
Conversando com uma amiga semana
passada, falávamos sobre a situação de uma
conhecida. Uma jovem inteligente, com sucesso acadêmico, mas
muitos sofrimentos emocionais. Tendo presenciado abusos familiares
e sofrido uma vivência religiosa amedrontadora e hipócrita,
a moça refugiava-se em histórias de séries
e superstars, paralisada e alienada diante de uma situação
em que estava para ser despejada, junto com sua mãe, da casa
onde vivia.
O ponto de nossa conversa era que
nenhuma de nós tinha condições materiais de
resolver esse problema, e, do ponto de vista coletivo, é
evidente que só uma sociedade horrorosamente organizada pode
gerar uma situação em que uma mãe trabalhadora
não tenha seu direito de moradia assegurado. Mas, do ponto
de vista individual, víamos também que uma moça
inteligente não estava usando sua capacidade de ajudar sua
mãe.
Mudando a cena. Em nossa reunião
mediúnica da Associação Brasileira de Pedagogia
Espírita, lemos recentemente um trecho do livro Obsessão,
O passe, A doutrinação, de Herculano Pires. O
texto despertou risos por seu rigor fora do habitual no meio espírita.
Vejam:
“Você é
um ser humano adulto e consciente, responsável pelo seu
comportamento. Controle as suas ideias, rejeite os pensamentos
inferiores e perturbadores, estimule as suas tendências
boas e repila as más. Tome conta de si mesmo. Deus concedeu
a jurisdição de si mesmo, é você quem
manda em você nos caminhos da vida. Não se faça
de criança mimada. Aprenda a se controlar em todos os instantes
e em todas as circunstâncias. Experimente o seu poder e
verá que ele é maior do que você pensa.
A cura da obsessão é uma auto-cura.
Ninguém pode livrar você da obsessão se você
não quiser livrar-se dela. Comece a livrar-se agora, dizendo
a você mesmo: sou uma criatura normal, dotada do poder e
do dever de dirigir a mim mesmo. Conheço os meus deveres
e posso cumpri-los. Deus me ampara.
Repita isso sempre que se sentir perturbado.
Repita e faça o que disse. Tome a decisão de se
portar como uma criatura normal que realmente é, confiante
em Deus e no poder das forças naturais que estão
no seu corpo e no seu espírito, à espera do seu
comando. Dirija o seu barco. Reformule o seu conceito de si mesmo.
Você não é um pobrezinho abandonado no mundo.
Os próprios vermes são protegidos pelas leis naturais”.
“Não se faça
de criança mimada”. “Os próprios vermes
são protegidos pelas leis naturais”. Em nossa reunião,
rimos desses conselhos tão sutis frente às reclamações
que sempre fazemos dos pensamentos depressivos e desequilibrantes
que nos acometem em tantos dias, muitas vezes acompanhados da clara
sensação de que há espíritos nos influenciando.
“Conheço os meus deveres e posso cumpri-los. Deus me
ampara”. Em sua mensagem, Herculano Pires orienta que a pessoa
sofrendo obsessão (e ele está se referindo a casos
dos mais leves aos mais graves, como nas situações
em que vozes e sensações físicas perturbam
os indivíduos) repita frases encorajadoras e seja firme no
cumprimento de seus deveres. Algo parecido com exercícios
ligados ao campo da Psicologia Cognitivo-Comportamental.
Aí entra o caso que citei no começo desse texto. Não
seria muito superficial, ou até mesmo antiético, desconsiderar
toda uma gama de questões intrincadas e, por vezes, inconscientes
que a criatura carrega desde a infância, e tratar a cura de
suas dores psicológicas como um mero treinamento? O próprio
Herculano escreve, no mesmo livro que citamos, que “o
fato de vivermos muitas vidas na Terra, e não apenas uma,
mostra que temos no inconsciente uma armazenagem de lembranças
e conhecimentos, aspirações, frustrações
e traumas muito maior que a descoberta por Freud”.
Nossas companheiras, trabalhando com Psicologia na ABPE, têm
nos esclarecido sobre outros elementos do tratamento psicológico
que vão além do condicionamento por repetição,
como, por exemplo, o holding, o refazimento da maternagem
que o terapeuta realiza com seu paciente procurando reajustar questões
psíquicas ligadas à infância, na abordagem winnicotiana.
E nós, que nos indignamos com as injustiças históricas,
não podemos deixar de dizer que essa vida exige de uns autocontrole
para não brigar com os filhos, e de outros a superação
de uma situação de negligência paterna, pobreza,
discriminação racial, etc… Colocada essa desigualdade,
isso faz dos conselhos enfáticos de Herculano, desatualizados?
Entendemos que há circunstâncias e circunstâncias,
e que existem personalidades que, por diversos motivos, alimentam
seus sofrimentos psicológicos como crianças mimadas.
Mesmo nesses casos, sempre há mais camadas psicológicas
a serem desvendadas para solucionar o problema. Mas podemos também
reler esses conselhos como um apelo para que tenhamos atitudes perante
a vida que não desconsiderem as injustiças do mundo
que sempre ocorreram na história, mas que também não
nos paralisem diante dos problemas.
Numa cosmovisão materialista, os indivíduos sucumbem
às injustiças da matéria frente a uma vida
de dor e sem sentido, é fato. Mas a visão espírita
nos impele a entender a meta da vida como a transcendência.
Diz Herculano, sobre o sentido da vida: “Ao fazer todo
esse trajeto [da vida] ela [a pessoa] desenvolveu suas forças
orgânicas e psíquicas, sua afetividade, sua capacidade
de compreender o que se passa ao seu redor e seu poder de dominar
as circunstâncias”.
Da mesma forma, na Logoterapia, outro ramo da Psicologia, o sentido
da vida, entregar à vida e à humanidade uma contribuição,
é nossa meta, e nessa perspectiva mesmo a pessoa nas piores
condições materiais pode transcender-se e realizar-se.
Para isso a coragem, o senso prático de procurar, de alguma
forma, superar as adversidades e contribuir de alguma forma com
o bem-estar de todos. Se isso parece fácil de dizer quando
não se está sofrendo, a outra opção
é a apologia ao suicídio frente à dor (e devemos
lembrar que a proposta da Logoterapia foi criada por um médico
num campo de concentração). Lembro-me de um filme
baseado em fatos reais, Uma boa mentira (The Good Lie,
2015), que mostra que o sentido de vida pode ser mais relevante
para um ser humano que as suas condições materiais
tomadas isoladamente.
Isso não é negação da necessidade urgente
de ações coletivas, estruturais, que transformem essa
sociedade excludente. Mas a visão espírita considera
cada vida individual um projeto de transcendência a ser realizado
e que não deve ser negligenciado. Nossos esforços
na ABPE de democratizar elementos de apoio psicológico são
uma estratégia nessa direção. Devemos nos ajudar
mutuamente para darmos nossa contribuição à
humanidade e transcendermos nossas limitações materiais,
cognitivas, afetivas, morais, históricas, facilitando o caminho
das próximas gerações para a construção
de um mundo melhor.
Diz Savater: “Como indivíduos e como cidadãos,
temos perfeito direito de ver tudo da cor característica
da maior parte das formigas… muito preto. Enquanto educadores,
porém, não nos resta outro remédio senão
sermos otimistas. Pois educar é crer na perfectibilidade
humana” (SAVATER,1998, p.23). Parodiando-o, dizemos:
Do ponto de vista social, podemos ver tudo catastrófico.
Mas do ponto de vista espírita, precisamos crer e investir
no valor de cada ação humana de transcendência.
SAVATER, Fernando. O valor de educar. São
Paulo, Martins Fontes, 1998.