O tema da “pureza doutrinária”,
apesar de ser uma constante no movimento espírita brasileiro,
é algo presente em praticamente todas as correntes de pensamento
e propostas filosóficas e morais, seja no interior delas,
seja no diálogo com as demais. Por exemplo, há discussões
acaloradas nas tradições platônica e kantiana
sobre qual é a melhor interpretação de Platão
e de Immanuel Kant, assim como há debates infinitos para
saber se o melhor para compreender o fenômeno humano e social
passa pelo existencialismo, pelo liberalismo, pelo marxismo ou pelo
anarquismo.
Desse modo, são muito naturais tais disputas
em torno do que é o mais coerente sobre determinado tema.
E o espiritismo, como mais uma filosofia, como mais uma proposta
de compreensão do mundo, não está alheio a
essas disputas.
Com isso, diante de um debate mais amplo e no pequeno
espaço desse texto, quero propor duas reflexões em
torno da “pureza doutrinária” no espiritismo:
uma de caráter teórico e outra de caráter prático.
A primeira, de viés teórico, recai
sobre a questão da verdade. Falar de “pureza
doutrinária” é, no fim das contas, falar com
quem está a verdade sobre o que é ou não é
espiritismo. Então, onde ou com quem está a verdade
do espiritismo?
Para responder com um mínimo de isenção, precisamos
nos distanciar um pouco e questionar onde ou com quem está
a verdade, por exemplo, do aristotelismo: numa instituição
que reúna seguidores e estudos sobre Aristóteles?
No departamento de filosofia das Universidades de Sorbonne ou de
Oxford? Ou numa obra específica? Ou numa pessoa que domina
o pensamento de Aristóteles como ninguém?
Um pouco de equilíbrio nos leva à
conclusão de que essa verdade está em todos em geral,
e em nenhum em específico, na medida em que todo esse conjunto
de instituições, obras e pessoas contribuem, cada
qual à sua maneira, para trazer para o século XXI
todo o conjunto de ideias de um filósofo que escreveu a partir
das referências culturais da Grécia do século
III a.C. O mesmo vale para qualquer outro pensador ou escola filosófica.
É válido ressaltar que, depois de
toda a contribuição capitaneada pelos filósofos
Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger no início do século
XX, é ponto pacífico o fato de que a verdade não
é domínio de instituições ou de pessoas,
mas é uma construção coletiva e histórica,
que dialoga com um determinado tempo e com certa cultura, e na qual
a verdade, mais do que algo pronto, é visto como uma busca
incessante por coerência, dentro de um processo dialético
quase que interminável.
Com essa ideia sobre a verdade, temos que lidar
com dois extremos. De um lado, um relativismo absoluto, no qual
o particular é respeitado em suas características
próprias, mas onde cada um “faz a sua verdade”
e onde dificilmente encontramos um ponto comum para estabelecer
um diálogo intercultural. De outro lado, uma postura racional
que quer construir uma unidade conceitual e valorativa em meio às
várias percepções possíveis da realidade,
mas sempre com o perigo de privilegiar certas visões de mundo
e marginalizar outras, podendo cair num dogmatismo hermético
ao confronto com um mundo, cercado de filosofias por todos os lados.
São questões de nosso tempo, em que
vivemos entre um relativismo cultural, de que “tudo é
verdade”, e um dogmatismo, de que “só há
uma verdade” ou que “há verdades mais verdadeiras
que outras”.
Retornando ao tema, então, onde ou com quem está a
verdade sobre o espiritismo?
Para responder, temos que considerar, primeiro:
como toda ciência e filosofia, o espiritismo sempre será
um conhecimento contingente. Hoje temos uma compreensão do
espiritismo que responde ao nosso momento histórico e cultural,
mas que será diferente daqui a 100 anos. Mas, mais do que
isso. O próprio espiritismo que sai das mãos de Allan
Kardec também é um produto limitado pelas características
do autor e suas adesões intelectuais, e pelas idiossincrasias
de sua época. Se tivesse sido outro o “codificador”,
certamente existiria um espiritismo diferente na forma e, possivelmente,
no fundo.
Segundo, o estudo e a discussão sobre o espiritismo
podem gerar formas mais ou menos coerentes de compreensão
dessa doutrina que, até o momento, só tem dois pontos
de certeza: que o espírito sobrevive à morte do corpo
físico e que pode se comunicar. O restante, como a reencarnação,
Deus, progresso, etc., ainda é matéria mais de metafísica,
de fundamentação lógica e de especulação
do que de efetiva comprovação científica.
Terceiro: são péssimas as posturas
extremadas, tanto de tomar o espiritismo como uma salada mística,
onde tudo é válido, quanto de empurrá-lo no
dogmatismo, que ainda tem a ingenuidade medieval de achar que é
possível dominar as ideias e fazer as pessoas se curvarem
a certos entendimentos institucionais, como se elas fossem incapazes
de raciocinar.
Portanto, no plano teórico, a verdade do
espiritismo está onde ela é discutida, estudada e
contextualizada ao seu respectivo tempo, dentro de uma dinâmica
onde surgem interpretações e proposições
mais ou menos coerentes, seja coletivamente, no centro espírita,
na academia, entre conhecidos ou onde for, seja individualmente.
É nesse movimento que surgem entendimentos mais ricos, mais
propositivos, mais pertinentes, mais interessantes. E é todo
esse conjunto que faz do espiritismo uma proposta que exista para
além do livro, que saia para a realidade e integre nossas
vidas.
Logo, falar de “pureza doutrinária”,
em termos teóricos, é transitar entre os extremos
do misticismo e do dogmatismo, buscando alcançar um sentido
cada vez mais pleno e coerente do espiritismo, tratando as pessoas
mais como intérpretes, capazes de organizar e dar sentido
à vida e à existência por si mesmas.
A segunda reflexão, de ordem prática,
é sobre o exercício de poder. Até
porque dizer “pureza doutrinária” significa autorizar
ou desautorizar pensamentos, falas e pessoas para falar “em
nome do espiritismo”.
Esse exercício de poder tem um lado
claramente negativo, de dominação, exclusivismo e
aprisionamento de conteúdos, de ideias e de conceitos, e
deve ser prontamente rejeitado onde quer que se manifeste: nas ciências,
nas filosofias e nas religiões. No espiritismo, ela costuma
se manifestar na famosa frase “Isso não está
de acordo com Kardec”, normalmente dito pelos mais ortodoxos
e de orientação religiosa.
Não há muito o que dizer sobre isso.
Algumas pessoas se encastelam tanto em suas convicções
que não há o que fazer. Mas, é preciso ressaltar
que dizer “isso não está de acordo com Kardec”
é o mesmo que dizer, na realidade, que “isso não
está de acordo com o que eu entendo sobre Kardec”.
Mas isso não é aceito por essas pessoas. Eles acham
que falam “em nome do espiritismo”, como se isso fosse
realmente possível, pois as pessoas só falam ou escrevem
aquilo que compreenderam do espiritismo.
Porém, a “pureza doutrinária”
como exercício do poder também tem um lado positivo,
no sentido de se manejar o espiritismo e suas categorias de modo
correto, levando-o para as esferas privada e pública da forma
mais adequada possível. Ou seja, como o esforço de
levar para indivíduos e coletividades uma doutrina coesa
e íntegra, que possui sua estrutura própria, o que
ela conclui e o que ela deixa em aberto, suas propostas para a condição
humana, sua cosmovisão, suas respostas e suas novas perguntas.
É um tipo de postura que não teme
debater com as demais correntes de pensamento, e nem identificar
as inconsistências e as limitações do espiritismo.
Está aberto às reinterpretações contínuas
do espiritismo com a cultura e o pensamento de um tempo.
Neste ponto, é comum o jargão “Temos
que voltar a Kardec”, o que demonstra certa abertura à
discussão. Claro, retornar a Kardec é fundamental
em qualquer debate sobre o espiritismo, desde que isso não
signifique, obviamente, tornar o espírita num papagaio de
pirata, num leitor de powerpoint, num analfabeto filosófico
incapaz de relacionar o texto kardequiano à realidade ao
redor. Isso também vale para quem quiser debater com a tradição
marxista, que deve “voltar à Marx”, ou com a
tradição materialista, que deve “voltar a Epicuro”,
ou com a tradição hegeliana, que deve certamente “voltar
a Hegel”.
Logo, falar sobre “pureza doutrinária”
em seu caráter prático, enquanto exercício
de poder, tem um lado bom. Mostra um certo zelo para com a doutrina,
uma vontade de buscar interpretar as ideias, a propostas e as categorias
espíritas de forma coerente, hígida e inteligente,
trabalhando os conceitos corretamente e propondo interrelações
de modo honesto.
Concluindo, “pureza doutrinária”
só é válida se significar uma busca constante
por coerência interna e com o mundo ao redor, sem cair no
misticismo e no dogmatismo, e se for compreendida como uma visão
de mundo que coexiste com outras visões de mundo, tão
importantes e pertinentes quanto o espiritismo. O resto são
formas degeneradas, muito conveniente aos incautos e aos orgulhosos.
Diante dessas questões, a precariedade de
nossa condição humana, a nossa mais absoluta ignorância
sobre o que é o universo, o caráter histórico
e incompleto da revelação espírita, que ainda
deixa em aberto uma série de questões capitais sobre
a natureza, a vida e a existência humana, deveriam ser suficientes
para sermos mais humildades e menos presunçosos, mais pesquisadores
e menos reprodutores. Para isso, precisamos urgentemente abandonar
o reino das certezas e flertar mais com a divergência e com
a dúvida.
Isso nos dá um pouco de angústia,
claro. Ninguém quer perder o chão por onde acha que
pisa. Mas é uma angústia maravilhosa, sempre a nos
lembrar da humildade de reconhecer que ainda estamos num planeta
de provas e expiações, no início de uma trajetória
incomensurável.