ou de
espera para uma ação propositiva."
Como funcionários públicos, eles batalham
pela construção de políticas públicas, fruto
dos resultados do projeto. "É um dos nossos objetivos. Que
diversas instâncias de poder vejam que isso é viável,
facilita, dá um resultado melhor e, então, transformar
em política pública. Não só a questão
da participação, mas sim uma participação
mais efetiva. Porque a partir do momento que a pessoa passa a fazer
o censo de sua comunidade, ela começa ter outra visão
da área em que ela mora. Geralmente o cadastro, o censo, fica
com o poder público, com as organizações. Esse
não. Ele fica com os próprios moradores, a análise
é feita junto com eles. Nossa proposta é ter um banco
de dados nas comunidades. Manipulado, alimentado, trabalhado por eles
e que isso seja também um instrumento de negociação
com o poder público", ressalta Sandra.
Altemir acrescenta: "Acreditamos que o reconhecimento
do poder público como um dado oficial seja um passo para que
se torne uma política pública. Os censos e cadastros são
sempre feitos por empresas de ou pela própria prefeitura, quando
a gente trabalha e prepara os moradores para eles terem condições
de fazer esse censo, e o poder público aceita isso como um dado
oficial, é um grande avanço."
Os três eixos do projeto se complementam. O censo
cria o reconhecimento e o sentimento de pertencimento da área.
"Nas áreas que estamos trabalhando é muito comum
as pessoas terem sonho de mudar, ir embora, terem vergonha de morar
naquele bairro e a discriminação de morar lá. Já
no censo as pessoas começam a ver suas vidas naquele bairro de
forma diferente, começam a querer mudar, mas dentro do próprio
bairro. Reconhecer o bairro, ver suas potencialidades, começa
a formar vínculos de vizinhança", explica Sandra.
Com os intercâmbios trabalha-se o reconhecimento da situação
não só dentro do próprio bairro. Eles acontecem
entre as comunidades, cidades e países da Rede Internacional
de Ação Social. "A pessoa vai tomando consciência
de que a situação da moradia, da pobreza é fruto
do sistema em que ela vive e não resultado de uma incapacidade,
um fracasso pessoal."
A poupança vem completar. "Ela seria o
eixo. Você forma pequenos grupos que vão começar
a poupar conjuntamente, não importa o valor, as quantias não
são fixadas. O objetivo da poupança é discutido
entre eles. A gente sugere que seja um grupo de 30 pessoas para facilitar
prestação de contas e encontros. Dessas pessoas três
ficam como tesoureiros, abrem uma conta num banco. O objetivo que é
eles se encontrem todas as semanas para discutir problemas do bairro,
do dia-a-dia, das suas vidas e, com isso, estabelecerem um grupo que
não vai estar apenas poupando economias, mas também criando
vínculos", explica Sandra. O foco da ong é oferecer
suporte técnico para estruturar uma federação popular
formada através de grupos de poupança comunitária.
Para acompanhar os resultados e progresso, a Interação
estabeleceu um cronograma de encontros e alguns instrumentais de prestação
de contas na organização e entre os próprios grupos.
"Como indicadores, podemos dizer que os grupos estão conseguindo
estabelecer essas metas: reuniões semanais, quanto está
sendo poupado não em valor, mas em vezes de poupar (se a poupança
está sendo mensal, quinzenal, semanal, diária), como foi
definido isso, e, principalmente, o estabelecimento de vínculos,
o avanço das propostas e encontros com o poder público
para medir o avanço de negociações do que vai ser
feito nas áreas", diz Sandra.
Um dos objetivos da organização
é buscar parceiros. "Já temos estabelecidas
algumas parcerias. A iniciativa privada vendo essa forma de organização,
já manifestou interesse em colaborar", conta Sandra, que
revela ainda que pessoas das próprias comunidades já estão
buscando parceira. "Tem um grupo que surgiu com uma proposta de
pessoas que querem começar a poupar para o grupo, como uma forma
de solidariedade. A discussão de que forma isso vai ser estabelecido.
Pensamos em um tipo de poupador solidário, que não faz
parte do grupo ou comunidade, mas que quer contribuir com o grupo na
formação do fundo. Buscar parcerias com organizações
que tenham relação com a sua problemática. Acho
que já estão enxergando isso. Como disse, procuramos comunidades
que não tinham nenhum tipo de organização, nem
vínculo de vizinhança. Hoje você vê a importância
dos vínculos na comunidade e perceberem a importância de
novos parceiros."
Para manter a estrutura administrativa da organização,
o grupo teve apoio inicial da SDI. "Para a criação
recebemos apoio para as instalações no primeiro ano. Mas
a idéia é sobrevivermos das parcerias", conta Altemir.
Ele explica que o trabalho nas áreas gera um produto que pode
ser interessante principalmente para os municípios: o censo.
"Essa relação com o poder público, estabelece
um canal de comunicação onde se pode discutir esses projetos.
O que a gente propõe é uma parceria entre a ong e o município,
em que ele assumiria alguns custos: equipe, transporte, alimentação
desse intercâmbio, para que as comunidades possam participar de
outros encontros." Hoje isso acontece em um município, Várzea
Paulista, onde a Interação tem uma parceria formalizada.
Os demais são investimentos da organização e ainda
não há contrapartida financeira do município. "Essa
é a parte metodológica do projeto. Fora isso, podemos
prestar serviços como assessoria e consultoria na área
de regularização fundiária. É uma coisa
que todas as cidades estão trabalhando hoje e ganhou espaço
a partir do Estatuto das Cidades. Quando a gente consegue trabalhar
um processo de regularização fundiária com essa
metodologia é ótimo", diz Altemir.
Em dezembro de 2006, a Interação
organizou, em São Paulo, o Seminário Nacional Fortalecimento
das Organizações Populares e Alternativas de Combate à
Exclusão, com o apoio do governo da Noruega e Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). "A visibilidade desse trabalho
nos trouxe bastantes contatos. Nossas perspectivas para 2007 são
consolidar o trabalho que vem sendo feito e empreender novos contatos
e parcerias do setor de construção, setor financeiro,
acesso ao crédito lastreado na poupança e no poder público,
no acesso ou melhoria à moradia em assentamentos precários",
conclui Altemir.
-----------------------------------------------------------------
Serviço
Interação Brasil
www.redeinteracao.org.br
topo